SUMÁRIO: 1. Intróito 2. A necessidade processual e social da implementação de novos instrumentos normativos para a defesa dos "novos direitos" 3. A coisa julgada secundum eventum litis na Lei da Ação Civil Pública 4. A modificação realizada no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, sob uma abordagem crítica 5. Conclusões 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRÓITO
O presente trabalho objetiva demonstrar, sob um olhar crítico, as mudanças efetivadas no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), primeiramente pela Medida Provisória 1.570/97, e posteriormente pela Lei 9.494/97, num enfoque eminentemente jurídico, comprometido com a efetividade dos instrumentos processuais no processo de jurisdição coletiva.
Num primeiro momento, tecemos alguns comentários acerca do desenvolvimento do direito processual civil, do seu caráter individualista até a implementação da jurisdição civil coletiva, com o surgimento da sociedade de massa e sua necessidade de ter instrumentos processuais jurídicos materiais e processuais que fossem capazes de tutelar os "novos direitos", isto é, os direitos de massa surgidos na sociedade.
Em segundo lugar, o objeto de apreciação foi especificamente a Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) no que diz respeito às particularidades da coisa julgada secundum eventum litis. Tal análise, no entanto, foi realizada de maneira sintética, não objetivando esgotar o tema.
Na terceira parte, desejamos demonstrar as péssimas modificações realizadas no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, numa total falta de técnica jurídica que gerou uma anomalia, caracterizada pela junção de institutos que não deveriam ser misturados em um único artigo, tudo, ao nosso entender, no intuito de dificultar a efetividade da aplicação da própria Lei da Ação Civil Pública.
Por fim, abordamos o objeto de nosso estudo: a modificação realizada no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347 /85), com as ressalvas críticas levantadas que reputamos necessárias.
2. A NECESSIDADE PROCESSUAL E SOCIAL DA IMPLEMENTAÇÃO DE NOVOS INSTRUMENTOS NORMATIVOS PARA A DEFESA DOS "NOVOS DIREITOS"
Inúmeras mudanças de peso ocorreram com o direito processual civil no mundo ocidental. No Brasil, não ocorreu de forma adversa. Desde as Ordenações Portuguesas, Afonsinas, Manoelinas e Filipinas, passando pela Consolidação Ribas (Decreto 763/1890), pelo CPC de 1939, até a vigência do atual CPC de 1973, a sistemática dos instrumentos processuais civis objetivava resolver lides individuais, inclusive o ranço individualista permanece até hoje predominante em vários dispositivos do CPC atual.
Todavia, com o surgimento da massificação social, da multiplicação de direitos surgidos principalmente após o pós-guerra e a rebelião das massas, vários direitos, entre eles, aqueles relacionados ao meio ambiente, ao consumidor, à criança e adolescente, à ordem econômica etc., encontraram-se desprotegidos, uma vez que não pertenciam a uma pessoa, mas a inúmeras pessoas indeterminadas e não havia regramento no sistema processual civil para tal tipo de tutela. Dessa feita, deu-se o surgimento de instrumentos normativos (Lei de Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor) que passaram a tutelar processualmente direitos difusos e coletivos, formando-se uma jurisdição civil coletiva (RODRIGUES, 2000:38-39).
O processo civil coletivo dependia de mecanismos apropriados para a proteção das situações dos direitos dessa natureza, sob pena de se ter eliminada a própria categoria desses "novos direitos" (MARINONI e ARENHART, 2004:784). Os direitos transindividuais e individuais homogêneos passaram a exigir uma remodelação dos antigos conceitos de coisa julgada material e de legitimidade para a causa, relacionados ao pretérito processo civil estruturado para solucionar conflitos de índole individual, que concebia a coisa julgada material como algo que se relaciona apenas às partes e os legitimados como aqueles que fossem titulares do direito material (MARINONI, 2004:100).
Nesse sentido, a criação de instrumentos normativos em consonância com a nova realidade foi de imensa importância. As novas necessidades da sociedade de massa a passaram a ser supridas pelo processo civil, a implementação da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347 /85), do Código de Defesa do Consumidor, dentre outros instrumentos normativos, foi de fundamental importância para a efetivação nos "novos direitos" surgidos no seio da sociedade, dando ensejo ao remodelamento dos institutos clássicos do direito processual civil.
3. A COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM LITIS NA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Como podemos observar os institutos no processo civil clássico, eminentemente individualista, passaram a ser modificados para terem eficácia e utilidade no processo civil coletivo.
Em relação à coisa julgada na Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), esta se encontra prevista no art. 16, originalmente este artigo possuía a seguinte redação: "Art.16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".
Era repetida a fórmula já utilizada no art. 18 da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), qual seja, a coisa julgada secundum eventum litis, de acordo com o resultado do processo. Segundo Gregório de Assagra Almeida (2003:356): "[...] haverá coisa julgada se o pedido for julgado procedente. Caso seja ele julgado improcedente, não fará coisa julgada se a fundamentação da sentença proferida na ação civil pública se basear na insuficiência de prova".
