1. INTRODUÇÃO
Tema demasiadamente controvertido e repleto de polêmicas é a aplicabilidade do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito, e de nenhuma forma poderia ser diferente, primeiramente porque se determinado desastre veicular obtiver como resultado a morte das vítimas, e o Juiz entender que houve dolo, automaticamente ele deverá submeter o processo ao crivo do Tribunal do Júri, detentor da competência de julgar os crimes dolosos contra a vida, e será utilizado Código Penal para efeito de adequação da lei ao fato; no entanto, se o julgador entender que o crime foi culposo, o processo já não será de atribuição do Tribunal do júri, mas do Juiz competente, e será regido tão somente pelo código de trânsito Brasileiro.
Ademais, é de se ressaltar que a diferença entre os institutos no que se refere a aplicação das penas por crimes de trânsito é descomunal, e isto é plenamente razoável, até porque de um modo geral os crimes por meio dos quais há a intenção de praticar o delito naturalmente devem ser punidos com maior severidade do que aqueles onde não houve tal ânimo.
Questões como as supramencionadas, relacionadas à competência ou a aplicação das penas seriam, a princípio, atribulações inerentes a quaisquer crimes que admitem as modalidades culposas e dolosas, no entanto, insta salientar que o marco divisório entre o dolo eventual e a culpa consciente é deveras tênue, consistindo em uma tarefa bastante complexa para qualquer magistrado a decisão sobre qual o instituto mais adequado a cada caso.
Como se não fosse suficiente a dificuldade natural a decisão entre o dolo eventual e culpa consciente, o magistrado, dependendo das circunstâncias do crime, pode vir a enfrentar diversos outros obstáculos capazes de colocar em cheque a sua decisão final, consistentes em fatores externos diretamente relacionados à vultosa demanda inerente aos magistrados, além de óbices oriundos da repercussão do próprio caso, se eventualmente o acidente for de grandes proporções ou envolvendo pessoas conhecidas ou de determinada influência.
Toda esta problemática será elucidada no presente trabalho monográfico, de modo a frisar a indispensabilidade de um julgamento livre de quaisquer vícios no que tange ao tema em tela e, consequentemente, transmitir a necessária relevância à catastrófica situação relativa aos crimes de trânsito no brasil, tendo em vista que, ao longo das últimas décadas, as tragédias ocorridas nas ruas do país vêm tomando efetivo destaque. Estatísticas demonstram que anualmente o trânsito no Brasil é gerador de mais mortes do que as causadas durante a guerra que envolveu o Iraque em confronto com os norte-americanos, pois, no Brasil, aproximadamente 40 mil pessoas morrem anualmente por consequência de acidentes de trânsito, ao passo que dados atuais da Unesco enumeram 34 mil mortes no Iraque durante o mesmo período.
O referido tema tem importância impreterível no âmbito nacional, por ter aplicabilidade direta nos crimes responsáveis por milhões de mortes e desastres no país, convém lembrar ainda que
O Brasil é o 4º país do mundo com maior número de mortes no trânsito, razão pela qual a referida temática é pertinente e tem como uma de suas grandes referências a segurança do Tráfego de pessoas dentro da Nação.
O tema exposto é de grande valia social e acadêmica, tendo em vista que aborda um tema abarcador de diversas discussões intelectuais, a começar pela abordagem sobre a culpa e o dolo, dois institutos totalmente dissemelhantes na dogmática penal, pois a culpa é baseada nos pilares de previsibilidade objetiva do resultado e na falta de um dever de cuidado, enquanto que o dolo consiste na intenção clara e expontânea do indivíduo em fazer algo.
No entanto a problemática de fato fica mais interessante a partir do momento em que são consideradas as diversas bifurcações de tais institutos, tal situação pode levar à conclusão que os referidos institutos não estariam tão distantes quanto aparentemente demonstram ser.
Por fim, tal tema foi escolhido dentre tantos outros notadamente pela sua significativa relevância em todos os âmbitos, e sobretudo por se tratar de tema deveras delicado, pois é preciso que se demonstre as reais consequências que o emprego equivocado do dolo eventual e da culpa consciente pode acarretar, sobretudo na esfera dos crimes de trânsito, podendo inclusive ensejar precedentes perigosos.
Neste sentido, é importante observar que, se a análise dos crimes envolvendo veículos automotores estivesse apenas no campo do dolo, inexistindo modalidade culposa, como de fato existe em determinadas condutas delituosas, o resultado para fins de imputação seria o mesmo e não existiriam contradições, porém uma vez que a questão envolve também a culpa, a discussão vem à tona e a doutrina e a jurisprudência se fazem necessárias para solucionar os mais diversos pontos controvertidos que nascem da tênue linha que separa dolo eventual e culpa consciente.
Atualmente é possível verificar que as figuras do dolo eventual e da culpa consciente têm sido banalizadas em nossa sociedade. Verifica-se que a escolha entre um ou outro instituto muitas vezes se submete a fatores de repercussão midiática e demais influências externas, que nenhuma interferência deveriam ter para o direito.
Se observa em determinados acidentes veiculares, nos quais a autoridade policial não obteve sucesso, a partir de uma análise prévia, em verificar a existência de um dolo direito, que de pronto o Juízo profere sentenças condenando o agente na modalidade do dolo eventual sem motivo justificado, como se o réu houvesse assumido o risco do resultado, tal situação deveria ser inconcebível dentro da esfera jurídica.
O fato supracitado, não pode, em hipótese alguma, ocorrer com tamanha superficialidade de análise, a classificação em dolo eventual ou culpa consciente dentro da esfera dos crimes de trânsito não pode ser concluída sem que exista um cuidado redobrado, se faz imprescindível uma análise aprofundada feita, sobretudo, sobre a intenção do agente e as circunstancias do crime, sob pena de prejudicar ou beneficiar injustamente vários indivíduos na esfera penal.
Dessa forma, o presente trabalho monográfico tem como objetivo geral analisar, do ponto de vista jurídico, a possibilidade de se nortear com maior qualidade as decisões do âmbito penal, de forma a evitar que decisões sejam proferidas sem que haja uma profunda análise em cada caso específico, de forma que viabilize a perfeita distinção entre as modalidades do dolo e da culpa, permitindo que se possa obter a mais lídima justiça.
O referido trabalho tem pelo menos três objetivos específicos, o primeiro deles consiste em analisar detidamente os institutos do dolo e da culpa sob a ótica do Código Penal Brasileiro, doutrina e jurisprudência, sem perder de vista a necessidade de compreensão do tema de um modo compatível com os princípios norteadores do direito Penal.
Por sua vez, o segundo objetivo é apontar as hipóteses práticas por meio das quais se pode observar com maior clareza a dificuldade dos magistrados na aplicação dos institutos do dolo e da culpa, com suas respectivas modalidades.
Por fim, objetiva-se também obter conclusões sobre como melhor orientar o uso de tais institutos pelos Magistrados e tribunais de modo a incentivar a obtenção de uma justiça mais lídima.
No entanto, para que o presente projeto atinja o fim para o qual é proposto, é impreterível que seja elaborado em observância ao método sistemático, de forma que o conteúdo do presente trabalho seja aplicado de maneira totalmente sistematizada e sejam obtidos resultados que possam servir de base para o desenvolvimento de raciocínios progressivos e sequenciais.
2. O DOLO E A CULPA
O dolo e a culpa são institutos adotados pela norma penal brasileira, e têm repercussão direta no que tange à mensuração das penalidades decorrentes de sentenças proferidas imputadas a quaisquer agentes praticantes de fatos delituosos tipificados no Código Penal Brasileiro.
Para que advenha o dolo, se faz necessária a existência da vontade livre e consciente do agente, ao passo que a culpa advém quando a vontade do agente está afastada da prática do fato delituoso, porém está aproximada da omissão de diligência por imprudência, negligência ou imperícia. Todos estes conceitos, e outros derivados dos primeiros, no entanto, serão de maneira mais precisa e detalhada analisados nos tópicos subsequentes.
2.1 O dolo
Conforme o disposto no código penal brasileiro no art. 18, incisos I e II, o crime doloso é aquele por meio do qual existe a vontade do agente a partir do momento em que este quis ou assumiu o risco de produzir o resultado; o delito culposo, por sua vez, ocorre nas hipóteses de negligência, imprudência ou imperícia.
Dolo nada mais é do que a consciência e vontade de realizar uma conduta típica. Consiste na vontade realizadora do tipo objetivo, a qual é guiada pelo conhecimento dos elementos do referido tipo no caso concreto. Trata-se de ter ciência e, ao mesmo tempo, vontade de realizar os elementos objetivos de uma conduta tipificada. Em apertada síntese consiste em uma vontade que pressupõe um conhecimento. O conhecer, neste contexto, refere-se somente aos elementos objetivos do tipo, ao passo que a ciência da antijuridicidade fica a critério de análise em sede de culpabilidade.
Por fim, analisando-se o dolo à luz da teoria finalista da ação, e segundo o entendimento do doutrinador Damásio de Jesus, o dolo seria o elemento subjetivo do tipo, de tal forma que integra a conduta sem que a ação ou a omissão sejam caracterizados tão somente como formas naturalísticas de comportamento, e sim de maneira intencional. (JESUS, Damásio. 2009. p. 283).
2.1.1 Elementos caracterizadores do dolo
O dolo é um dos elementos subjetivos do crime, inseridos pela doutrina majoritária no item culpabilidade. Acerca disso, importante se faz expor os pensamentos conceituais expostos na lição de Eugênio Raúl Zaffaroni: “dolo é uma vontade determinada que, como qualquer vontade, pressupõe um conhecimento determinado” (ZAFFARONI, Eugênio Raúl. 2011. p.405), Hans Welsel, em outras palavras, afirma: “toda ação consciente é conduzida pela decisão da ação, quer dizer pela consciência do que se quer (o momento intelectual) e pela decisão a respeito de querer realizá-lo (momento volitivo)” (WELZEL, Hans. 1970, p.77), em síntese, ambos concordam que o dolo é formado por um elemento intelectual e outro volitivo.
O elemento intelectivo ou cognitivo consiste no conhecimento dos elementos que integram o tipo penal, é desnecessário, para a existência do elemento referido, o conhecimento da configuração típica, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias do fato necessárias à composição da figura típica no instante do cometimento do delito, inexiste dolo quando ausente o elemento cognitivo, ou seja, quando ocorre o desconhecimento total da lesividade da ação, exemplifica-se: quando o agente possui uma arma de fogo e pensa que é uma arma de brinquedo, ou quando um sujeito acredita que a menina, com quem está prestes a ter relações sexuais, tem pelo menos dezoito anos, quando na verdade tem apenas treze, em ambos os exemplos inexiste a figura do dolo, por ausência do elemento cognitivo.
Por sua vez, o elemento volitivo consiste na vontade de realização da conduta típica, observando-se que tal vontade deve abranger três elementos: O objeto da conduta, o meio empregado para alcançar esse objetivo, e as consequências derivadas do emprego desse meio.
A existência do elemento volitivo é igu almente impreterível para a existência do dolo, Importante destacar que este segundo elemento só é possível de se configurar caso o primeiro elemento (cognitivo) esteja configurado, nota-se que o instituto doloso não se sustenta apenas com o conhecimento das circunstâncias de fato, dependendo ainda da verificação de uma vontade diretamente dirigida à conduta delituosa.
2.1.2 Teorias do dolo
Com o fito de melhor elucidar a ideia de Dolo, importante se faz tecer os métodos doutrinários de conceituação do instituto, Leciona o mestre Rogério Greco que 4 teorias no mundo jurídico destacam-se na conceituação do instituto, seriam tais a Teoria da Vontade, Teoria do Assentimento, a teoria da representação e a teoria da probabilidade. (GRECO, Rogério, 2011, p.57).
Pela teoria da vontade, o dolo direto se origina quando surge vontade consciente de o agente praticar a conduta delituosa, consiste basicamente na previsão do resultado pelo autor do fato em conjunto com a vontade de produzi-lo, em outras palavras, o dolo seria apenas a vontade consciente de objetivar a prática da conduta delitiva, nos conformes do tipo penal incriminatório.
O sujeito agirá com dolo, de acordo com a teoria da vontade, sempre que praticar a conduta de modo consciente e voluntário. Surge quando o agente tem consciência do fato em comunhão com a vontade de praticá-lo. Tal teoria preceitua que o dolo consiste na intenção perfeita de fazer um ato que conhece ser contrário à lei. O dolo, dessa forma, seria formado pela vontade de praticar um fato típico, ainda que não se saiba de sua antijuridicidade. Em suma, o dolo seria a vontade dirigida ao resultado.
A referida teoria subordina o elemento intelectual do dolo, ou seja, a representação, ao elemento intrínseco de vontade, isto é, o querer realizar a conduta típica. Importante se faz ressaltar que esta vontade não se dirige à violação da lei, tal vontade, na realidade consiste em se realizar os elementos descritos por um tipo penal. Exemplifica-se por meio de um agente que deseja furtar um automóvel e o faz com sucesso. Importante se faz esclarecer que, para a existência do dolo, não se faz necessário que o autor do fato saiba que sua conduta é contrária à lei. Tal entendimento é o predominante na doutrina, e assim o é por motivos óbvios, até porque a ninguém é permitido alegar o desconhecimento da lei para descumpri-la.
Entretanto, determinada parcela doutrinária defende que só tão somente haverá dolo se o agente tiver ciência, no momento em que realiza a conduta, da antijuridicidade que é proveniente de sua ação. Tal conhecimento da antijuridicidade da conduta é denominado dolo normativo, que reside na esfera da culpabilidade.
Em seguida, na Teoria da representação, pode-se falar em dolo nos momentos em que o agente tiver tão somente a previsão do resultado como possível e, mesmo assim, decidir pela continuidade de sua conduta. Para a parcela filiada a tal teoria, não se deve buscar identificar se o agente havia assumido o risco de produzir o resultado, ou se, mesmo o prevendo como possível, acreditava sinceramente na sua não ocorrência.
Para a teoria da representação, simplesmente não há distinção entre dolo eventual e culpa consciente, tendo em vista que a antevisão do resultado leva à responsabilização do agente a título de dolo.
Segundo tal teoria, basta apenas que o agente tenha certa previsão do resultado como certo ou provável para que possa ensejar o dolo, dessa forma, tal instituto teria como elemento imprescindível o conhecimento dos elementos do tipo por parte do agente. Ela surgiu para solucionar determinadas lacunas decorrentes de alguns casos práticos, em que o agente demonstrava indiferença à produção do resultado, ou seja, não exteriorizando sua vontade na obtenção do resultado, simplesmente este não se importa se ele sobreviesse. Desta forma, a teoria da vontade acabou sendo insuficiente diante da realidade das condutas delituosas praticadas, e a teoria da representação, em tese, solucionaria tal conflito.
Porém, a teoria supramencionada sofreu inúmeras críticas, e mesmo seus autores reconheceram, posteriormente, que a representação não é suficiente para que se configure o dolo, é preciso também que o agente deseje realizar a conduta, ou ao menos assuma o risco de produzir aquele resultado previsto.
Por tal teoria, por exemplo, inexistiria quaisquer diferenças entre dolo eventual e culpa consciente, posto que há, em ambos, a previsão por parte do agente, basicamente, é o elemento volitivo.
Por sua vez, a teoria do Assentimento preceitua que o dolo urge quando o agente, prevendo o resultado delituoso como possível, da mesma forma contínua na prática assumindo o risco de produzi-lo, ainda que não o deseje diretamente.
Acerca de tal teoria, preceitua o doutrinador Juarez Tavares que a teoria do consentimento ou da assunção é a teoria dominante e tem como princípio basilar uma vinculação pessoal e subjetiva do agente para com o resultado (TAVARES, Juarez. 2010).
A supracitada teoria exige não apenas o conhecimento ou a previsão de que a conduta e o resultado típicos podem realizar-se, como também que o agente se ponha de acordo com isso ou na forma de conformar-se ou de aceitar ou de assumir o risco de sua produção (TAVARES, Juarez. 2010. p 278-279), diante de tal diagnóstico doutrinário, pode-se concluir, em apertada síntese, que neste instituto o agente, muito embora não objetive o resultado diretamente, o admite como plenamente possível, e o assume espontaneamente.
Para a teoria do consentimento ou assentimento, haverá dolo a todo momento em que o agente, uma vez que tenha previsto o resultado, ao menos concorde com a sua realização, ou mostre-se indiferente à mesma.
A teoria supracitada acaba, portanto, se tornando a real solução para o problema da teoria da representação, uma vez que se faz imprescindível que o agente mostre-se indiferente em relação à produção do resultado para que se caracterize plenamente o dolo, dando vida, portanto, ao instituto da culpa consciente, uma vez que para a caracterização do dolo já não mais seria suficiente a mera previsibilidade pelo agente.
Em apertada síntese, esta teoria requer um elemento intelectivo relacionado ao volitivo; o autor deve ter representado o resultado como possível e deve existir entre agente e resultado certa relação de vontade, ainda que tal vontade seja expressa pela indiferença do agente, por um consentimento.
Por fim, segundo a teoria da probabilidade, conforme as lições de José Mir Cerezo,“se o sujeito considerava provável a produção do resultado era meramente possível, se daria a imprudência consciente ou com representação” (CEREZO, José Mir, 2004 p. 149).
Pode-se afirmar, portanto, que a supramencionada teoria trabalha com dados estatísticos, ou seja, se de acordo com determinado comportamento praticado pelo agente, estatisticamente, houvesse grande probabilidade de ocorrência do resultado, consequentemente restaria evidente a hipótese de dolo eventual.
2.1.3 Espécies de dolo
É assente na jurisprudência a divisão do instituto do Dolo em duas espécies, quais sejam: dolo direto e dolo indireto, o dolo direto, se subdivide em duas subespécies: dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau. Por sua vez, o dolo indireto se ramifica em dolo alternativo e dolo eventual. No tangente à alternatividade do dolo, esta pode ser subclassificada em alternatividade subjetiva, quando se referir à pessoa, e alternatividade objetiva, que surge quando houver referência ao resultado).
Primeiramente discorrer-se à acerca do Dolo direto, o referido instituto, segundo as lições de Nucci (NUCCI, Guilherme de Souza, 2007, p. 220):
É a vontade dirigida especificamente à produção do resultado típico, abrangendo os meios utilizados para tanto. Exemplo: o agente quer subtrair bens da vítima, valendo-se de grave ameaça. Dirigindo-se ao ofendido, aponta-lhe um revólver, anuncia o assalto e carrega consigo os bens encontrados em seu poder. A vontade se encaixa com perfeição ao resultado. É também denominado dolo de primeiro grau.
Em outras palavras e em apertada síntese, o dolo direto ou de primeiro grau é aquele que se relaciona ao objetivo principal do crime desejado pelo agente.
O referido instituto pode ser melhor vislumbrado por meio do seguinte exemplo: uma pessoa que ateia fogo no navio para enganar a seguradora, matando, porém, os tripulantes de tal veículo de navegação marinha, em tal hipótese o dolo direto de primeiro grau no caso recai sobre o estelionato, o qual era o objetivo principal do agente, qual seja, enganar a seguradora.
O dolo indireto ou direto de segundo grau, por sua vez, recai sobre a morte dos tripulantes, pois, muito embora a intenção principal do agente fosse o estelionato contra a seguradora, as referidas mortes vieram a ser consequências do meio por ele escolhido, um efeito colateral autêntico.
Guilherme de Souza Nucci desenvolve o supramencionado conceito, definindo-o como “a intenção do agente, voltada a determinado resultado, efetivamente desejado, embora, na utilização dos meios para alcançá-lo, termine por incluir efeitos colaterais, praticamente certos.” (NUCCI, Guilherme de Souza, 2007, p. 221).
Exemplifica-se o tal instituto através do matador que, pretendendo atingir determinada pessoa, situada em lugar público, planta um dispositivo explosivo, que, ao detonar, certamente matará outras pessoas ao redor. Ainda que não quisesse atingir essas outras vítimas, não se incomoda com o resultado contanto que a bomba atinja sua finalidade arquitetada.
Aprofundando ainda mais os estudos sobre o dolo direto de segundo grau, Nucci afirma que “tal instituto se diferencia do dolo eventual, porque neste caso o agente não persegue o resultado típico atingido e a sua vontade, portanto, está configurada mais debilmente” (NUCCI, Guilherme de Souza ,2007, p. 221).
Adentrando no instituto do dolo indireto, observa-se que este se ramifica em dolo alternativo e dolo eventual, o dolo eventual será objeto de maiores estudos no capítulo subsequente, porém, acerca do dolo alternativo, este basicamente consiste em instituto por meio do qual o sujeito dirige a sua vontade alternativamente entre um ou outro resultado, por exemplo, o agente que desfere golpes de faca na vítima com intenção alternativa: ferir ou matar.
Nesta modalidade, a vontade do agente se dirige a um ou outro resultado, como por exemplo, matar ou ferir, qualquer deles. Diz que mesmo o agente, querendo o resultado, a vontade não se manifesta de modo único e seguro.
O Dolo alternativo pode também ser classificado com relação à pessoa, em situação determinada por meio da qual o agente dirige a sua vontade de maneira alternativa entre uma ou outra eventual vítima, exemplifica-se por meio de uma pessoa que atira em direção a outras duas, visando matar tanto uma quanto outra eventual vítima do disparo tal alternatividade entre a morte das referidas vítimas vislumbram a essência do conceito de dolo alternativo.
No que tange à figura do dolo cumulativo, esta consiste na vontade interna de se praticar duas ou mais condutas no intuito de alcançar dois ou mais resultados pretendidos, é possível constatar que no dolo cumulativo há mais de um dolo manifestado de forma sequencial e sob o mesmo bem jurídico, tal conceito pode ser assimilado a um dolo direto acumulado, seriam vários dolos agregados em sequência.
A espécie dolosa supramencionada ocorre na denominada “progressão criminosa”, que consiste na situação em que o agente deseja produzir um resultado, mas, após atingi-lo, opta por prosseguir com outra sequência de atos, terminando por produzir lesão ainda mais grave sob o mesmo bem jurídico.
Na hipótese acima, tendo em vista que o segundo resultado da progressão criminosa é mais grave que o primeiro, aquele absorve este, de tal forma que o réu deverá Responder pelo dolo do resultado mais grave.
Tal fato conceitua o princípio da consunção, explanado pelo doutrinador Rogério Grecco como sendo o princípio por meio do qual um ou mais ilícitos penais, denominados consuntos, servem como fases de preparação ou de execução de um outro ato ilícito, mais grave que os primeiros, chamado consuntivo, desta forma o sujeito ativo só deverá ser responsabilizado pelo ilícito mais grave, por exemplo: o crime de furto qualificado (art. 155, § 4º, do Código Penal), não se pode, inicialmente, dizer que tal crime é consuntivo, pelo menos não até haver a correspondência íntima de tal delito com outro crime (GRECO, Rogério. 2007).
Porém, em uma situação hipotética, em que determinado agente, objetivando furtar bens de uma residência, escala o muro que a envolve, e se utilizando de chave falsa para abrir a porta da casa para, assim, penetrar no seu interior, subtraindo-lhe os bens e fugindo logo em seguida, resta configurado o princípio do crime consuntivo, tendo em vista que o furto qualificado pela escalada e pelo emprego de chave falsa (art. 155, § 4º, II, 3ª figura, e III, do Código Penal) absorve o consunto, vale dizer, a violação de domicílio qualificada (art. 150, § 1º, 1ª figura, do Código Penal), que tão somente lhe serviu de meio ou fase executória necessária.
Retornando às classificações das modalidades dolo, insta conceituar a figura do Dolo de dano, que se trata da consciência volitiva que objetiva praticar uma conduta visando causar danos a um bem jurídico objeto de tutela, nesta espécie o agente quer o dano, ou assume o risco de produzi-lo, um simples exemplo seria o homicídio doloso, pois na referida hipótese resta claro observar que o elemento subjetivo do agente se dirige ao dano da vítima, exemplifica-se ainda a referida modalidade dolosa pela conduta subsumidas no artigo 155 do Código Penal, qual seja, o crime de furto.
Outra figura dolosa merecedora de destaque é o dolo de perigo, neste caso, o elemento subjetivo do agente se direciona tão somente ao perigo. O agente, muito embora não queira, tampouco assuma o risco de produzir o dano efetivamente, deseja ou assume o risco de alcançar o resultado de perigo.
Neste caso, é o perigo que constitui o objetivo do agente e, consequentemente, a figura típica. Exemplifica-se pelo crime tipificado no artigo 130 do Código Penal, consistente no crime de Perigo de contágio venéreo, conforme o próprio nome do delito faz prova, neste crime o perigo é o objetivo principal do agente, e não o dano.
O dolo pode ser também qualificado quanto a sua finalidade, dividindo-se entre dolo genérico e dolo específico.
O dolo genérico consiste na prática do tipo penal sem outra finalidade senão o próprio resultado único tipificado na lei. O doutrinador Fernando Capez conceitua tal modalidade como aquelas nas quais não consta nenhuma exigência de finalidade especial, ou seja, as que não têm expressões complementares como “com o fim de”, “para”, etc… (CAPEZ. Fernando, 2005, pg 203), exemplifica-se o referido instituto por meio do crime de homicídio, em que tão somente a vontade de ceifar a vida da vítima já é elemento caracterizador do dolo, não sendo necessário que qualquer outro elemento surja para que o delito seja consumado.
O dolo específico, por sua vez, ocorre quando existe, além da conduta tipificada, uma finalidade específica também inserida no tipo delituoso, tal modalidade dolosa apenas existe nos tipos penais aonde há elementos subjetivos, ou seja, uma finalidade especial do agente.
Fernando Capez assim separa os institutos do dolo genérico e o dolo específico:“nos tipos anormais, que são aqueles que contém elementos subjetivos (dolo específico), o dolo não basta, pois o tipo exige, além da vontade de praticar a conduta, uma finalidade especial do agente (...) sendo necessários para que haja correspondência entre a conduta e o tipo penal”.
Ou seja, sinteticamente falando, o fator diferencial entre os institutos dolosos específicos e genéricos é a existência ou não do elemento subjetivo.
O dolo específico pode ser facilmente exemplificado através de uma situação de extorsão mediante sequestro, pois em tal hipótese, não se faz suficiente a mera conduta de sequestrar alguém para que o delito seja consumado, pois além disso se faz necessário que o autor tenha a finalidade de obter para si ou para outrem, determinada vantagem como custo do resgate da vítima, frise-se que tal finalidade específica é exigida no próprio dispositivo penal, tal qual a conduta principal, pois ambas são igual mente imprescindíveis para a consumação do crime.
O dolo pode, ainda, ser classificado quanto ao tempo em relação à conduta, neste caso é dividido em três subespécies, quais sejam: o dolo antecedente, o dolo concomitante, e o dolo subsequente.
O dolo antecedente é aquele que se origina antes mesmo da origem da própria conduta, trata-se de modalidade dolosa não punível regra, a única exceção seria na hipótese de embriaguez completa acidental, em que se desvanece qualquer censura ou freio moral, ocorrendo confusão mental e falta de coordenação motora, não tendo o agente mais consciência e vontade livres.
Por sua vez, o dolo contemporâneo é aquele que advém em momento semelhante ao da conduta, a referida modalidade está presente na grande maioria dos crimes e é plenamente punível.
Por fim, o dolo subsequente é aquele que surge em momento posterior à conduta e, tal qual ocorre na figura do dolo antecedente, esta modalidade não é punível, exemplifica-se por meio de um agente que consumou o crime de homicídio, porém até o momento da consumação este não tinha a intenção de matar, certamente que, acaso o agente venha posteriormente a sentir que de fato deveria ter matado e, dessa forma, surgindo o dolo, ou a intenção de matar de maneira posterior à prática do homicídio, este responderá tão somente pelo crime de homicídio culposo, tendo em vista que o dolo apenas surgiu em momento posterior á prática da conduta delituosa, sendo, em tal momento, irrelevante a existência de dolo no que tange à tipificação penal do agente.
Ainda acerca do dolo subsequente, o doutrinador Günter Stratenwerth, em apertada e objetiva síntese, traduz o dolo subsequente da seguinte forma: “como não se pode querer realizar o que já aconteceu, a “mera aprovação retroativa de um resultado já produzido nunca constitui dolo” (STRATENWERTH, Gunter. Derecho penal- Parte general, p.411).
2.2 A culpa
O instituto da culpa é assim definido pelo Código Penal:
Art. 18 - Diz-se o crime: II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Tal conceito foca nos elementos caracterizadores da culpa, qual seja, imprudência, imperícia e negligência, elementos estes que serão explanados com maior riqueza de detalhes posteriormente.
No entanto, impreterível se faz, inicialmente, expor o conceito de culpa segundo as lições de Karl Engisch, o qual conceituou o referido instituto como aquele que “surge em um momento essencial entre a ação (ou omissão) provocadora do resultado e a culpabilidade, qual seja, a da omissão de cuidado externo, sem a qual não seria possível fundamentar a antijuridicidade do crime culposo” (ENGISCH, Karl.1964. p.29-31).
A partir de então a doutrina majoritária tem considerado a violação do dever de cuidado como condição impreterível para a existência do crime culposo, ou seja, atua culposamente todo aquele que se omite de seu dever de cuidado, que lhe é, pelo direito, incumbido, e de plena previsibilidade no tocante ao resultado.
Maioria significativa dos Autores também seguem tal linha de raciocínio, aduzindo que há crime por ação culposa a partir do momento em que o autor do fato, sem vontade própria, desobedece a uma norma de conduta impositiva, cuja observância é juridicamente exigível, sendo causa de um resultado ilícito, na suficiência requerida pelo tipo, consistindo tal conduta em violação de norma.
A culpa também pode ser conceituada como uma espécie de conduta humana que se caracteriza pela realização do tipo de uma lei penal, através da lesão a uma obrigação de cautela, objetivamente indispensável para proteger o bem jurídico, neste caso pode-se dizer que a culpabilidade do agente se sustenta no fato de não haver este evitado a realização da tipificação penal, muito embora fosse capaz e em plenas condições de fazê-lo.
Outro conceito, bem mais objetivo e prático, de culpa seria: crime em que o agente, violando o cuidado, a atenção ou a diligência a que estava adstrito, gera resultado que poderia ser previsto, ou que foi previsto, porém foi suposto, de maneira leviana, que não ocorreria.
Por fim, segundo as lições de Júlio Fabbrini Mirabete, a culpa é conceituada como “a conduta humana voluntária, tanto por meio da ação quanto pela omissão, que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado” (MIRABETE, Júlio Fabbrini, Manual de direito penal, p. 138).
2.2.1 Elementos caracterizadores da culpa
Tendo como base o retro mencionado conceito, é possível se verificar que vários são os requisitos para que haja a perfeita caracterização do delito culposo, quais sejam: a tipicidade; a previsibilidade da conduta; o nexo de causalidade entre a conduta do agente que se omite de atentar para a sua obrigação de cuidado; o resultado lesivo advindo da mencionada omissão, sendo que tal consequência não seve ser desejada pelo agente, e sequer assumida pelo agente; a inobservância de um dever de cuidado objetivo (seja por imprudência, negligência ou imperícia); e a conduta humana voluntária, seja ela por comissão ou por omissão.
2.2.2 Da imprudência
A princípio, e em apertada síntese, incorre em imprudência todo aquele que, nos casos previstos em lei, gera um resultado tipicamente antijurídico, muito embora sem vontade de fazê-lo, porem o faz por motivo de um descuido por ele evitável.
Consiste tal instituto na prática de uma conduta comissiva de forma descuidada ou perigosa, ocorre, via de regra, quando o agente está desatento, e consequentemente se omite de seu dever de cuidado.
O referido instituto advém da falta de cautela, de precaução, está contido em atuações afobadas, precipitadas, sem o devido “cálculo” prévio, exemplifica-se por meio de um agente que decide manejar uma bomba próximo a outras pessoas ou participar dos conhecidos “pegas” ou “rachas” e, para tanto, dirigir desenfreadamente.
Imprudência, segundo Júlio Fabbrini Mirabete, seria “a conduta positiva praticada pelo agente que, por não observar seu dever de cuidado, causasse o resultado lesivo que lhe era previsível”. (MIRABETE, Júlio Fabbrini, Manual de direito penal- Parte geral, p. 138), importante frisar que a característica “positiva” da imprudência decorre de sua origem advir, não de uma omissão, mas de uma comissão..
Por sua vez, o doutrinador Aníbal Bruno define a imprudência como sendo “a prática de um ato perigoso sem os cuidados que o caso requer”, ou seja, em apertada síntese, é um ato comissivo e perigoso diante da ausência de cuidado que o caso exige. Exemplifica-se por meio de um agente que dirige a velocidades exorbitantes e descondizentes com os limites exigidos pelas normas de trânsito.
Dessa forma, a partir dos conceitos supracitados, pode-se concluir que, surgindo situação em que é possível para qualquer homem médio evitar o resultado lesivo, porém, o agente não evita puramente por falta de observação de seu dever de cuidado, resta plenamente caracterizada a imprudência.
2.2.3 Da negligencia
A negligência consiste na inércia psíquica, pela indiferença do agente, que viola o dever de cuidado objetivo puramente por razões de preguiça e displicência. Tem relação com a inatividade, com a forma omissiva.
Tal instituto pode ser exemplificado por meio de um agente que deixa substâncias corrosivas ao alcance de menores. A negligência é uma falha no cumprimento de dever jurídico, decorrente da omissão da atitude necessária para evitar a lesão típica plenamente previsível pelo homem médio.
A principal diferença entre a negligência e a imprudência está na atuação ou não do agente, pois a negligência consiste em modalidade de culpa por omissão, ou “in non faciendo”, ao tempo em que a imprudência, por sua vez, consiste em modalidade culposa por comissão, também chamada culpa “in faciendo”
Impreterível destacar que, na negligência, a possibilidade do resultado não passa em quaisquer momentos pelo pensamento do agente, portanto, pode-se dizer que a negligência é, em apertada síntese, aquilo que não foi feito, mas deveria ter sido, exemplifica-se tal situação por meio de agente que dirige seu veículo com os pneus gastos e não os troca por desleixo, vindo, posteriormente a causar um desastre de graves proporções.
O instituto da negligência pode ser subdividido em dois requisitos, o primeiro requisito é o objetivo, que diz respeito aos fatos, e outro é o requisito subjetivo, que diz respeito ao sujeito relacionado aos fatos.
O elemento objetivo consiste, basicamente, em não se proceder com o cuidado a que se está obrigado, pressupondo, para ser configurado, a existência da violação de um dispositivo legal.
O elemento subjetivo se refere à conduta sem o cuidado inerente à capacidade, tomando por base um ideal de padrão humano razoável, face às variadas circunstâncias, existirá, portanto, um maior ou menor grau de habilidade.
Um clássico exemplo de conduta negligente é o caso de um eventual motorista que não conserta os freios já desgastados de seu automóvel, Pode-se citar também o exemplo do pai que deixa instrumentos corrosivos ou pontiagudos ao alcance de seus filhos menores.