No mesmo sentido o lecionar de Hugo Nigro Mazzilli (2002:478):
A lei mitiga a coisa julgada nas ações civis públicas e coletivas de acordo com o resultado do processo (secundum eventum litis): a) em caso de procedência, haverá coisa julgada; b) em caso de improcedência por qualquer motivo que não a falta de provas, também haverá coisa julgada; c) em caso de improcedência por falta de provas, não haverá coisa julgada; outra ação poderá ser proposta, com base em nova prova.
Apesar de existirem críticas à adoção da coisa julgada secundum eventum litis por parte de alguns doutrinadores, como relatou Nicola Jaeger e afirmou G. Vignocchi, outros como Ada Grinover, Nelson Nery e Rosa Nery entendem a coisa julgada secundum eventum litis como eficiente à tutela dos interesses transindividuais, já devidamente aplicada durante anos pela Lei de Ação Civil Pública na prática forense (MANCUSO, 2002:292). Seguimos o entendimento da segunda corrente.
4. A MODIFICAÇÃO REALIZADA NO ART. 16 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA, SOB UMA ABORDAGEM CRÍTICA
No item anterior, foi transcrita a redação original do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, contudo a Medida Provisória 1.570/97 [01] e posteriormente a Lei 9.494/97 passaram a dar uma nova redação ao referido artigo: "Art.16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se a ação for julgada improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" (grifos nossos).
Bem, com o surgimento da Lei 9.494/97, viu-se a mantença da modificação introduzida pela Medida Provisória 1.570/97 no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, sendo inclusive defendida por alguns autores como José dos Santos Carvalho Filho [02] e corroborada por entendimentos jurisprudenciais, principalmente do Superior Tribunal de Justiça. Críticas à opção técnica processual adotada pelo legislador são a tônica da corrente majoritária doutrinária nesse ponto, autores como Rodolfo de Camargo Mancuso (2002:296), José Menezes Vigliar (1999:118-119), Hugo Nigro Mazzilli (2002:249), dentre outros adotam tal posicionamento.
Segundo Nelson Nery e Rosa Nery (2003:1349):
De conseqüência, não há limitação territorial para a eficácia erga omnes da decisão proferida em ação coletiva, quer esteja fundada na LACP, quer no CDC. De outra parte, o Presidente da República confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado! O que importa é quem foi atingido pela coisa julgada material. [...] Qualquer sentença proferida por órgão do Poder Judiciário pode ter eficácia para além de seu território. Até a sentença estrangeira pode produzir efeitos no Brasil, bastando para tanto que seja homologada pelo STF [03]. Assim, as partes entre as quais foi dada a sentença estrangeira são atingidas por seus efeitos onde quer que estejam no planeta Terra. Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito. (grifos nossos)
Entendemos totalmente pertinentes os comentários de Nelson e Rosa Nery. A coisa julgada ao atravessar as fronteiras dos Estados não perde a sua qualidade.
A coisa julgada reflete a qualidade de indiscutibilidade de que é revestido o efeito declaratório da sentença de mérito. Não se trata de um efeito da sentença, mas de qualidade que se soma a certo efeito. Pensar que determinada qualidade de determinado efeito apenas existe em determinado território, seria afirmar que certa fruta é vermelha em determinado lugar do país (MARINONI e ARENHART, 2004:818). Na mesma linha de raciocínio, o comentário de Rodolfo de Camargo Mancuso (2002:296-297):
[...] se o pedido numa ação civil pública em curso perante o juiz competente (Lei 7.347/85, art. 2.º, c/c CDC, art. 93) é que se interdite a fabricação de medicamento tido como nocivo à saúde humana, a resposta judiciária (inclusive como liminar) não pode, a nosso ver, sofrer condicionamento geográfico, [...] não caberia falar numa "saúde paulista", distinta de uma "saúde gaúcha".
Humberto Theodoro Júnior (2002:32) afirma que devemos considerar a jurisdição como função estatal, ou melhor, "a função do Estado de declarar e realizar, de forma prática, a vontade da lei diante de uma situação jurídica controvertida". De acordo com Marcelo Abelha Rodrigues (2000:135-136), a competência, no ensinamento de Liebman, é a quantidade, a medida da jurisdição a ser atribuída a cada órgão, determinada por critérios definidos pelo legislador, sendo "justamente esses critérios que irão permitir que se entregue a específico órgão jurisdicional determinada medida de jurisdição, para que o órgão possa exercê-la num caso concreto."
Como podemos observar os institutos da competência e da coisa julgada são totalmente diferentes, tendo o legislador criado uma anomalia jurídica, até porque misturou institutos jurídicos que não deveriam ser amalgamados no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública. Nesse sentido, dispara Hugo Nigro Mazzilli:
A alteração trazida à Lei da Ação Civil Pública pela Lei n. 9.494/97 é de todo equivocada, pois esta última valeu-se de redação infeliz e inócua. O legislador de 1997 confundiu limites da coisa julgada (cuja imutabilidade subjetiva e objetiva é erga omnes) com competência (saber qual órgão do Poder Judiciário está investido de uma parcela da jurisdição estatal);
Podemos, nesse ponto de nossa exposição, chegar à conclusão de que foram adotados critérios políticos pelo Executivo, que introduziu a monstruosidade por Medida Provisória inconstitucional, posteriormente rechaçada pelo Legislativo, para proteger a Fazenda Pública contra eventuais ações coletivas que pudessem ser processualmente e materialmente tuteladas mais eficazmente pelo Poder Judiciário.