Cumpre destacar, entretanto, que o instituto da negligência não abrange eventuais omissões de fiscalizar serviço alheio, na hipótese em que tal serviço for executado por profissional qualificado e especificamente contratado para tal fim, observando-se que, nesta hipótese, deve prevalecer o princípio da confiança, até porque seria inviável para qualquer homem médio carregar o ônus de fiscalizar todos os serviços prestados diariamente.
2.2.4 Da imperícia
Consiste basicamente na incapacidade, despreparo, ou ausência de conhecimentos técnicos suficientes para o exercício de arte, profissão ou ofício.
Se eventualmente a hipótese concreta surgir de falha que não esteja dentro do âmbito profissional ou técnico, esta enquadra-se nos moldes da negligência ou da imprudência.
O termo imperícia se refere a situações ocorridas no âmbito da arte ou da profissão, e geralmente decorre da falta de conhecimentos ou da ausência de prática para realização de determinada atividade.
Portanto, se, eventualmente, uma parteira (profissional especializada) causar a morte de uma paciente durante um parto por inobservância dos deveres de cuidado objetivos, terá sido imperita, se for uma pessoa leiga, por outro lado, será imprudente.
A imperícia pressupõe a qualidade de habilitado para o agente no exercício de atividade profissional, exemplifica-se a partir de um motorista profissional que apresenta falta de habilidade ao conduzir seu veículo.
Ressalte-se que é plenamente possível que juridicamente mais de uma modalidade de culpa possa existir no mesmo fato. Exemplifica-se pela negligência e a imprudência: poderão coexistir na eventual hipótese de um motorista irresponsável que olvidou de trocar os pneus do carro e dirigia em alta velocidade, fatores que culminaram no atropelamento de um pedestre, neste caso, foi o agente tanto imprudente quanto negligente. (CAPEZ, Fernando, 2003).
Um segundo exemplo seria o de um motorista profissional dirigindo em alta velocidade nas vias, que posteriormente vem a matar um transeunte, neste caso estariam presentes tanto a imperícia quanto a imprudência. (CAPEZ, Fernando, 2003).
Por fim, pode haver uma combinação entre imperícia e negligência, quando, por exemplo, um profissional da saúde atua sem tomar as medidas de cuidado básicas e necessárias a determinada atividade cirúrgica, vindo posteriormente a ceifar a vida de seu paciente (CAPEZ, Fernando, 2003).
Importante destacar que as três retromencionadas hipóteses de cumulação de modalidades culposas têm efeito concreto no tangente ao grau de culpabilidade, portanto pode influenciar na fixação da pena, conforme o disposto no artigo 59 do Código Penal, verbis:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (grifo não conta no original):
(...)
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos.
A inclusão da imperícia como modalidade de culpa ao lado da negligência e da imprudência, contudo, não é aceita por unanimidade da doutrina, interessante, nesse sentido, apontar as considerações de José Carlos Tórtima, professor de direito penal na Faculdade Santa Úrsula, para ele não parece coerente admitir-se imperícia como modalidade de conduta culposa quando se sabe que esta pressupõe, uma ação ou omissão voluntária do agente que, entretanto, não deseja o resultado lesivo. (TÓRTIMA, José Carlos. 1991. P. 399-401).
Ressaltam que as falhas na conduta decorrentes exclusivamente da imperícia não guardam nenhuma vinculação guardam com a vontade do agente.
Para a parcela de doutrinadores favoráveis a este pensamento, nenhuma pessoa atua com imperícia por assim o desejar. Pelo contrário, entendem que a experiência do cotidiano demonstra que o excesso de escrúpulo em acertar não raro leva o indivíduo a situações de tensão que terminam por lhe comprometer a clareza de raciocínio e a naturalidade de movimentos, indispensáveis para o bom desempenho das tarefas de sua arte, ofício ou profissão.
Um argumento que pode ser contraposto ao referido entendimento seria o de que o imperito deveria ter a prudência de não chamar a si tarefas para as quais não se considere habilitado.
No entanto, a supramencionada parcela entende que o referido argumento, na verdade acaba por definir a imperícia como mera submodalidade de culpa, derivada ora da imprudência, ora da negligência, fato que induz à conclusão da total inutilidade da inclusão do instituto “imperícia” no texto legal.
Dessa forma, todo aquele que lidasse inconsideradamente com o perigo, aceitando tarefas ou missões para as quais não se sentisse suficientemente preparado, encontrar-se-ia abrangido pelo manto da imprudência, e não por sua falta de aptidão. Utilizando como argumento principal que o desvalor da conduta contrária ao dever se encontra sempre no ato inicial voluntário, e nunca na ação posterior, notadamente quando é totalmente insuscetível de controle pela vontade do agente.
Por fim, a parte da doutrina contrária à inclusão da imperícia defende que não faz sentido aplicar a lei penal ao motorista cauteloso, obediente às regras do trânsito e que, não obstante, por inabilidade, vem a perder o controle do veículo causando um desastre. A apuração da culpa em tais hipóteses deveria ser transferida para o âmbito da responsabilidade civil.
2.2.5 ESPÉCIES DE CULPA
Diversas são as classificações existentes na doutrina acerca da culpa, impreterível se torna, contudo, enumerar as principais, quais sejam: culpa consciente, culpa inconsciente, a culpa imprópria, e o preterdolo, que na verdade é um instituto sui generis, que envolve características tanto do dolo como da culpa.
De início, insta conceituar a culpa inconsciente, que é a modalidade culposa por meio da qual o fato era previsível, porém, o agente não previu, por falta da atenção que se fazia devida no momento. Em suma, a culpa inconsciente é a culpa sem previsão, por parte do agente, sobre um fato plenamente previsível.
Na culpa consciente, que será objeto de estudos mais detalhados no capítulo subsequente, o agente, muito embora preveja o resultado, acredita piamente que este não ocorrerá, nesta hipótese existe a noção da existência do resultado, porém o agente tem fé de que pode evitar com sua habilidade, diante do fato de confiar exageradamente nas circunstâncias do caso.
Insta destacar que tal modalidade de culpa difere do dolo eventual, tendo em vista que, na segunda hipótese, o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra, porém tal assunto será delineado com maior aprofundamento no capítulo seguinte.
Por sua vez, a culpa imprópria, também conhecida como culpa por extensão, assimilação ou equiparação, advém no momento em que o agente imagina estar acobertado por uma excludente de ilicitude, quando, na realidade, não está, fato que o leva a cometer uma conduta delituosa.
Tal possibilidade ocorre nas hipóteses de descriminantes putativas em que o agente, em virtude de erro evitável pelas circunstâncias, dá causa dolosamente a um resultado, mas responde como se tivesse praticado um delito culposo,
O conceito legal de tal instituto encontra-se na segunda parte do §1° do artigo 20 do Código Penal, verbis:
§1° É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo (grifos não constam no original).
Exemplifica-se o presente conceito pela situação ilustrativa a seguir: “A” é inimigo mortal de “B”, de modo que “B” promete a “A” que na próxima oportunidade em que vê-lo, irá matá-lo. Passados vinte anos, “B” reencontra “A”, e corre em sua direção, situação que leva “A”, que se encontrava armado na ocasião, a desferir tiros contra “B”, matando-o instantaneamente. Após matá-lo, “A” observa que “B” carregava em suas mãos um buquê de flores e uma carta por meio da qual “B” pediria desculpas a “A”.
Analisando a situação acima descrita, se observa que “A” imaginava que estava agindo em legítima defesa, uma descriminante putativa quando na verdade não era este o caso.
A primeira pergunta que deve ser feita em hipóteses como a elencada é: o erro em que “A” incorreu era inevitável? se a resposta for negativa, o agente restará livre de punibilidade, no entanto, se for afirmativa, o agente deverá responder a título de culpa, ainda que, no momento que houvesse feito os disparos, tivesse a intenção de matar.
Rogério Greco em sua obra “Curso de Direito Penal- Parte Geral”, justifica a aplicação da culpa na hipótese supramencionada afirmando que “diante da ocorrência de erro inescusável, embora a atuação seja dolosa, o legislador, por questões de política criminal, determinou que haveria tão somente a punição com as penas de um crime culposo” (GRECO, Rogério, 2011, página 209).
2.2.6 PRETERDOLO
Por fim, resta manifestar considerações acerca do peculiar instituto do PRETERDOLO, que na verdade é um instituto possuidor de características tanto do dolo como da culpa, assemelhando-se em parte com ambos os institutos.
O preterdolo se origina nas situações em que o resultado ultrapassa acidentalmente a intenção do agente. Um exemplo clássico seria o do agente que pretende tão somente causar lesões corporais à determinada pessoa, mas exagera no uso da força e acaba tirando-lhe a vida, acarretando crime de lesão corporal seguida de morte, observa-se na referida hipótese que houve dolo nas lesões causadas, contudo, culpa no homicídio, pois a intenção do agente era somente causar danos físicos à vítima.
O autor Rogério Greco reitera os termos conceituais supracitados, afirmando que “se fala em preterdolo quando o agente atua com dolo na sua conduta e o resultado agravador advém de culpa, ou seja, há dolo na sua conduta e culpa no resultado; dolo no antecedente e culpa no subsequente.” (GRECO, Rogério, 2011, p. 47, 72, 83).
Neste primeiro capítulo inicialmente foram delimitadas as fronteiras entre o dolo e a culpa por meio da análise detalhada das espécies do dolo, e suas respectivas teorias, de maneira a afastar ao máximo os institutos. No próximo capítulo, no entanto, o raciocínio será feito no sentido inverso, ou seja, demonstrar-se-á como os institutos do dolo e da culpa podem se aproximar, por meio da detida análise do dolo eventual e da culpa consciente.
3. O PONTO DE ENCONTRO ENTRE O DOLO E A CULPA
O dolo e a culpa, muito embora sejam institutos diferentes do direito penal, tendo sido suas dissemelhanças plenamente caracterizadas no Capítulo anterior, em determinadas situações podem se assemelhar bastante.
Nota-se a referida situação notadamente quando tiver de ser feita uma análise entre dois institutos específicos, quais sejam, o Dolo eventual e a Culpa consciente, pois, uma das distinções mais difíceis, sem dúvida, em Direito Penal é a concernente aos referidos institutos.
As referidas modalidades do elemento subjetivo do delito estão na “transição”, por assim dizer, das formas do dolo e da culpa em sentido estrito, e a importância prática da distinção entre estas é impreterível, tendo em vista que as penas para os crimes dolosos e culposos são diferentes no que se refere ao tempo de duração da pena.
3.1 A culpa consciente
A culpa consciente, que também pode ser denominada como Culpa com Previsão, é conceituada pelo doutrinador Cezar Roberto Bittencourt como “a hipótese por meio da qual o agente pode prever a possibilidade da produção do resultado ilícito, no entanto acredita sinceramente que tal resultado não ocorrerá” (BITENCOURT, Cezar Roberto. 2010. p.250).
Importante asseverar, nesse contexto, que a mera previsibilidade do resultado não é requisito suficiente para que se configure plenamente a culpa consciente, outra condição que deve haver é a de que haja uma confiança exacerbada do agente em suas habilidades de tal forma que o leve a praticar o fato delituoso, por fim, é importante que o agente não tenha desejo que ocorra a consequência danosa, portanto, há um total de três requisitos a serem cumpridos.
Com relação ao primeiro requisito, o da previsibilidade do resultado, este consiste na possibilidade concreta de o agente poder prever que a conduta por ele praticada é passível de produzir um resultado danoso. No que tange a tal afirmação, importante destacar que tal previsibilidade deve sempre ter como referência o discernimento de um homem mediano, ou seja, não se pode exigir que o agente preveja uma consequência danosa que não seria prevista de maneira normal por qualquer outra pessoa.
Pode-se notar que não é tão simples para o juízo analisar com precisão a presença de tal requisito, tendo em vista que, para tanto, este deve, em primeiro lugar, se visualizar no lugar do autor no momento do começo da ação, depois levar em consideração as circunstâncias do caso concreto que seriam cognoscíveis por uma pessoa de inteligência mediana, em conjunto com as circunstâncias conhecidas pelo autor e a experiência comum da época sobre os cursos causais para, somente então, poder precisar se houve ou não previsibilidade objetiva.
Interessante se faz observar que a decisão acerca da existência ou não de tal elemento pode se tornar em algo deveras confuso face à grande margem de subjetividade que há na determinação do conceito de “situações previsíveis para um homem de inteligência mediana”, e não haveria como ser diferente, até porque seria impossível tornar taxativa todas as circunstâncias danosas passíveis de previsibilidade, razão pela qual atualmente tal critério permanece dependente de interpretações caso a caso.
A seu tempo, também deve estar presente no íntimo do agente a crença sincera de que o evento não ocorra em face de sua habilidade, o doutrinador René Ariel Dotti caracteriza a culpa consciente como a “previsão do agente quanto à probabilidade do resultado que ele espera não venha a ocorrer, confiando em sua habilidade ou destreza para enfrentar a situação de risco (DOTTI, René Ariel, 2013, pg 421).
Em suma, o conceito supramencionado demonstra que a habilidade ou destreza do agente são fatores que o “cegam”, levando-o à crença equivocada de que a consequência danosa não ocorrerá, e que tudo ocorrerá sem prejuízo a ninguém, mesmo sabendo que tal fato é provável, trata-se de uma confiança exacerbada que obstaculiza o senso natural de percepção de risco pelo autor.
Por fim, há o requisito do não desejo da consequência danosa, o qual atua sempre em combinação com o requisito da previsibilidade objetiva, tendo em vista que o agente, muito embora atue com uma conduta cujo dano eminente é previsível para o homem médio, conforme explicitado no parágrafo anterior, apenas atua da referida maneira por estar com a mente obscurecida pela plena convicção de que nada de ruim ocorrerá, eis o segundo requisito portanto, pois no seu íntimo o agente não tem o menor desejo de que a conduta danosa venha a ocorrer.
O referido requisito pode ser plenamente exemplificado por meio de uma situação ilustrativa: um caçador que avista sua caça próxima a seu amigo e percebe que, atirando no animal corre o risco também de acerar nele, contudo, confiando em sua pontaria e acreditando que não o atingirá, dispara sua arma, errando a caça e ceifando a vida de seu (até então) amigo.
Ressalte-se que, no exemplo supramencionado, o agente não desejava de maneira alguma atingir seu companheiro, tampouco assumiu a possibilidade da produção do resultado, tendo em vista que acreditava cegamente que sua habilidade seria suficiente para afastá-lo.
3.2 O dolo eventual
O dolo eventual pode ser considerado como uma modalidade específica do dolo, e é descrito pelo doutrinador Guilherme de Souza Nucci como a “vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um resultado, não desejado, mas admitido quando unido ao primeiro” (NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de direito Penal, 2005, pg 213).
Diante desta noção conceitual inicial, importante se faz destacar a razão pela qual a segunda parte do inciso I do artigo 18 do Código Penal Brasileiro utiliza a expressão “assumir o risco de produzi-lo”, tendo em vista que o dolo eventual não está presente somente onde existe a vontade delitiva por parte do infrator, mas também ocorre onde existe o mero “conformismo” com a possibilidade de ocorrência do evento danoso.
Por sua vez, Damásio E. de Jesus descreve o dolo eventual como uma subespécie do dolo indireto, ao lado da figura do dolo alternativo, já explicitado no capítulo anterior, afirmando que o dolo indireto ocorre quando a vontade do sujeito não é direcionada à produção de um resultado danoso determinado. (JESUS, Damásio de. 2001, p. 288).
A seu tempo, o doutrinador Luiz Regis Prado, em seu conceito de dolo eventual, o entende como a oportunidade em que o agente “presta anuência, consente, concorda com o advento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo a renunciar à ação” (PRADO, Luiz Regis. 2012. pg. 383).
Em outras palavras, diante dos dois raciocínios supracitados, pode-se dizer que o dolo eventual advém em quaisquer situações por meio das quais o agente observe a eminência das consequências danosas de sua conduta da seguinte forma: “não importa o que acontecer, permanecerei com minha conduta até o final”, de tal forma que reste presente a indiferença do autor com relação ao resultado final, contanto que este obtenha o fim por ele desejado.
De fato, conforme afirmou Damásio de Jesus, a vontade do agente não está direcionada à produção de um resultado danoso determinado, mas isso não significa que o agente não cogite a possibilidade de sua ocorrência, pois, na verdade, a referida vontade está tão intimamente relacionada ao objetivo a que se submete, que os meios por meios dos quais se torna possível alcançar o fim passam a perder a relevância que deveriam ter dentro do bom senso do autor do delito.
O autor acima referido aduz também que o dolo eventual necessita de dois requisitos para se perfazer, quais sejam: a previsibilidade objetiva e a anuência do autor para com tal resultado.
O primeiro requisito, a previsibilidade objetiva, basicamente consistiria na real possibilidade de o agente prever que a conduta por ele praticada é passível de produzir um resultado danoso, com relação a tal afirmação, importante destacar que tal previsibilidade, tal como ocorre na culpa consciente, deve ser sempre pautada em comparação ao discernimento de um homem médio.
A seu tempo, a anuência do autor para com o resultado significa tão somente o consentimento livre do agente para com os resultados consequências de sua conduta.
No entanto, é de se destacar que o entendimento de que o agente não manifesta vontade pela ocorrência do resultado delituoso não é unânime, uma vez que doutrinadores contrários a este pensamento, entre eles o promotor público Valdir Sznick, manifesta o entendimento de que o autor do delito, factualmente, almeja sim a produção do resultado danoso, tendo em vista que, por antever a possibilidade catastrófica de sua conduta, e mesmo assim, permanecer firmemente focado na realização da conduta, por via de consequência, está desejando, ainda que indiretamente, a consumação dos danos. (SZNICK, Valdir. 1981. P. 46 a 60).
3.3 Distinções entre dolo eventual e culpa consciente
No intuito de delinear os supramencionados institutos, o doutrinador Fábio Bittencourt da Rosa afirma que podem ser estabelecidos três critérios distintivos, quais sejam: a seriedade do dano, a valorização do resultado e a credibilidade do evento (ROSA, Fábio Bittencourt da. 1975. P. 276-278). Se faz impreterível, portanto, que seja feita uma análise minuciosa de tais critérios no intuito de se estabelecerem fronteiras entre dolo eventual e culpa consciente de modo a que um não adentre na ceara do outro.
3.3.1 Critério da valorização do resultado
No tocante à valorização do resultado, o supramencionado autor descreve esse critério como o juízo valorativo que o agente utiliza para qualificar o resultado que pretende alcançar, exemplifica também que, na hipótese do dolo eventual, o valor qualificado pelo agente ao resultado é de tamanha estima, que se torna irrelevante para o autor do fato a eventual ocorrência de um delito, contanto que o resultado pretendido seja obtido.
Ainda segundo esse critério, se eventualmente o ganho como consequência do resultado for considerado pequeno para um homem médio, a tendência é que se caracterize o instituto da culpa consciente, tendo em vista que não seria razoável admitir que qualquer pessoa com a plenitude de suas faculdades mentais admitisse incorrer em crime para atingir um resultado que lhe fosse pouco proveitoso.
Abstrai-se que, segundo o critério da valorização do resultado, a diferença que pode ser estabelecida entre esses dois institutos tão próximos, é que no dolo eventual, a valorização subjetiva que o agente estabelece para o resultado da conduta é tamanha que a possibilidade em incorrer em delito torna-se aceitável pelo agente, por sua vez, na culpa consciente os objetivos atuais do agente não são suficientemente estimados pelo mesmo de modo a levá-lo a aceitar o resultado danoso, havendo, de fato, um receio por parte do agente de que o ato ilícito venha a ocorrer, dessa forma.
Dessa forma, fica um pouco menos obscura a dissemelhança quanto à valorização do resultado entre os dois institutos, pois, em apertada síntese, ao tempo em que no dolo eventual, o agente não tem preferência entre obter o resultado que almeja por fins lícitos ou ilícitos, contanto que o obtenha, já na culpa consciente observa-se que o agente tem uma preferência pelos meios lícitos em detrimento dos meios ilícitos.
As explicações supramencionadas esclarecem o motivo pelo qual o dolo eventual também pode ser denominado como dolo indireto, tendo em vista que, muito embora se trate de hipótese dolosa, o agente não deseja o resultado diretamente, mas indiretamente, eventualmente,
Factualmente a vontade de quem atua com o dolo eventual se direciona a um fim isento de qualquer proibição pelo direito, por outro lado, o meio escolhido para alcançar tal objetivo é o que, de fato, pode trazer problemas a terceiros, sendo tal meio propício a atingir um bem juridicamente tutelado pelo direito, fato este responsável por originar o crime, dessa forma, pode-se concluir que se o agente tivesse ciência da certeza de que o dano adviria, ainda assim não deixaria de praticar aquela conduta.
Exemplifica-se a supracitada situação por meio de uma pessoa desesperada dirigindo em altíssima velocidade em busca de resgatar seus filhos de um sequestrador que os capturou, e foge de maneira semelhante em outro veículo em alta velocidade. Durante a perseguição o pai aflito se depara com um grupo enorme de pessoas fazendo caminhada na mesma rua que ele deve cruzar se quiser alcançar o sequestrador.
Diante de tal situação fica evidente que ao pai restam apenas duas opções ou ele espera que lentamente as se afastem, e com isso perde a possibilidade de salvar seus filhos, ou dá a partida no veículo, acarretando lesões nas pessoas. Se o pai opta por salvar seus filhos e lesionar as pessoas ao redor, estará incorrendo em dolo eventual, pois, ciente de que não deve confiar em sua perícia, e tendo convicção do risco de sua decisão, não se importando com as consequências, tendo em vista uma preocupação ainda maior, qual seja a segurança de seus filhos, resta plenamente caracterizada a figura do dolo indireto, obviamente para este exemplo não deve ser levada em consideração a excludente de criminalidade do art. 19, n. I, do Código Penal.
Por outro lado, na culpa consciente o que se observa é que o agente, apesar de ter consciência do resultado criminoso como consequência provável de seus atos, ele espera evitar cometer delitos, ainda que imprudentemente, negligentemente ou sem perícia.
O referido instituto, por outro lado, pode ser exemplificado por um condutor apressado, que tão somente almeja chegar em sua residência o mais rápido possível, e para tanto dirige ultrapassando os demais condutores demasiadamente e, muito embora reconheça a possibilidade de gerar um eventual desastre, permanece crente em suas habilidades de motorista, até o momento em que ocasiona a morte de três ciclistas que também utilizavam a via naquele momento.
A partir deste segundo exemplo fica mais claro diferenciar os dois institutos, pois, neste caso, se o condutor pudesse antecipar que sua conduta traria as consequência que trouxe, certamente não teria dirigido com tamanha imprudência, pois a pressa para retornar a casa não é motivo para justificar o a morte de qualquer pessoa, pelo menos não seria para qualquer pessoa com a plenitude de suas faculdades mentais, logo o sujeito valoriza mais a conduta do que propriamente o resultado.
O valor do resultado ilícito para o sujeito é maior do que o lícito na hipótese da culpa consciente e, por isso, o sujeito jamais assumiria o risco de produzir a lesão.
3.3.2 Critério da credibilidade do evento criminoso
O segundo critério a ser analisado para que haja uma distinção mais precisa entre os dois institutos em tela é o da credibilidade do evento criminoso, o qual consiste na necessidade de existência da representação do ilícito no que concerne ao campo da probabilidade, em outras palavras, à medida que for perceptível para um homem médio a suscetibilidade da ocorrência de um crime, mais próximo estará o sujeito do instituto do dolo eventual.
Por outro lado, quanto mais obscura for para um homem médio perceber a possibilidade de ocorrência de um delito, mas próximo estará ele da culpa consciente.
A diferenciação entre os institutos do dolo eventual e da culpa consciente segundo esse critério é muito relevante, eis que o dolo e a culpa em sentido amplo se diferenciam predominantemente pela intenção ou ausência de intenção por parte do agente de cometer o delito, e a intenção, a seu tempo, esta indiretamente vinculada à percepção da suscetibilidade da ocorrência de um crime, por motivos óbvios, pois se um sujeito sabe que seus atos carregam consigo grande possibilidade de causar danos a outrem, ele tem o dever de cessá-los, sob pena de restar implícito que coadunava, ainda que indiretamente, com as consequências dele provenientes.
O doutrinador Fábio Bittencourt da Rosa explica o critério em tela da seguinte forma: “Quanto mais tenho certeza de que o dano ocorrerá, mais obrigação terei de me privar da conduta que a isso pode produzir” (ROSA, Fábio Bittencourt da. Dolo eventual e culpa consciente. Revista dos tribunais, São Paulo, v. 64, n. 473, p. 276, mar., 1975).
Em outras palavras, o dolo eventual restará presente sempre que o ato ilícito puder ser assimilável como uma alternativa provável de acontecer, por outro lado, se for tão somente possível, mas não provável, logo se caracteriza a culpa consciente.
Portanto, se o evento é capaz levar a crer que pode vir a acontecer, e mesmo assim o agente não renuncia à conduta delituosa, automaticamente este acaba por demonstrar uma resistência à norma jurídica, assumindo tacitamente o risco do resultado, configurando, pois, o dolo eventual.
3.3.3 Critério da seriedade do dano
Último critério a ser detalhado, a seriedade do dano consiste na valoração que a sociedade “adjetiva” às consequências decorrentes da conduta delituosa praticada pelo agente, de maneira que, à medida que a conduta for censurável pela comunidade, a figura do dolo eventual vai se caracterizando, e a da culpa consciente vai se afastando.
A proporção supracitada ocorre por motivos óbvios, pois deve ser levado em consideração que, quanto mais a sociedade avalia determinada consequência de conduta como “grave”, maior será o grau de reprovabilidade social imposto contra a tal conduta e, por via de consequência, maior também será a repressão do estado por meio de penas mais severas. Nesse sentido, é importante recordar que o dolo eventual é uma modalidade cuja pena é demasiadamente mais gravosa quando em comparação à pena aplicada a título de culpa consciente.
3.4 Semelhanças entre o dolo eventual e a culpa consciente
Os institutos de dolo eventual e culpa consciente muitas vezes se confundem, razão pela qual muitos magistrados incorrerem em erro quando da prolatação de suas sentenças, confundindo a aplicação dos institutos e, muitas vezes até, sendo incoerentes com o próprio entendimento, que hora tende à culpa, hora tende ao dolo, porém dificilmente firmando um posicionamento diante de peculiaridades que muitas vezes sequer deveriam ter o condão jurídico de minorar ou majorar uma decisão.
Por tal razão, resta impreterível demonstrar as semelhanças que existem entre os referidos institutos, de modo que, havendo a devida ciência, haja um foco maior tão somente nos pontos em que existem diferenças entre estes, fato que será de grande valia para delimitar meticulosamente dolo eventual e culpa consciente.
O doutrinador Luiz Regis prado afirma que o dolo eventual e a culpa consciente têm um aspecto em comum, qual seja a previsão do resultado ilícito, aduz o referido doutrinador que dentro de ambos os institutos, o agente tem consciência do fato.
O doutrinador Fábio Bittencourt da Rosa ratifica que os limites fronteiriços entre dolo eventual e culpa consciente constituem em um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito. Bittencourt concorda com o posicionamento de Luiz Regis prado, afirmando:
“Há entre ambos um traço comum: a previsão do resultado proibido. Mas, enquanto no dolo eventual o agente anui ao advento desse resultado, assumindo o risco de produzi-lo, em vez renunciar a ação, na culpa consciente, ao contrario, repele a hipótese de superveniência do resultado, e na esperança convicta de que este não ocorrerá” (DA ROSA. Fábio Bittencourt, 2011, p. 341).
Diante dos referidos entendimentos, é de se notar que o elemento fundamental de conexão entre os dois institutos mais aproximados do dolo e da culpa é a chamada previsibilidade.
No entanto, é importante destacar que a previsibilidade é um instituto que se ramifica em outros dois, são eles a previsibilidade objetiva e a previsibilidade subjetiva. Ambas as referidas modalidades devem estar presentes no caso concreto a ser analisado de modo que possa ser caracterizado o dolo eventual ou a culpa consciente.
Nesse sentido, se faz necessário que ambas as espécies de previsão sejam melhor conceituadas, de modo a permitir compreender a importância de cada uma, notadamente no momento de se demonstrar a atipicidade da conduta ou a exclusão da culpabilidade em um eventual caso concreto, tais fatos serão demonstrados nos subcapítulos a seguir.
3.4.1 Previsibilidade objetiva do resultado
A previsibilidade objetiva é conceituada como a capacidade de antever o resultado danoso, tendo como referência as condições por meio das quais que o agente esteja vivenciando no momento da conduta danosa e a possibilidade de antever o fato, ou seja, a capacidade de previsão que um homem de inteligência mediana teria dentro das circunstâncias do caso.
Importante destacar que, muito embora determinados fatos possam ser antevistos, é sabido que nem todos o são, por tal razão apenas pode ser exigido, pela esfera penal, que o agente preveja os acontecimentos ocorridos no interior da esfera das circunstâncias que o norteiam.
Na previsibilidade objetiva é impreterível que seja levada em consideração tão somente a previsão do agente em uma hipótese de acontecimento atual, em outras palavras, prever um acontecimento que poderia ocorrer em momentos imediatamente subsequentes à situação de perigo criada pelo agente, e não num futuro remoto, até porque a previsibilidade objetiva, para ser analisada de modo correto, necessariamente deve levar em consideração todas as circunstâncias concretas em que o agente se encontra.
3.4.2 Previsibilidade subjetiva do resultado
A previsibilidade subjetiva, diferente da objetiva, fica mais direcionada para o elemento psicológico como fundamento maior do crime culposo, ou seja, pode-se dizer que a previsibilidade subjetiva implica na possibilidade de o agente, conforme as suas condições particulares, tentar prever o resultado.
Nesse sentido, nota-se a diferença da supramencionada espécie em relação à previsibilidade objetiva, pois esta última representa a possibilidade de qualquer pessoa, dotada de razoável prudência e equilíbrio, o já mencionado "homem médio", em antecipar o resultado, desprezando o elemento íntimo do autor do fato, ao contrário da previsão subjetiva, que leva em consideração tal individualidade.
A importância da previsibilidade subjetiva está no fato de que as pessoas possuem distinções no que tange à inteligência, experiências pessoais e conhecimento técnico, portanto não podem ter suas capacidades de antever resultados danosos julgados como se fossem equivalentes.
Este capítulo se deteve a análise teórica do dolo eventual e da culpa consciente, no entanto no capítulo subsequente será feita a avaliação de tais institutos na prática, sobretudo serão demonstrados vários óbices à correta prolatação de sentenças pelos Juízes, os quais vão muito além da mera semelhança existente entre os referidos institutos.
4. A APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS DOLOSOS E CULPOSOS NOS CRIMES DE TRÂNSITO.
Como já fora dito no início do tópico referente a dolo e culpa, as referidas modalidades são aplicadas nos crimes tipificados pelo Código Penal Brasileiro que os envolve, determinados crimes tão somente admitem a modalidade dolosa, porém outros admitem ambos os institutos, no entanto peculiar é a aplicação destes no que tange especificamente aos crimes de trânsito, tendo em vista que, caso o magistrado entenda ser dolosa e não culposa a modalidade de crime de trânsito, o delito será julgado pelo Código Penal, ao passo que se for culposa, o será feita pelo Código de Trânsito Brasileiro, ademais há o fator da similitude entre os institutos do dolo eventual e da culpa consciente, fator que dificulta ainda mais a tarefa do julgador.
Todos os pontos supramencionados serão analisados e exemplificados no decorrer deste e do próximo capítulo, no entanto, a princípio, far-se-á um breve roteiro acerca da situação crítica em que o trânsito brasileiro se encontra e os fatores que a desencadearam, no intuito de melhor adentrar ao tema concernente aos crimes de trânsito.
4.1 As atuais condições do trânsito no Brasil.
Na atualidade vêm se tornando cada vez mais corriqueiros os desastres resultantes de acidentes de trânsito, as assustadoras estatísticas tornam evidente a gravidade da situação
É de se notar que o número de óbitos por motivos de desastres no trânsito aumentou em 37% (trinta e sete por cento) no período de 2002 a 2012, segundo os registros do Ministério da saúde, tendo sido contabilizado o número de 44.812 mortos só no ano de 2014.
No intuito de tentar reduzir tais números, existem vários recursos que vêm sendo implantados, dentre eles os radares de controle de velocidade, além da lei 11.705/2008, também conhecida como lei seca, tais meios certamente contribuem para a redução das mortes, tal qual o fazem o devido uso do capacete, e do cinto de segurança pelos cidadãos.
Contudo, a melhor solução, de modo a evitar que tais catástrofes se tornem rotineiras na vida dos nacionais, ocorrerá quando toda a população obedecer o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) em sua plenitude, no entanto os assustadores números levam à reflexão de que esta não é uma alternativa simples, outrossim grande empenho de toda a sociedade se faz necessário de modo a estabelecer planos de redução de desastres e mobilizar os chefes dos poderes a demonstrarem um compromisso maior, visando a segurança no trânsito.
O trânsito deve ser visco como um espaço coletivo e de tolerância, de maneira que possa ser viabilizado o seu uso de maneira plena por todos os cidadãos, porém, para tanto, os interesses pessoais não podem de maneira alguma passar por cima da obediência às normas de trânsito, tampouco da vida de outras pessoas.
No entanto, tem sido possível observar que o fenômeno mundial da agressividade no trânsito vem imperando sobre a vida em coletividade das pessoas, O doutor Leon James divide o referido efeito negativo em três níveis distintos, quais sejam, a impaciência, a luta de forças e a negligência (James, Leon, 2007, disponível em”http://www.soc.hawaii.edu/leonj/499f97/suzuki/dra/file12.html”).
O primeiro nível, o da impaciência, pode ser facilmente traduzido nos atos de não frenar diante de semáforos vermelhos, ou de trafegar em velocidades superiores às permitidas por lei, tais condutas, ainda que indiretamente, violam a segurança no transporte dos demais condutores, além de oferecer estímulos visuais de modo a “seduzir” outros motoristas a adotarem o mesmo comportamento imprudente no dia a dia.
Por sua vez, a “luta de forças” pode ser denominada como uma atuação do subconsciente humano, mais especificamente na parte responsável pela autoafirmação e competitividade, que levam o condutor a impedir propositadamente a ultrapassagem de outras pessoas, proferir insultos, bloquear a cruzamentos, entre outras reações mobilizadas pelo orgulho humano e a necessidade compulsiva de se “destacar” em uma hierarquia social, mesmo que para tanto seja necessário conflitar com outrem.