Ademais, entendemos que a modificação atentou expressamente contra dois princípios específicos do direito processual coletivo comum: o princípio do máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva comum e o princípio da máxima efetividade do processo coletivo. Nos ensinamentos de Gregório Assagra de Almeida (2003:575-576), o primeiro princípio, através da proteção jurisdicional coletiva, procura resolver em apenas um processo um enorme conflito social ou vários conflitos individuais, juntos pelo laço da homogeneidade. Por sua vez, o outro princípio objetiva que o processo coletivo se revista de todos os instrumentos necessários para que se torne efetivo.
5. CONCLUSÕES
Como podemos observar a modificação efetuada no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, inicialmente pela Medida Provisória 1.570/97, e posteriormente pela Lei 9.494/97, foi de uma infelicidade ímpar. Entendemos que ela é ilógica e fere a razoabilidade do sistema coletivo em geral, principalmente se considerarmos o aspecto da efetividade do processo. Fazemos tais ponderações com recalque nos seguintes argumentos:
a)a modificação atenta contra a lógica jurídica, fazendo confusão entre institutos jurídicos (competência e coisa julgada) num mesmo artigo, desvirtuando-os em realidade;
b)a Lei 9.494/97 é inconstitucional, pois diminui o alcance da Ação Civil Pública, atritando-se diretamente com os seguintes dispositivos constitucionais: art. 5º, inciso XXXV, art. 23, incisos VI, VII e VIII, e o art. 200, inciso VIII, dentre outros;
c)a modificação traz insegurança jurídica, tendo em conta que poderão ocorrer em diversas situações decisões conflitantes no Poder Judiciário acerca do mesmo fato, colidindo-se duas coisas julgadas, com a geração de caos, que pode ser agravado se pensarmos nas conseqüências recursais de tal realidade;
d)a modificação atenta contra os princípios específicos do direito processual coletivo comum: o princípio do máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva comum e o princípio da máxima efetividade do processo coletivo, além do princípio geral da isonomia;
e)a modificação compromete o acesso à justiça e a efetividade do processo civil coletivo;
f)a alteração deveria e não foi operada no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90);
Tendo em conta as susomencionadas ponderações, entendemos que não deve ser aplicado o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública com a alteração feita pela Lei 9.494/97, pois destoa da melhor sistemática processual coletiva. Devem ser aplicados nesse ponto os arts. 93, 103 e 104 do Código de Defesa do Consumido (Lei 8.078/90), por sua maior efetividade na aplicação dos direitos transindividuais e individuais homogêneos, sua melhor integração no sistema jurídico e sua subsidiariedade (art. 117 do CDC e art. 21 da Lei 7.347/85). Sendo dessa forma amenizado o equívoco surgido pela mudança no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores ( Lei 7.347/85 e legislação complementar). 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 14. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2002.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. v. 1. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
THEODORO JÚNIOR, HUMBERTO. Curso de direito processual civil. v.1. 38ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação Civil Pública. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
NOTAS
01
Infelizmente, não nos causa espanto a utilização em primeira mão pelo Presidente da República de Medida Provisória para realizar a modificação no artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública. A Medida Provisória adotada no Brasil, surgiu do direito italiano na Constituição da República de 1947, como "[...] caráter de exceção à regra proibitória da atividade normativa direta do Governo (art. 77)" (HORTA, 1999:572), denominada como provvedimenti provvisori, foi fortemente desfigurada de sua fonte européia. Primeiramente, devemos lembrar que a Medida Provisória foi projetada para o sistema de governo parlamentarista, de iniciativa do Governo, ou seja, Conselho de Ministros, atraindo a responsabilidade política, caindo o Governo caso ela não seja aprovada pelo Parlamento, já no Brasil foi adotada no sistema de governo presidencialista, sendo a iniciativa isolada do Presidente da República, num juízo monocrático, sem maiores responsabilizações políticas no caso de sua não aprovação. Em segundo lugar, como bem destaca Raul Machado Horta (1999:578): "Os provvedimenti provvisori do texto italiano são autorizados in casi straordinari di necessita e d’urgenza, enquanto as Medidas Provisórias da Constituição Brasileira pressupõem o caso de ‘relevância e de urgência’ ". Na adaptação brasileira dos provvedimenti provvisori, os juízos de admissibilidade são menos rigorosos se comparados com o seu instituto original e, a prática vem demonstrando isso, relegam ao Presidente da República um poder legislativo que não lhe cabe, e o que é pior, em situações que não preenchem os requisitos da relevância e urgência, como no caso da alteração do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública.02
Nas páginas 393-394 de seu livro Ação civil pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.03
Atualmente, com a implementação da Emenda Constitucional n. 45/2004, é de competência do Superior Tribunal de Justiça realizar a homologação de sentenças estrangeiras (art. 105, inciso I, alínea "i" da Constituição Federal de 1988).