Por fim, o nível da negligência diz respeito à atuação altamente desrespeitosa e desinteressada do agente no que tange a segurança de seus próximos, e até mesmo de si próprio, também está intimamente relacionada à necessidade compulsiva de autoafirmação humana, fato que leva o agente a “duelar” nas ruas, fazendo ultrapassagens e cruzamentos desnecessários, no único intuito de inibir os demais condutores, andar em “zigzag”, dirigir alcoolizado, dentre outras condutas que terminam acarretando resultados catastróficos como resultado final, razão pela qual é o último nível de agressividade.
Delimitados os níveis de agressão no trânsito, resta averiguar acerca da origem de tal comportamento, e sua respectiva causa, geralmente os fatores que mais estimulam o estresse são ambientes físicos insalubres, desconfortáveis, tais quais ambientes muito fechados, com pouca iluminação, apertados, ou barulhentos, tal qual o próprio trânsito em congestão, devido ao elevado número de veículos nas vias.
É de salutar que os ambientes aonde é deficitária fiscalização por parte das autoridades policiais também terminam por desencadear uma zona de liberdade e estímulo para comportamentos hostis, diante do fato de despertar a sensação de impunidade por parte dos agentes agressivos, levando-os aos comportamentos supramencionados, os quais são motivados pela certeza da inexistência de posteriores sanções do poder público.
Nesse sentido, importante se faz pontuar que, muito embora a personalidade das pessoas seja relativamente constante, e sofra notável influência de fatores hereditários, ela não deixa de ser dinâmica e demasiadamente modificável, razão pela qual o ambiente em torno de onde as pessoas transitam pode perfeitamente exercer tanta influência psicológica quanto a própria estrutura comportamental adquirida por cada ser humano.
Muito embora atualmente existam tantos meios e previsões legais de sanções utilizados pelo Estado de maneira a tentar inibir a agressividade no trânsito, existe no Brasil uma força cultural enraizada no sentido de transgredir as normas, notadamente aquelas que visam a vida em passividade, de tal forma que é possível de se constatar a existência até mesmo de aplicativos divulgadores dos locais exatos aonde estão ocorrendo as chamadas “blitzes”, que deveriam ser batidas policiais inesperadas pelos condutores, de maneira que a medida preventiva termina por perder sua eficácia.
Por esta razão foram realizadas várias tentativas inibitórias no código de trânsito brasileiro, de modo a tentar coibir a ousadia no trânsito brasileiro, uma delas pode ser percebida no seu artigo 302, que versa sobre o homicídio culposo na direção de veículo automotor, quando em comparação à pena do artigo 121 §3° do Código Penal , verbis:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor;
Art. 121. Matar alguém:
(…)
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
Interessante observar que pelo simples fato de a morte da vítima se dar por consequência de um acidente de trânsito envolvendo o veículo automotor já é condição para o acréscimo de 1 ano na pena do agente.
Data-vênia, considera-se a referida rigidez como uma norma inconstitucional pois, muito embora sejam boas as intenções do legislador ao criar o também chamado “homicídio culposo qualificado”, nos dois artigos elencados inexiste uma vontade diretamente dirigida ao evento danoso, sequer há o conhecimento ou a previsão do mesmo, razão pela qual a discriminação mencionada fere o princípio da igualdade de tratamento, presente no artigo 5° da Constituição Federal, verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)
O mesmo se aplica à lesão corporal culposa do Código Penal, em seu artigo 129, § 6º, quando posto em comparação com o artigo 303 do CTB verbis:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – Detenção, de três meses a um ano.
Se a lesão é culposa: Pena – detenção, de dois meses a um ano (grifos não constam no original).
Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (grifos não constam no original).
Inobstante isso, estas medidas sancionatórias, somadas a outras inovações legislativas vêm sendo promovias no Código de Trânsito Brasileiro à medida que aumenta o número de mortes nas vias, as mais recentes foram promovidas pela lei n° 12.971/14 que, em apertada síntese, passou a punir com multas de maior monta as ultrapassagens proibidas, realizações de manobras perigosas, e as corridas em vias públicas, também denominadas “racha” ou “pega”, este último delito será objeto de maiores estudos pelo presente trabalho monográfico no momento oportuno.(disponível em”http://www.atribunamt.com.br/2014/10/alerta-para-mudancas-no-codigo-de-transito/comment-page-1/”)
Diante do exposto, resta evidente que a deficiência na educação nas escolas com relação ao respeito no trânsito, tal qual a falta de acompanhamento da parte psicológica nas autoescolas e demais centrais de formação dos condutores, desfalques estes significativos e de vultosa repercussão na numerologia concernente ao número de óbitos nas ruas.
4.2 Noções iniciais
Tendo em vista que o presente trabalho monográfico tem direção especial voltada para o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsito, importante se torna fazer determinados apontamentos no intuito de melhor elucidar a matéria.
Primeiramente é importante esclarecer que não existem crimes dolosos contra a vida no Código de Trânsito Brasileiro, pois esta é matéria restrita ao Código Penal, logo não há que se falar em dolo eventual no CTB, mas deverão ser aplicadas as penas do Código Penal brasileiro, ademais a matéria deixará de ser competência do Juízo comum e passará a ser do Tribunal do Juri sempre que o Juízo entenda que a hipótese versa sobre dolo indireto e o resultado tenha sido a morte da vítima.
Insta também definir o conceito de veículo automotor. Segundo o Código de Trânsito brasileiro, em seu anexo I, trata-se de “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”, tal conceito é bem delimitado e autoexplicativo, dispensando maiores aprofundamentos. (lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).
A seu tempo, conceito de trânsito, de igual importância, é definido pelo código de trânsito brasileiro em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro da seguinte forma: “Considera-se trânsito a utilização de vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga”(lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).
Por fim, também é conveniente delimitar o conceito de estar na direção, o qual é bem delimitado pelo doutrinador Gustavo Junqueira, em apertada síntese, como comandar o veículo de dentro dele, da maneira tradicional como é efetuada por todas as pessoas. (JUNQUEIRA, 2008, p. 372).
A supramencionada explicação pode até parecer deveras superficial, mas por meio dela é possível de se responder, por exemplo, a um questionamento exemplificativo hipotético, por meio do qual determinado agente verifica que seu carro está com a bateria fraca, portanto não está conseguindo acionar a ignição, então resolve empurrar seu carro no intuito de “pegar no tranco”, no entanto acidentalmente empurra o carro contra uma ladeira e não consegue sequer retornar a ele para freá-lo, e de modo trágico o veículo automotor atinge um transeunte, ceifando-lhe a vida.
Pergunta-se, no supramencionado exemplo o agente cometeu crime de trânsito? A resposta é negativa. Por fim, consoante os ensinamentos do referido doutrinador, conclui-se que o agente, não estando sob o comando do veículo, responderá por homicídio culposo segundo o Código Penal, e não pelos Código de Trânsito Brasileiro.
4.3 Óbices à correta aplicação dos institutos
Os institutos dolosos e culposos cumprem uma função demasiadamente importante no mundo jurídico, qual seja punir os indivíduos que têm o ânimo de causar algum dano a outrém de maneira mais severa do que determinado agente cometedor de um delito, no entanto sem o desejo íntimo de fazê-lo.
No plano teórico resta evidente a distância entre o dolo e a culpa, no entanto, a prática jurídica demonstra que não é tão simples a análise acerca da intenção do agente, notadamente quando se é magistrado e se está diante de uma situação real por meio da qual resta duvidoso se o agente acreditou sinceramente na não ocorrência do fato delituoso, muito embora tenha previsto o resultado; ou se ele simplesmente teria assumido o risco de produzi-lo.
A problemática trazida à baila tem outro porém, não bastasse a proximidade entre o dolo e a culpa na situação supramencionada, o operador do direito tem pela frente outros desafios, quais sejam, os fatores externos, que se traduzem nos mais diversos infortúnios à imparcialidade de qualquer Juiz, tendo em vista que, muito embora se presuma que os magistrados sejam órgãos imparciais e qualificados de maneira que possam aplicar as leis independentemente das circunstâncias, não se pode deixar de considerar o lado humano do Julgador, notadamente no que tange à modificação comportamental conforme o meio em que se encontra, dessa forma, não podem ser desconsiderados os dois principais fatores que, indiretamente, se colocam à frente do Juízo de modo a desafiar uma lídima aplicação da justiça, quais sejam: a influência midiática acrescida de sua repercussão, e o lado humano do próprio julgador, tais fatores serão demonstrados com maior precisão a seguir.
4.3.1 Influência midiática e repercussão na opinião pública
O primeiro óbice à imparcialidade do Juízo diz respeito à opinião da mídia, que certamente consiste em uma significativa influência externa no sentido de impedir que o réu obtenha um julgamento justo e na forma da lei.
Não se pode negar que a imprensa tem um poder persuasivo e até mesmo alienatório sobre a população como um todo, ela atua de maneira silenciosa e imperceptível notadamente para pessoas com baixo grau de escolaridade, e mais comumente quando se trata de hipóteses por meio das quais há um alcance de grande repercussão pública.
O grande prejuízo trazido pela mídia decorre especialmente de sua celeridade com relação à justiça, tendo em vista que quaisquer acidentes ou delitos de grande comoção passarão sempre pelo crivo popular por meio da mídia muito antes de iniciadas as discussões na esfera judicial.
Dessa forma, exemplifica-se a gravidade do tema em tela por meio de um exemplo: um desastroso acidente veicular que resultou em 5 vítimas e comoveu todo o município, o caso repercute intensamente nos maiores veículos de comunicação da região, de maneira que a população repudia o autor demasiadamente, de modo que este não pode mais sequer sair de casa em segurança, no entanto, na esfera judicial o caso ainda está sob análise, e o Juízo, durante a análise do mérito, entende que resta comprovada a previsibilidade do delito por parte do agente, no entanto resta duvidoso se o agente acreditava sinceramente que o fato delituoso não ocorreria, muito embora tenha previsto o resultado, o que configuraria a culpa consciente; ou se ele simplesmente teria assumido o risco de produzi-lo, visando outro fim que considerava mais importante do que a própria vida das vítimas, o que configuraria o dolo eventual, ao final o Juiz decide no seu íntimo, porém sem proferir a sentença, que a hipótese seria a de culpa consciente.
Dadas as circunstâncias supracitadas, por meio das quais é possível de se notar o quão próximos são os institutos do dolo eventual e da culpa consciente, o magistrado se vê diante de três possibilidades, a primeira seria se deixar levar pelo poder de manipulação midiático em conjunto com a população, se deixando envolver pelo ódio manifestado coletivamente e passando por cima de seus conhecimentos jurídicos, simplesmente decidindo conforme as emoções e os impulsos e condenando o autor como se este houvesse praticado dolo eventual, sem sequer fazer uma mais detida análise dos autos e, dessa forma, possivelmente ser posteriormente congratulado pelos leigos e demais alienados por tal conduta.
A segunda possibilidade, diante do exemplo trazido, seria o Juiz superar os impulsos de persuasão da mídia e, a princípio, entender como se a hipótese fosse a de culpa consciente, posteriormente cedendo, entretanto, aos anseios populares, e decidindo contra o próprio convencimento, sob o puro medo de vir a sofrer as mesmas represálias que o próprio réu.
Por fim, a terceira, e mais difícil, possibilidade seria a de o Juiz ir de encontro às notícias tendenciosas da mídia e se manter firme julgando nos exatos conformes de seu entendimento. Neste caso, o magistrado sofrerá críticas dos veículos de comunicação os quais contrariou e, logo em seguida, será alvo de uma reação negativa advinda dos populares alienados; os quais compõem a maioria da população brasileira e, de um modo geral, não têm o hábito de analisar o mérito e as fundamentações jurídicas do magistrado, focando-se apenas no resultado concreto das sentenças. Tal situação dificilmente é palatável, não apenas para o Julgador como também para quaisquer profissionais que tem o hábito de prestar suas funções com zelo e serem reconhecidos como idôneos por tais condutas.
Muito embora seja a mais complexa e arriscada forma de decidir, é aconselhável que o magistrado sempre atue em conformidade com a última alternativa apresentada, de modo a proteger o direito e conservá-lo de situações externas que nada tem a ver com sua correta aplicação.
No entanto a tarefa é árdua, e a mídia, que nesse sentido atua como real inimiga da imparcialidade, utiliza como escudo a garantia constitucional da liberdade de imprensa para realizar o seu julgamento paralelo ao julgamento judicial, sendo que aquele pode oferecer sanções tão punitivas quanto este, notadamente no tocante às sanções de cunho social.
A diferença, no entanto, é que o julgamento da mídia muitas vezes está distante do direito, e até mesmo da justiça, mas mesmo assim é capaz de influenciar nas decisões de mérito do magistrado, demasiadamente perigosas são, pois, as consequências desta rede de relações envolvendo a mídia, a opinião pública e as decisões judiciais.
A mídia ganha força sobre a liberdade de expressão, direito que, de maneira geral, trouxe vultosos benefícios a todos os nacionais, sobretudo às pessoas de baixa renda e com baixo grau de escolaridade, as quais foram a principais vítimas do período de desinformação e exclusão social gerado pelo golpe militar de 1964.
Desse modo, tais pessoas que passaram a vida sob o crivo de repressões militares e seus sucessores possuem atualmente uma enorme necessidade de conhecimentos gerais e da atualidade, que vem sendo suprida pela mídia e suas mais diversas formas de disseminação, no entanto tal realidade concedeu demasiado poder de controle popular àqueles que detém o controle dos veículos de comunicação, de tal forma que até mesmo as decisões judiciais atualmente podem ser alvo de sanções sociais, acaso não agradem aos componentes da imprensa e da televisão.
Interessantíssimos são, neste sentido, os comentários tecidos pelo autor Luiz Flávio Gomes acerca do tema quando traz à tona a figura da “extravitimização dos operadores da justiça”, que seria o próprio poder que a mídia exerce sobre o magistrado. O autor cita uma pesquisa realizada em Washington DC, por meio da qual foi revelado que 25% dos magistrados admitiram já terem exarado sentenças sobre influência decisiva das pressões midiáticas (GOMES, Luiz Flávio. 2013. p. 415).
Portanto, se fazem necessárias soluções urgentes a fim de promover uma convivência harmoniosa entre os princípios constitucionais e a publicidade do processo, para que esta não seja danosa às partes do litígio, mas útil, cumprindo devidamente a sua função de controle popular dos atos decorrentes do Judiciário e, para tanto, é impreterível que os julgadores observem atentamente os dizeres de Vieira, rememorados por Luiz Flávio Gomes, verbis: “cabe a ele (Juiz), como técnico, com formação profissional voltada para decisão de conflitos a coragem para subtrair-se ao estrepito midiático e não deixar levar, no seu mister, pelos ímpetos alimentados no clamor popular, pelas paixões contidas no eco da voz corrente da opinião pública” (GOMES apud VIEIRA, 2013. p. 416),
4.3.2 Natureza subjetiva do magistrado
Tema demasiadamente delicado, no entanto, essencial para a análise completa do tema em tela, é a abrangência da subjetividade dos magistrados em seus julgamentos.
É sabido e consabido que, por mais íntegro e transparente que venha a ser o magistrado, este jamais conseguirá se desfazer de sua subjetividade, tendo em vista que esta qualidade é inerente a sua condição de qualquer ser humano.
A tão sonhada neutralidade judicial plena, conforme denomina a doutrina, é inexistente na realidade fática, e não poderia ser diferente, porque o magistrado jamais poderá ser comparado a uma máquina ausente de emoções, portanto as experiências, emoções, opiniões e circunstâncias de cada caso sempre estarão presentes na sentença final do Juiz, notadamente nos crimes de trânsito, tendo em vista a intensidade de emoções, polêmicas e incertezas que geralmente permeiam esses tipos de delitos.
Nesse sentido, são demasiadamente pertinentes os comentários tecidos pelo autor Luiz Flávio Gomes acerca do tema, quando afirma que os mecanismos psíquicos de natureza emocional, tais quais os estereótipos, preconceitos, idiossincrasias e outras “deformações ideológicas” certamente influenciam, seja de maneira consciente ou inconsciente, o julgador. Deste modo, comprovadamente a tarefa de julgar não se limitaria tão somente às regras ou aos princípios metodológicos (GOMES, Luiz Flávio. 2013. p. 413-414).
O referido autor lembra ainda que, em pesquisa realizada, por meio da qual se questionavam vários magistrados sobre se acreditavam ser “neutros”, tão somente 17% se entendiam plenamente imparciais, evidenciando-se, portanto, que o poder judiciário como um todo inevitavelmente é influenciado pelas mudanças sociais, no entanto não necessita esconder tal realidade, e sim reconhecê-la e interpretar a lei de modo a aproximá-la dos processos de mudança inerentes às sociedades e, dessa forma, ainda que indiretamente, também influenciar na variabilidade comportamental da sociedade (GOMES, Luiz Flávio. 2013. p.414).
No entanto, convém lembrar que é indispensável para o julgador manter certa distância de sua condição humana na hora de aplicar as leis aos casos concretos, tendo em vista que a aplicação adequada da lei requer determinado afastamento da realidade de fato, a qual dificilmente lhe será acessível em sua plenitude; e uma maior aproximação da realidade de direito, que se resume aos autos do processo, tal realidade faz jus ao brocardo jurídico “o que não está nos autos não está no mundo”.
4.3.3 Dificuldade prática de discernimento entre os institutos
Além de todas as dificuldades mencionadas na diferenciação dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente, há doutrinadores que se insurgem contra a impossibilidade prática de discernimento entre o instituto do dolo eventual e da culpa consciente, as críticas se baseiam na impossibilidade humana de se comprovar que o agente agiu com indiferença durante a feitura do evento acidental delituoso, justamente porque tal prova estaria restrita à própria intimidade mental do autor, portanto restaria impossível ao magistrado invadir os pensamentos do agente e desentranhar seu verdadeiro semblante no momento dos fatos para concluir se este agiu ou não com indiferença no tocante ao resultado final.
Acerca deste tema, se faz impreterível atentar para os ensinamentos do autor Damásio de Jesus, verbis:
“Não se exige consentimento explícito, formal, sacramental, concreto e atual [...]. O consentimento que o tipo requer não é o manifestado formalmente, o imaginado explicitamente, o “mediato”, “pensado cuidadosamente”. Não se exige fórmula psíquica ostensiva, como se o sujeito pensasse “consinto”, “conformo-me com a produção do resultado”. Nenhuma justiça conseguiria condenar alguém por dolo eventual se exigisse confissão cabal de que o sujeito psíquica e claramente consentiu na produção do evento; que, em determinado momento anterior à ação, deteve-se para meditar cuidadosamente sobre suas opções de comportamento, aderindo ao resultado. Jamais foi visto no banco dos réus alguém que confessasse ao juiz: “no momento da conduta eu pensei que a vítima poderia morrer, mas, mesmo assim, continuei a agir”. A consciência profana da ilicitude, na teoria finalista da ação, não faz parte do dolo, que é natural” (JESUS, Damásio de. 2009, P. 287/288).
Em outras palavras, se a hipótese de se aplicação o dolo eventual fosse tão somente com a certeza de que o ânimo do agente, no momento do evento delituoso, foi o de consentimento e de indiferença, jamais haveria tal condenação, diante da impossibilidade prática de se comprovar as circunstâncias mencionadas, salvo por confissão.
Neste sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é patente ao reconhecer a desnecessidade de configurar o dolo eventual tão somente a partir do consentimento exteriorizado do agente, verbis:
Salientou-se que, no Direito Penal contemporâneo, além do dolo direto – em que o agente que o resultado como fim de sua ação e considera unido a esta última – há o dolo eventual, em que o sujeito não deseja diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (CP, art. 18, I, in fine). Relativamente a este ponto, aduziu-se que, dentre as várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, destaca-se a do assentimento ou da assunção, consoante a qual o dolo exige que o agente aquiesça em causar o resultado, além de reputá-lo como possível. Assim, esclareceu-se que, na espécie, a questão principal diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, ambas apresentando em comum a previsão do resultado ilícito. Observou-se que para a configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento, sendo imprescindível, isso sim, que delas (circunstâncias) se extraia o dolo eventual e não da mente do autor (grifos não constam no original) (STF: HC 91.159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, j. 02.09.2008, noticiado no informativo 518);
No mesmo sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, verbis:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIOS DOLOSOS. PRONÚNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. QUAESTIO FACTI E QUAESTIO IURIS. REEXAME E REVALORAÇÃO DA PROVA.
I – É de ser reconhecido o prequestionamento quando a questão, objeto da irresignação rara, foi debatida no acórdão recorrido.
II – É de ser admitido o dissídio pretoriano se, em caso semelhante, no puctum saliens, há divergência de entendimento no plano da valoração jurídica.
III – Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de “racha”, em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate.
IV – O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável.
V – O tráfego é atividade própria de risco permitido. O ‘racha’, no entanto, é — em princípio — anomalia que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada.
VI – A revaloração do material cognitivo admitido e delineado no acórdão reprochado não se identifica com o vedado reexame da prova na instância incomum. Faz parte da revaloração, inclusive, a reapreciação de generalização que se considera, de per si, inadequada o iudicium acusationis. Recurso provido, restabelecendo-se a pronúncia de primeiro grau” (grifos não constam no original) (REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fisher, 2001).
De maneira semelhante, e no intuito de tornar mais acessível a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, Damásio de Jesus apresenta os chamados “indicadores objetivos” do dolo eventual, de modo a utilizar determinadas circunstâncias factuais para nortear a caracterização do instituto, descartando, dessa forma, a possibilidade inviável de se arrancar da mente do agente os pensamentos de consentimento, tais elementos consistiriam no “risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta” que, no tangente aos crimes de trânsito, se traduz na vida; o “poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação”, o qual, em apertada síntese, se traduz na possibilidade real de se afastar o resultado delituoso por meio da simples desistência do ato; os “meios de execução empregados” que, diante da hipótese tratada no presente trabalho monográfico, se resumem ao veículo utilizado; e, por fim, a “desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico protegido”, sendo este último considerado no presente trabalho monográfico como o indicador objetivo mais importante e delicado levando em conta o vultoso grau de subjetividade no tocante a sua existência ou não. (JESUS, Damásio de. 2009, P. 288).
Tais indicadores são de importância ímpar para os julgamentos atualmente, e pode-se dizer que a jurisprudência de um modo geral se norteia pelo referido entendimento, reconhecendo a necessidade da interpretação acerca da indiferença ou não do agente para com a vida das vítimas de sua conduta delituosa a partir das circunstâncias concretas peculiares a cada caso, no entanto o posicionamento da jurisprudência será melhor explanado e debatido no próximo capítulo.
5. JURISPRUDÊNCIA E ANÁLISE DE HIPÓTESES CONCRETAS
Tendo em vista o exposto, e no intuito de melhor ilustrar as etapas de formação do convencimento dos Juízes em torno do tema em tela, demonstrar-se-á exemplos de dolo eventual e culpa consciente no que tange aos delitos relacionados ao tráfego de veículos, a primeira hipótese a ser elencada é a de um julgamento de Santa Catarina, cujo relator foi o Desembargador Jaime Ramos, eis a ementa:
APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR - ATROPELAMENTO DE PEDESTRES EM TRAVESSIA NA FAIXA DE SEGURANÇA - RÉU ABSOLVIDO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS QUANTO À SUA CULPA - CONDUTA CULPOSA, ENTRETANTO, DEVIDAMENTE COMPROVADA - DESATENÇÃO E EXCESSO DE VELOCIDADE - CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE - RECURSO DO ASSISTENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDO. Age com culpa pelas modalidades de negligência e imprudência, o motorista que, trafegando desatento e em velocidade incompatível para o local, o tempo e as condições climáticas (neblina), pela esquerda da pista dupla, atropela três pedestres que tentavam atravessar a rua partindo da direita, sobre a faixa de segurança em cruzamento não sinalizado por semáforo, dada a preferência deles na travessia (CTB, art. 70), tanto que o veículo que transitava pela pista da direita parou no local para dar-lhes passagem. É irrelevante, no caso, que as vítimas tenham feito a travessia açodada e apressadamente. Considera-se previsível a travessia de pedestres, a qualquer momento, em faixa de segurança a eles destinada. O condutor de veículo automotor deve dirigir com a atenção e o cuidado indispensáveis à segurança do trânsito (CTB, art. 28). Considera-se desatento o motorista que, sem tê-las visto antes do choque, atropela três pessoas que atravessavam a rua em faixa de segurança e já haviam percorrido mais da metade da travessia. Imprime velocidade excessiva o motorista que atropela as vítimas em via urbana e após conduzi-las com o veículo, por certo trecho, projeta uma delas a cerca de quarenta (40) metros do ponto inicial do impacto. A má visibilidade provocada pela neblina e pela fraca iluminação do local não eximem de culpa o motorista, que deve trafegar com as luzes do veículo acesas e redobrar suas cautelas. (TJ-SC - APR: 179570 SC 2002.017957-0, Relator: Jaime Ramos, Data de Julgamento: 08/10/2002, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Apelação Criminal n. , de Blumenau.)
Na hipótese supramencionada, é de se observar que o agente dirigia sob condições climáticas adversas e em alta velocidade, a combinação de tais fatores resultou no trágico atropelamento de três pedestres, dos quais não se pode questionar a conduta promovida, uma vez que estavam dentro da faixa de segurança, ainda que esta não estivesse sinalizada por semáforo.
No entanto, no tangente à conduta do agente, importante mencionar que, muito embora o. fator climático em conjunto com a má iluminação da via houvessem contribuído para dificultar a visão do agente, tais fatores de maneira alguma podem obstar a responsabilidade do autor em dirigir defensivamente, razão pela qual o magistrado entendeu que tal dever deveria ter prevalecido neste caso, uma vez que este não teria visto as vítimas durante o cruzamento de uma via com faixa própria para o livre trânsito de pessoas, pela combinação do ambiente adverso sua imprudencia ao dirigir em velocidades superiores às permitidas.
Pelas razões supramencionadas, neste processo o réu foi condenado por infringir o artigo 302 da lei 9503 de 23/09/1997, também conhecido como o Código de trânsito brasileiro, verbis:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
No entanto o agente foi condenado na modalidade culpa consciente nesta hipótese, tendo em vista que, muito embora houvesse dirigido em altas velocidades mesmo diante do tempo adverso, confiando em suas habilidades veiculares, este jamais havia assumido a possibilidade de ceifar a vida de alguém.
Ademais, em razão de o réu ser primário no caso em comento, este teve sua pena reduzida, não tendo cumprido detenção mas tão somente foi condenado à prestação de serviços à comunidade, além de pagar à mãe das vítimas valores equivalentes a dez salários mínimos, além de ter recebido um suspensão para dirigir de quatro meses.
Demonstrar-se-á um segundo caso, cuja peculiaridade consiste na embriagues do réu, o qual, de madrugada, ultrapassa sinal vermelho, causa o acidente, atropelando a vítima e se omite de prestar socorro à vítima.
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE TRÂNSITO. SENTENÇA CONDENATÓRIA (ART. 303 DO CTB) E ABSOLUTÓRIA (ARTS. 305 E 306 DO CTB). INSURGÊNCIA DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO E DA DEFESA. LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. INSURGÊNCIA DA DEFESA PELA ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. PLEITO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO PELO RECONHECIMENTO DE DOLO EVENTUAL NA CONDUTA DO RÉU E, SEM ALTERAR OS FATOS DESCRITOS NA DENÚNCIA, CONDENÁ-LO PELO CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE DO CÓDIGO PENAL. INVIABILIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROVA DEMONSTRANDO QUE O RÉU ACEITOU, COM INDIFERENÇA, O RESULTADO PREVISTO (LESÃO CORPORAL DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRÂNSITO) ANTES DE REALIZAR A CONDUTA (AVANÇAR O SINAL DE PARADA DO SEMÁFORO). CARACTERIZAÇÃO DA CULPA CONSCIENTE. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. EVASÃO DO LOCAL DO ACIDENTE (ART. 305 DO CTB). RECURSO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO QUE OBJETIVA A CONDENAÇÃO. RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE JÁ DECLARADA PELO ÓRGÃO ESPECIAL DESTA EGRÉGIA CORTE DE JUSTIÇA. DECISÃO QUE VINCULA A ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS FRACIONÁRIOS. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. EMBRIAGUEZ NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 306 DO CTB, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 11.705/08). INSURGÊNCIA DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO REQUERENDO A CONDENAÇÃO. ALEGAÇÃO DE QUE A MATERIALIDADE ESTARIA DEVIDAMENTE COMPROVADA POR DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA LEX GRAVIOR. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NECESSIDADE DE TESTE DE BAFÔMETRO OU EXAME DE SANGUE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA. RECURSO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO PELO RECONHECIMENTO DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS AO RÉU E APLICAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA (DEIXAR DE PRESTAR SOCORRO À VÍTIMA). RECURSO PROVIDO PARA MAJORAR A REPRIMENDA, POIS DESFAVORÁVEIS TRÊS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS (CULPABILIDADE, CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME). RÉU EMBRIAGADO QUE, DE MADRUGADA, ULTRAPASSA SINAL VERMELHO E CAUSA O ACIDENTE, ATROPELANDO A VÍTIMA EM [.](TJ-SC - APR: 20130068992 SC 2013.006899-2. (Acórdão, Relator: Newton Varella Júnior, Data de Julgamento: 19/11/2014, Quarta Câmara Criminal Julgado).
A situação prática acima apresentada serve para demonstrar que, muito embora o agente tenha se refugiado do local, e estivesse alcoolizado, tão somente tais peculiaridades não podem servir de parâmetro para configurar o dolo eventual ao caso, por mais cruel que a situação demonstre ser, e por mais que tal combinação de fatores venha a ser condenável por quaisquer populares, os quais dificilmente analisam os fatos sob a ótica do direito.
No caso supramencionado, apesar do contexto fático da situação, o magistrado foi contra os argumentos do assistente de acusação, pois entendeu que as provas existentes nos autos não são capazes de demonstrar a intenção do réu em agir com dolo eventual ao realizar a conduta geradora das lesões corporais e do dano material causado.
O julgador, em síntese, agiu com acerto na situação elencada, pois aplicou o princípio do direito penal do in dubio pro réu, em consonância com a jurisprudência dominante, ou seja, o Juízo entendeu ser impossível, na hipótese em comento, comprovar que o réu previu e aceitou o resultado delituoso de sua conduta e, em virtude da dúvida, optou pela configuração mais branda de crime para o réu, qual seja, a culpa consciente.
A terceira hipótese a ser demonstrada é a de um condutor que dirige alcoolizado, em altas velocidades, e cujo resultado danoso ceifa a vida de uma vítima transeunte, verbis:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. DOLO EVENTUAL. HOMICÍDIO SIMPLES. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. TESTEMUNHA ARROLADA A DESTEMPO. INOCORRÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A TIPIFICAÇÃO CONTIDA NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. MATERIALIDADE INCONTROVERSA E INDÍCIOS DE AUTORIA EXISTENTES. ELEMENTOS INDICIÁRIOS SUFICIENTES DE QUE O CONDUTOR DO VEÍCULO AUTOMOTOR TENHA ASSUMIDO O RISCO DE PRODUZIR O RESULTADO MORTE. VELOCIDADE EXCESSIVA EM VIA MOVIMENTADA E COMPROVADA EMBRIAGUEZ. SENTENÇA MANTIDA. Não há dúvida: "[...] sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado" (STJ, HC n.º 58.826/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 8.9.2009). Logo, no contexto, empreendendo o condutor velocidade excessiva, em rodovia curvilínea, aliado à comprovada embriaguez, parece adequada, num primeiro momento, a acusação formulada pelo crime contra a vida, na modalidade dolosa (dolo eventual) ou seja, a mistura do álcool com a velocidade revela que o apelante assumiu o risco de produzir o resultado.(grifos não constam no original). (TJ-SC - RC: 20130104607 SC 2013.010460-7 (Acórdão), Relator: Ricardo Roesler, Data de Julgamento: 29/07/2013, Segunda Câmara Criminal Julgado) (grifos não constam no original).
A hipótese supramencionada, a seu tempo, consiste em um evidente reflexo de um óbice que já foi elencado no presente trabalho monográfico, qual seja a influência social imposta pela massa popular, a qual muita das vezes obtém seus posicionamentos de maneira desconforme com o direito e mais próxima da alienação midiática e as emoções.
Ao longo dos anos tornou-se possível observar que a sociedade “impôs” um entendimento aos tribunais que é demasiadamente arriscado e precipitado juridicamente falando, por meio do qual determinados magistrados entendem que a combinação de quatro fatores; quais sejam a direção de um veículo automotor, velocidade excessiva, embriaguez e resultado morte da vítima; automaticamente configuram o dolo eventual.
Muito embora o supramencionado entendimento seja adotado por grande percentual dos tribunais espalhados pelo Brasil, este também é amplamente contestado pela doutrina, o autor Rogério Greco, por exemplo, remete a uma importante reflexão quando adverte que “não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte de outras pessoas” (GRECO, Rogério 2008, p. 209).
De fato o referido autor tem razão neste ponto, e não é necessário muito esforço mental a fim de compartilhar com seus pensamentos, basta imaginar um exemplo de uma situação prática por meio da qual uma pessoa vai a uma festa de casamento de seu amigo, se embriaga e se diverte bastante, posteriormente percebe que faltam vinte minutos para a luta de UFC mais importante do ano, que não poderia deixar de ver, tal combinação de fatores o induz a se retirar da festa com sua família, que muito ama, e dirigir apressadamente para ver a luta, no entanto, em razão da pressa e do grau de alcoolismo, o motorista vem a colidir com três transeuntes, levando-os à óbito juntamente com os membros de sua própria família, que não estavam usando o cinto de segurança à época dos fatos.
O simples caso demonstrado deixa evidente que o agente jamais assumiu o risco de sua conduta até porque se o inverso fosse interpretado pelo Juízo, o entendimento acerca do caso estaria afirmando que o agente estaria fazendo “pouco caso” não apenas dos transeuntes que atropelou, como também de sua amada família.
Importante destacar que o presente trabalho monográfico de forma algum se destina a repudiar o dolo eventual e tampouco afirmar que todo motorista alcoolizado jamais atua sob o campo da referida figura, a qual tem vultosa importância no direito penal como a modalidade mais branda do dolo, ao passo que a culpa consciente consiste na figura mais agravada de culpa.
Dadas as circunstâncias do exemplo e apontados os ensinamentos de Rogério Greco, resta claro que os tribunais não podem estabelecer parâmetros tão generalizados como o referido, sob pena de banalizar os próprios institutos do dolo eventual e da culpa consciente, que já possuem seus próprios requisitos.
Por outro lado, é importante lembrar que, uma vez tendo a própria doutrina reconhecido não ser possível de se evidenciar o descaso do agente para com o fato delituoso por meio de investigações no interior de sua mente, não podem ser desprezadas as tentativas de busca de parâmetros fáticos no intuito de melhor aplicar os institutos do dolo eventual e da culpa consciente.
O contraste dos posicionamentos da doutrina e da jurisprudência ainda neste caso deixam evidente o tamanho da complexidade de se delimitar o dolo eventual da culpa consciente no que diz respeito aos crimes de trânsito.
Em seguida, demostrar-se-á o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema, é interessante notar que, no tocante aos crimes de trânsito, é reconhecida a impossibilidade de presunção automática de dolo eventual, ainda que o motorista esteja alcoolizado e o resultado do desastre seja a morte da vítima, verbis:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. 1. HOMICÍDIO. CRIME DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. DOLO EVENTUAL. AFERIÇÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. 2. ORDEM CONCEDIDA. 1. Em delitos de trânsito, não é possível a conclusão automática de ocorrência de dolo eventual apenas com base em embriaguez do agente. Sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado. 2. Ordem concedida para, reformando o acórdão impugnado, manter a decisão do magistrado de origem, que desclassificou o delito para homicídio culposo e determinou a remessa dos autos para o juízo comum (grifos não constam no original). (STJ: 58826 RS 2006/0099967-9, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 29/06/2009, T6 - SEXTA TURMA. Data de Publicação: DJe 08/09/2009) (grifos não constam no original).
É de saturar o argumento da corte superior de que os crimes de trânsito são, em regra, culposos, o que não poderia ser diferente, tendo em vista que, diferente do que os leigos pensam, o instituto do dolo não está relacionado com a gravidade da irresponsabilidade do agente, mas com a intenção de causar dano, razão pela qual a mera embriaguez seguida de desastre veicular, por exemplo, não tem o condão de, por si só, configurar dolo eventual, diferentemente da embriaguez pré-ordenada; ou seja, quando o agente tem previamente a intenção de matar ou causar dano, e se alcooliza no intuito de se “encorajar” para a prática dos atos os quais já premeditou; que a seu tempo consiste na hipótese mais diretamente relacionada ao dolo, não havendo o que se discutir nestes casos.
De maneira idêntica entende o Supremo Tribunal Federal, verbis:
Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do Código de trânsito brasileiro), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP (grifos não constam no original). (STF: HC 107801, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011) (grifos não constam no original).
Muito embora seja este o entendimento dos Tribunais Superiores nos casos de homicídio cujo motorista dirigia alcoolizado, o que se nota é que os Tribunais de Justiça dos Estados, via de regra, optam pelo dolo eventual nos crimes de trânsito quando exurge a combinação do alcoolismo com outro fator considerado de aburda irresponsabilidade, verbis:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. LESÃO CORPORAL GRAVE. PERDA DE MEMBRO. MOTORISTA EM APARENTE ESTADO DE EMBRIAGUEZ. VEÍCULO QUE TRANSITAVA PELA CONTRAMÃO. DOLO EVENTUAL APRESENTADO NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. POSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIME DE TRÂNSITO NO CURSO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. VIA ELEITA INADEQUADA. INEXISTÊNCIA DE PROVA PRECONSTITUÍDA. PRESENÇA DOS REQUISITOS EXIGIDOS PARA A CUSTÓDIA CAUTELAR. ATENTADO CONTRA A ORDEM PÚBLICA. NECESSIDADE DA MEDIDA EXCEPCIONAL DEMONSTRADA. CONDIÇÕES SUBJETIVAS, POR SI SÓ, NÃO IMPEDEM A DECRETAÇÃO DA PREVENTIVA. COAÇÃO ILEGAL INEXISTENTE. ORDEM DENEGADA DE FORMA UNÍSSONA. 1. Não há como se atribuir ao fato a conotação de crime de trânsito (art. 303, da Lei nº. 9.503/97), como pretende o impetrante, o que somente se poderá evidenciar no curso da instrução criminal, podendo ser alterado por ocasião da sentença pelo próprio Juiz Singular, uma vez que não está vinculado à capitulação definida na denúncia. 2 - A via eleita pelo impetrante somente é adequada à modificação do tipo penal noticiado na denúncia, quando demonstrada, de modo inconteste, por prova preconstituída e independente de instrução probatória, o alegado constrangimento ilegal, o que não restou evidenciado nestes autos, devendo, portanto, ser mantido os exatos termos da acusação. 3 - Havendo no feito motivos concretos e suficientes a justificar a necessidade da segregação do paciente, cuja liberdade atenta contra a ordem pública, dado o costume de dirigir sob a influência de álcool, e a revolta que o crime causou à população local que, inclusive, tentou incendiar o veículo do paciente, restando, portanto, demonstrados fundamentos mais que suficientes de que a sua liberdade atenta contra a ordem pública, devendo ser mantida. 4 - A existência de condições subjetivas, por si só, não são suficientes para a concessão de liberdade provisória ou para afastar o decreto preventivo, especialmente quando na hipótese dos autos, restou demonstrada a necessidade da medida excepcional. 5 - Ordem denegada. Decisão unânime. (TJ-PE - HC: 1863020128170850 PE 0008741-64.2012.8.17.0000, Relator: Cláudio Jean Nogueira Virgínio, Data de Julgamento: 01/08/2012, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 147) (grifos não constam no original).
Interessante notar neste caso que o Juízo entendeu que a liberdade do agente atentou contra a ordem pública, dado o costume de dirigir sob a influência de álcool e ainda na contramão, noticiou também que o crime causou uma comoção geral por parte da população local que, inclusive, tentou atear fogo ao veículo do réu, concluindo que restaram demonstrados fundamentos mais que suficientes de que a sua liberdade atentou contra a ordem pública.
Pode-se dizer que, no mencionado caso (utilizando-se para tanto os já mencionados indicadores objetivos apresentados por Damásio de Jesus), a comoção da população, somada à embriaguez e à direção na contramão, somadas, consistiram em peculiaridades do caso capazes de ensejar a presença do indicador objetivo da “falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico protegido”, indicador este que, somado aos demais que também estiveram presentes, configuram plenamente o dolo eventual.
Situação semelhante pode ser observada neste outro caso, verbis:
Apelação Criminal. HOMICÍDIO SIMPLES E LESÃO CORPORAL CULPOSA. Decisão do Júri contrária à prova dos autos em relação ao crime de lesão corporal grave. Prescrição da pretensão punitiva do delito de lesão corporal leve. Reconhecimento. Necessidade. Dolo eventual evidenciado aos autos. Depoimento de testemunhas. Laudo pericial. Condução de veículo automotor sem habilitação. Velocidade incompatível com o local da via transitada. Estado de embriaguez constatado por testemunhas e confissão do réu. Negado provimento ao apelo defensivo e dado provimento ao recurso da acusação a fim de anular o julgamento apenas em relação ao crime de lesão corporal grave, mantida a condenação pelo homicídio simples e reconhecida a prescrição da pretensão punitiva para o delito de lesões corporais leves. (TJ-SP, Relator: Rachid Vaz de Almeida, Data de Julgamento: 21/03/2013, 10ª Câmara de Direito Criminal) (grifos não constam no original).
Nesta hipótese é de se notar que a falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico protegido foi detectada com o descaso triplo do agente, uma vez que este dirigiu com velocidades acima do permitido no local, sem a devida obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, e ainda por cima estava alcoolizado.
A seguir, colacionar-se-á uma hipótese de crime de trânsito peculiar, por meio da qual o motorista não possuía das duas mãos em decorrência de anterior acidente de trabalho, portanto seria deficiente físico, no entanto dirigia veículo comum, ou seja, sem as particularidades de um veículo apropriado para sua deficiência, verbis:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO NO TRÃNSITO E OMISSÃO DE SOCORRO. DOLO EVENTUAL. EXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS EXCEPCIONAIS AUTORIZADORAS DA PRONÚNCIA. QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. EXCLUSÃO. LESÃO CORPORAL. REPRESENTAÇÃO DAS VÍTIMAS. AUSÊNCIA. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE DA AÇÃO PENAL. DESPRONÚNCIA QUE SE IMPÕE.
Recurso ministerial improvido. Recurso defensivo parcialmente provido. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70053698403, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 11/09/2013) (TJ-RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Data de Julgamento: 11/09/2013, Primeira Câmara Criminal) (grifos não constam no original).
Neste caso é interessante observar que o Juízo assevera em um trecho da decisão “nesse contexto, inequivocamente excepcional, deve-se admitir, na fase da judicium acusationis, a possível hipótese de dolo eventual”, reconhece, pois, que o dolo indireto é exceção aos crimes de trânsito, constatando, no entanto, que o próprio ato delituoso também se deu sob circunstâncias excepcionais que demonstram o total descaso do réu, facilmente detectadas na íntegra da decisão em comento, notadamente no trecho a seguir:
(...)Conforme se extrai dos autos, os depoimentos judiciais das testemunhas Luíza, Luana e Gilberto corroboram a tese ministerial de que o acusado, supostamente embriagado e conduzindo seu automóvel em alta velocidade, invadiu o acostamento e colheu a vítima, que caminhava no local. Segundo a acusação pública, ademais, o réu, deficiente físico, estaria dirigindo, de forma irregular, veículo não adaptado a sua deficiência.(...) (grifos não constam no original).
Dessa forma, não restou outra alternativa ao Juízo senão entender configurada o dolo eventual do autor diante do fato de este ter cometido o crime alcoolizado, em veículo não adaptado às suas necessidades especiais, em alta velocidade, e ter omitido socorro. Agiu bem a justiça levando em consideração a análise sensata dos indicadores objetivos do dolo eventual.
Por fim resta analisar a rotineira e perigosa prática adotada no brasil chamada “racha” ou “pega”, que consiste, em apertada síntese, nas corridas de carros ilegais realizadas geralmente no horário da madrugada, as quais utilizam as avenidas e demais vias públicas como se pista de corrida fossem.
Acerca destas hipóteses de condutas delituosas, a jurisprudência é quase pacífica, salvo raras exceções, no sentido de que homicídios em vias públicas movimentadas oriundos de racha, configuram automaticamente presunção de dolo eventual, verbis:
HOMICÍDIO - DELITO DE TRÂNSITO - "RACHA" - DOLO EVENTUAL - PRONÚNCIA - INCONFORMISMO - PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO - INVIABILIDADE. 1 - Havendo indícios sérios de que o recorrente ao causar a morte da jovem pedestre, participava da irracional disputa denominada "racha" de veículos em via pública (central e movimentada), não está afastada, por ora, a existência do dolo eventual na conduta do agente. 2 - A dúvida, na espécie, por se tratar de crime de homicídio, quanto ao verdadeiro elemento subjetivo do delito (dolo eventual ou culpa "strito sensu") deve ser dirimida pelo Tribunal do Júri, pois, como é cediço, a sentença de pronúncia é mero juízo de admissibilidade da acusação, devendo qualquer aspecto discutível acerca da culpabilidade do acusado ser resolvido, nesta fase, provisoriamente, "pro societate". Recurso desprovido. (TJ-PR - RSE: 775477 PR 0077547-7, Relator: Oto Luiz Sponholz, Data de Julgamento: 10/06/1999, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 5417);
No mesmo sentido:
HABEAS CORPUS. PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ART. 121, § 2.º, INCISOIV, DO CÓDIGO PENAL. "RACHA". QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU OU TORNOU IMPOSSÍVEL A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE COM O DOLO EVENTUAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. 1. Consoante já se manifestou esta Corte Superior de Justiça, aqualificadora prevista no inciso IV do § 2.º do art. 121 do CódigoPenal é, em princípio, compatível com o dolo eventual, tendo em vista que o agente, embora prevendo o resultado morte, pode, dadasas circunstâncias do caso concreto, anuir com a sua possível ocorrência, utilizando-se de meio que surpreenda a vítima. Precedentes. 2. Na hipótese, os réus, no auge de disputa automobilística em via pública, não conseguiram efetuar determinada curva, perderam ocontrole do automóvel e o ora Paciente atingiu, de súbito, a vítima, colidindo frontalmente com a sua motocicleta, ocasionando-lhe a morte. 3. Nesse contexto, não há como afastar, de plano, a qualificadora em questão, uma vez que esta não se revela, de forma incontroversa, manifestamente improcedente. 4. Ordem denegada. (STJ - HC: 120175 SC 2008/0247429-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 02/03/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/03/2010) (grifos não constam no original);
E por fim:
HABEAS CORPUS. PRELIMINAR DE REITERAÇÃO REJEITADA. ACUSAÇÃO DE HOMICÍDIOS E LESÕES CORPORAIS. CRIME DE TRÂNSITO. 'RACHA' AUTOMOBILÍSTICO. DOLO EVENTUAL. PRISÃO PREVENTIVA. PERICULOSIDADE. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. DENEGAÇÃO DA ORDEM. DIVERSAS AS CAUSAS DE PEDIR, ADMITE-SE O SEGUNDO HABEAS CORPUS, QUE NÃO É REITERAÇÃO DO PRIMEIRO. PRELIMINAR REJEITADA. EM TEMA DE ACIDENTE DE TRÂNSITO, LIMITADAS AS HIPÓTESES QUE, EM TESE, ADMITEM O DOLO EVENTUAL. UMA DELAS É A DO DENOMINADO "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO. NO CASO, O PACIENTE FOI DENUNCIADO POR AFIRMADA INCURSÃO "NAS PENAS DO ARTIGO 121, § 2º, INCISOS I, III E IV (TRÊS VEZES) E ARTIGO 129, CAPUT (DUAS VEZES), TODOS DO CÓDIGO PENAL", JÁ QUE, NO DIA 06/10/2007, POR VOLTA DAS 17H30, NA PONTE JUSCELINO KUBITSCHEK, VIA PÚBLICA, SENTIDO PLANO PILOTO - LAGO SUL, NA PRÁTICA DE DISPUTA AUTOMOBILÍSTICA VULGARMENTE DENOMINADA "RACHA" COM O CO-DENUNCIADO MARCELLO COSTA SALES, DIRIGINDO SEU VEÍCULO VW, GOLF, PLACA JGR 8365 DF, CINZA, AGIU "DE FORMA A ASSUMIR O RISCO DE MATAR", DESENVOLVENDO VELOCIDADE E MANOBRAS TOTALMENTE INCOMPATÍVEIS COM O LOCAL E MOVIMENTO, FINDANDO POR COLIDIR O VEÍCULO TOYOTA-COROLLA CONDUZIDO POR LUIZ CLÁUDIO DE VASCONCELOS, CAUSANDO A MORTE DE TRÊS PESSOAS E LESÕES CORPORAIS EM OUTRAS DUAS. DESNECESSIDADE, NA ESPÉCIE, DA PRISÃO DO PACIENTE PARA A APLICAÇÃO DA LEI PENAL. NÃO SE ESTÁ ELE FURTANDO AO PROCESSO PENAL. PELO CONTRÁRIO. CONSTITUIU ADVOGADOS. APRESENTOU-SE, AINDA QUE COM ATRASO. SOLTO, EXPEDIDO NOVO MANDADO DE PRISÃO, FOI ENCONTRADO EM SUA CASA. NÃO HÁ COMO PRESUMIR QUEIRA FUGIR DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL. JÁ QUANTO AO REQUISITO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA, ESTÁ DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO O DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA, EM FACE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO-CRIME CONCRETO, PRESENTES SUFICIENTES ELEMENTOS DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA. AS CIRCUNSTÂNCIAS DO EVENTO, APTAS AO DESCORTINO DO DOLO EVENTUAL, TAMBÉM SÃO IDÔNEAS PARA INDICAR SE A LIBERDADE DO PACIENTE OFERECE RISCO À ORDEM PÚBLICA. DOS DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS E DOCUMENTOS REPRODUZIDOS NESTES AUTOS, VALORADOS EM JUÍZO SUPERFICIAL ADEQUADO APENAS AO EXAME DA PERTINÊNCIA DA PRISÃO PREVENTIVA, EXTRAEM-SE AS SEGUINTES CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES QUE DETERMINAM A NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR A ORDEM PÚBLICA COM A CONSTRIÇÃO DO PACIENTE: 1) DESENVOLVEU-SE UM "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO; 2) NELE EXERCIA ATUAÇÃO PROEMINENTE O PACIENTE; 3) O LOCAL DO "RACHA" ERA VIA PÚBLICA, A PONTE JK, HAVENDO, NA HORA DO EVENTO, TRÂNSITO DE VÁRIOS OUTROS VEÍCULOS E DE PEDESTRES, ESTES NO ESPAÇO PRÓPRIO, ACOSTAMENTO CONTÍGUO ÀS FAIXAS DE ROLAMENTO; 4) A VELOCIDADE DESENVOLVIDA PELOS P ARTICIPANTES DO "RACHA" ERA MUITO GRANDE, ASSUSTANDO TESTEMUNHAS (O RELATÓRIO POLICIAL REFERE 140KM, SENDO A VELOCIDADE MÁXIMA PERMITIDA DE 70KM); 5) O VEÍCULO DIRIGIDO PELO PACIENTE E O GUIADO POR SEU OPONENTE FAZIAM "ZIGUE-ZAGUE" E REALIZAVAM ULTRAPASSAGENS ARRISCADAS; 6) O VEÍCULO DIRIGIDO PELO PACIENTE COLIDIU COM O CARRO EM QUE SE ENCONTRAVAM AS VÍTIMAS; 7) MORRERAM TRÊS PESSOAS E FORAM FERIDAS DUAS; 8) O PACIENTE E SEU OPONENTE NÃO PARARAM PARA PRESTAR SOCORRO. ADITE-SE QUE, CONFORME O RELATÓRIO POLICIAL, O VEÍCULO DO PACIENTE REGISTRA "ONZE MULTAS POR EXCESSO DE VELOCIDADE" E QUE ELE SE EVADIU LOGO APÓS O CRIME, TENDO ABANDONADO O CARRO NA SUA CASA E DELA SE AUSENTADO QUANDO OS POLICIAIS NELA COMPARECERAM. TAMBÉM RELATÓRIO POLICIAL INFORMA A LOCALIZAÇÃO, NO INTERIOR DO AUTOMÓVEL DO PACIENTE, "DE LATAS DE CERVEJA E GARRAFA DE BEBIDA ALCOÓLICA QUENTE, POSTERIORMENTE FEITA VISTORIA MINUCIOSA NO INTERIOR DO VEÍCULO LOCALIZOU-SE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE, TIPO COCAÍNA E MACONHA, AS QUAIS FORAM ENCAMINHADAS AO IC PARA EXAMES, RESTANDO COMO POSITIVO". O LAUDO DE EXAME PRELIMINAR É POSITIVO PARA COCAÍNA E PARA MACONHA. DO INICIAL DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA CONSTA ENVOLVIMENTO DO PACIENTE EM PROCESSOS CRIMINAIS E CONDENAÇÃO "POR CRIME DO ARTIGO 12 DA LEI 6.368/76, POR SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO EM 23.11.2005". NESSE QUADRO, RESULTA CLARO QUE A LIBERDADE DO PACIENTE, COM PERICULOSIDADE EVIDENCIADA PELAS CIRCUNSTÂNCIAS RESSALTADAS, AMEAÇA A ORDEM PÚBLICA E PODE ESTIMULAR NOVOS CRIMES, ALÉM DE PROVOCAR REPERCUSSÃO EXTREMAMENTE DANOSA AO MEIO SOCIAL, JÁ INDIGNADO COM A VERDADEIRA "SELVA" EM QUE SE TRANSFORMOU O TRÂNSITO NAS CIDADES. MALGRADO COSTUMEIRAMENTE SE RESSALTE APENAS O CARÁTER CAUTELAR DA PRISÃO PREVENTIVA, PARA TUTELAR O PROCESSO, NÃO SE PODE OLVIDAR QUE ELA TAMBÉM SE PRESTA A, COMO INEQUÍVOCA MEDIDA DE SEGURANÇA, EVITAR OS PROVÁVEIS DANOS QUE A LIBERDADE DO ACUSADO POSSA PROVOCAR, ATÉ O DESFECHO PROCESSUAL, NO MEIO SOCIAL E NOS BENS JURÍDICOS DEFENDIDOS PELO DIREITO PENAL. ORDEM DENEGADA. UNÂNIME. (TJ-DF - HC: 134101820078070000 DF 0013410-18.2007.807.0000, Relator: MARIO MACHADO, Data de Julgamento: 06/12/2007, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 23/01/2008, DJU Pág. 927 Seção: 3)
A princípio poder-se-ia sentir uma certa rigidez diante da referida generalização por parte dos tribunais, tendo em vista que a presunção, via de regra, deveria ser a de culpa consciente, devendo ser o dolo indireto a exceção no entanto, a jurisprudência e os doutrinadores defendem, em sua grande maioria, o supramencionado posicionamento.
De maneira interessante o doutrinador Cleber Masson faz a defesa da configuração do dolo indireto nos homicídios causados pelo “pega”, justificando a referida incidência em virtude da vultosa quantidade de campanhas educativas realizadas pelos mais diversos órgãos e entidades, alertando sobre todos os perigos constantes na direção desafiadora ou que possa gerar alguma ameaça aos pedestres, razão pela qual os tribunais estariam agindo acertadamente ao presumir que todos os eventuais autores estejam assumindo todos os danos causados em decorrência do “racha” e, portanto, estejam atuando sob o campo do dolo eventual. (MASSON, Cleber. , 2011, p. 164).
Tal entendimento é correto e sobretudo consiste em mais uma tentativa de intimidar e reprimir os condutores de praticar o vulgarmente conhecido “racha” nas vias públicas, até mesmo o Supremo Tribunal Federal compartilha do entendimento favorável ao enquadramento na modalidade dolosa a todos aqueles que se divertem na tentativa de transformar as vias públicas em “pistas de fórmula 1”,verbis:
HABEAS CORPUS - JÚRI - QUESITOS - ALEGAÇÃO DE NULIDADE - INOCORRENCIA - "RACHA" AUTOMOBILISTICO - VITIMAS FATAIS - HOMICIDIO DOLOSO - RECONHECIMENTO DE DOLO EVENTUAL - PEDIDO INDEFERIDO . - A conduta social desajustada daquele que, agindo com intensa reprovabilidade etico-jurídica, participa, com o seu veículo automotor, de inaceitavel disputa automobilistica realizada em plena via pública, nesta desenvolvendo velocidade exagerada - além de ensejar a possibilidade de reconhecimento do dolo eventual inerente a esse comportamento do agente -, justifica a especial exasperação da pena, motivada pela necessidade de o Estado responder, grave e energicamente, a atitude de quem, em assim agindo, comete os delitos de homicidio doloso e de lesões corporais . - Se a Defesa requerer a desclassificação do evento delituoso para homicidio meramente culposo - e uma vez superados os quesitos concernentes a autoria, a materialidade e a letalidade do fato imputado ao réu -, legitimar-se-a a formulação, em ordem sequencial imediata, de quesito dirigido ao Conselho de Sentença, pertinente a existência de dolo na conduta atribuida ao acusado. A resposta afirmativa dos Jurados ao quesito referente ao dolo torna incabivel a formulação de quesito concernente a culpa em sentido estrito. Precedentes . - Se os varios crimes atribuidos ao réu foram tidos como praticados em concurso formal, dai resultando a aplicação, em grau minimo, de uma mesma pena, aumentada, também em bases minimas, de um sexto (CP, art. 70), torna-se irrelevante - por evidente ausência de prejuizo - a omissão, nas demais series de quesitos concernentes aos crimes abrangidos pelo vinculo do concurso ideal, da indagação relativa a existência de circunstancias atenuantes . - Reveste-se de legitimidade o ato judicial, que, fazendo aplicação da causa especial de diminuição a que alude o art. 29, par.1., do CP, vem, de maneira fundamentada, a optar pela redução minima de um sexto, autorizada, pelo preceito legal em referencia, desde que o Conselho de Sentença haja reconhecido o grau de menor importancia da participação do réu na pratica delituosa. Embora obrigatoria, essa redução da pena - que supoe a valoração das circunstancias emergentes do caso concreto - e variavel, essencialmente, em função da maior ou menor culpabilidade do réu na eclosão do evento delituoso . - Se, não obstante eventual contradição entre as respostas dadas aos quesitos, vem os Jurados a responde-los de maneira favoravel ao réu, permitindo, desse modo, que se lhe dispensa tratamento penal benefico, não há como reconhecer a ocorrencia de prejuizo apto a invalidar a condenação imposta. - Inocorre contradição na declaração dos Jurados, que, em resposta a indagação sobre o dolo eventual, afirmaram-no existente nas tres series de quesitos, muito embora diverso o resultado dos votos apurados em relação a cada uma dessas series (4x3, na primeira serie, e 5x2, nas segunda e terceira series). A contradição que se revela apta a gerar a nulidade processual e somente aquela que se manifesta nos votos proferidos pela maioria dos Jurados, não sendo possivel inferi-la da eventual incoerencia de um ou de alguns votos minoritarios. (STF - HC: 71800 RS, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 20/06/1995, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 03-05-1996 PP-13899 EMENT VOL-01826-01 PP-00159) (grifos não constam no original).
Por fim, o STJ; além de igualmente entender que os agentes, praticantes das condutas também denominadas “pegas”, atuam com indiferença quando ceifam a vida dos transeuntes das vias públicas; também admite a possibilidade de fazer incidir a qualificadora do artigo 121, §2°, IV do Código penal, que diz respeito a qualquer outro recurso capaz de dificultar ou tornar impossível a defesa do ofendido, verbis:
HABEAS CORPUS. PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ART. 121, § 2.º, INCISO IV, DO CÓDIGO PENAL. "RACHA". QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU OU TORNOU IMPOSSÍVEL A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE COM O DOLO EVENTUAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. 121§ 2.º CÓDIGO PENAL1. Consoante já se manifestou esta Corte Superior de Justiça, a qualificadora prevista no inciso IV do § 2.º do art. 121 do Código Penal é, em princípio, compatível com o dolo eventual, tendo em vista que o agente, embora prevendo o resultado morte, pode, dadas as circunstâncias do caso concreto, anuir com a sua possível ocorrência, utilizando-se de meio que surpreenda a vítima.Precedentes.2. Na hipótese, os réus, no auge de disputa automobilística em via pública, não conseguiram efetuar determinada curva, perderam o controle do automóvel e o ora Paciente atingiu, de súbito, a vítima,colidindo frontalmente com a sua motocicleta, ocasionando-lhe a morte.3. Nesse contexto, não há como afastar, de plano, a qualificadora em questão, uma vez que esta não se revela, de forma incontroversa, manifestamente improcedente. 4. Ordem denegada (STJ: 120175 SC 2008/0247429-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 02/03/2010, T5 - QUINTA TURMA) (grifos não constam no original).
A referida aplicação da circunstância qualificadora, por fim, tem sentido e é de fácil entendimento, sem requerer muito esforço mental para abstraí-lo, afinal dirigir a velocidades que podem superar os 100 quilômetros por hora e atingir um transeunte, ceifando-lhe a vida é factualmente uma forma de matar sem possibilitar tentativas de defesa a qualquer ser humano normal, cujos reflexos jamais fornecerão condições para esquivar do veículo.
Todos os exemplos trazidos demonstram com convicção que atualmente é impreterível para os juízes a utilização de cautela especial no que tange ao julgamento de processos referentes a crimes de trânsito, de modo a não permitir que a similitude entre modalidades jurídicas como o dolo eventual e a culpa consciente, ou fatores externos que em nada deveriam influenciar nos autos, comprometam a aplicação da Justiça, a qual deve sempre prevalecer, sobretudo no tocante ao tema discutido, em razão da evidente situação calamitosa na qual o trânsito brasileiro se encontra atualmente.
6. CONCLUSÃO
Com base em tudo o que foi exposto, afirma-se que a ideia principal deste trabalho monográfico foi a análise aprofundada sobre a incidência e a aplicabilidade do dolo eventual e da culpa consciente nos mais diversos crimes de trânsito.
Aprioristicamente objetivou-se fragmentar e analisar detalhadamente os institutos do dolo e da culpa, no intuito de demonstrar, em um primeiro momento, o quão afastado um estaria do outro na seara do direito penal.
No Capítulo referente ao dolo e à culpa, inicialmente foi detalhado o conceito de dolo como sendo uma vontade acompanhada de um conhecimento determinado, ou seja, um instituto que detém dois elementos, o intelectivo e o volitivo, ou seja, de maneira sintética a doutrina leciona que o dolo deverá ser regido pela existência de dois elementos, quais sejam: a consciência do agente de que sua atuação possivelmente pode agredir ou por em risco um bem juridicamente protegido, e a indiferença e consentimento do agente para com esta eventualidade.
Aduziu-se que o dolo contém diversas formas de ser qualificado segundo a doutrina, dentre elas existe a classificação do dolo direto, que consiste na modalidade dolosa diretamente relacionada ao objetivo que é principalmente desejado pelo agente.
A seu tempo, a figura denominada dolo indireto recai não sobre o objetivo direto do agente, mas sobre as consequências naturais da conduta delituosa.
Foram trazidas as ramificações do referido dolo indireto, quais sejam, o dolo eventual e o dolo alternativo, este último advém quando a vontade do agente se direciona a um ou a outro resultado, obtendo a satisfação por meio da concretização de quaisquer dos dois.
Foram abordadas as figuras do dolo de dano e do dolo de perigo, a primeira basicamente consiste na vontade do agente direcionada a lesionar bem juridicamente protegido, ao tempo em que o dolo de perigo visa tão somente a situação de risco para a vítima.
A classificação do dolo conforme a finalidade foi elucidada, dividindo-se em dolo genérico e dolo específico, sendo que o dolo genérico advém quando o agente praticante da conduta punível pelo estado objetiva tão somente como resultado o tipo criminal objetivo da lei, inexigindo elemento subjetivo, enquanto que o dolo específico vai além, pois o agente, além do tipo penal, deseja um fim especial e de interesse subjetivo também tipificado.
A classificação do dolo quanto ao lapso temporal também foi analisada, foi explanado que esta se divide em dolo antecedente, dolo concomitante, e dolo subsequente, dependendo se o fato delituoso ocorre, respectivamente, antes, durante ou depois do efetivo acontecimento danoso, sendo que a última modalidade não é passível de punição ao agente, tendo em vista que o estado não leva em consideração o ânimo doloso do agente quando este apenas advém em momento posterior à conduta.
Em seguida foi detalhado o instituto da culpa, e trazidos conceitos decorrentes de diversos autores, no entanto, todos reconhecem que, em apertada síntese, a culpa nasce da violação, nascida de um descuido do agente, de um dever de cuidado imposto a todas as pessoas pelo estado com o objetivo de proteger os bens jurídicos que são objeto de sua proteção especial.
Mencionou-se que a culpa apenas se perfectibiliza com o preenchimento de determinados elementos, quais sejam: a tipicidade e a previsibilidade da conduta; o resultado lesivo advindo, mas não desejado e nem assumido pelo agente; e existência do nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado danoso; a conduta humana voluntária, seja ela por comissão ou por omissão; e a inobservância de um dever de cuidado objetivo.
A supramencionada inobservância pode se dar mediante negligência; que decorre de uma ausência de conduta em momento que era impositivo ao agente fazê-la; imprudência, por meio de uma conduta comissiva e descuidada, no entanto não permitida; e imperícia, advinda da falta dos conhecimentos necessários dentro do âmbito profissional.
Aduziu-se que a culpa possui suas próprias e peculiares espécies, cujas principais seriam a culpa consciente; culpa inconsciente, que é a culpa sem previsão sobre um fato previsível; culpa imprópria, que se origina de um delito por meio do qual o agente equivocadamente imaginava que estava diante de uma excludente de ilicitude (legítima defesa por exemplo); e o preterdolo, cujo resultado ultrapassa as expectativas do agente, caracterizando dolo no que tange resultado pretendido e culpa no tocante ao resultado não pretendido.
Posteriormente, houve o detalhamento dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente, no intuito de demonstrar a quão próxima a culpa pode estar do dolo, tendo em vista a semelhança entre as modalidades e a dificuldade de dissociação existente entre eles.
Foi constatado que a mencionada semelhança reside, notadamente, no elemento “previsibilidade”, uma vez que em ambos os institutos o agente prevê a possibilidade de ocorrência do evento delituoso.
No entanto foi asseverado que os institutos se dissemelham em determinados pontos, e o doutrinador Fábio Bittencourt da Rosa facilita tal procedimento de diferenciação por meio de três critérios que denominou: Critério da valorização do resultado, Critério da credibilidade do evento criminoso e Critério da seriedade do dano.
Posteriormente às noções introdutórias e comparativas, foi realizada uma abordagem analítica do dolo eventual e da culpa consciente dentro da ótica dos crimes de trânsito, um dos maiores geradores de óbitos e desastres do Brasil.
Foi vislumbrada a situação catastrófica atual em que o País se encontra, tendo havido a amostragem de dados estatísticos neste sentido.
Foi abordada a surpreendente variabilidade emocional do ser humano quando se encontra na direção de um veículo automotor, sabe-se que, a depender do grau de estresse e do estado espiritual de cada condutor, os veículos podem se tornar verdadeiras armas geradoras de delitos, dentre todos, frise-se os homicídios no trânsito.
A supramencionada variação do humor pode ser decorrente de infindáveis razões, notadamente os dissabores do dia a dia, o cada vez mais crescente imediatismo que a o dia a dia impõe, o aumento acelerado da população no Brasil, dentre outras.
Após as noções iniciais, indispensáveis de modo a dar o adequado prosseguimento às abordagens do presente trabalho monográfico, foram apresentados os principais empecilhos a correta aplicação dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito do País, os quais, dependendo das circunstâncias práticas, podem ser regidos pelo Código Penal ou pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Restou vidente que dolo eventual e culpa consciente são classificações respectivamente do dolo e da culpa, no entanto, ao contrário destes, aqueles são deveras semelhantes entre si, e tal similitude advinda de dois institutos que a princípio são tão distantes, notadamente no que se refere à mensuração da pena, é a grande problemática que justifica o presente trabalho.
A culpa consciente foge aos padrões normais da culpa, pois na referida espécie o resultado é previsto pelo sujeito, no entanto a autoconfiança o cega para a realidade dos fatos, de modo que este acredite levianamente que o resultado delituoso jamais ocorrerá, ou que poderá evitá-lo, a peculiaridade aqui exsurge porque a característica da previsibilidade, via de regra, encontra-se presente apenas nos crimes dolosos.
Por sua vez, dentro do gênero dolo existe a espécie dolo eventual, dentro da qual o sujeito se demonstra indiferente às consequências do resultado danoso gerado por sua conduta, aceitando os riscos de produzi-lo. Neste caso a peculiaridade está na vontade do agente, a qual, ao contrário do dolo genérico, não se dirige especificamente ao resultado danoso, no entanto, a conduta do agente o faz, de tal forma que o agente prevê a possibilidade de causar dano a outrem, mas ainda assim, realiza a conduta delituosa.
A importância da correta delimitação dos dois institutos é indispensável, especialmente no tocante à aplicação da pena final, tendo em vista que a punição a ser aplicada a título de dolo eventual é bastante superior à infligida como culpa consciente.
No entanto, o artigo 18, I do Código Penal, que versa sobre a teoria do dolo eventual, não é suficiente para garantir sua plena aplicabilidade ao lado da culpa consciente, necessitando, pois, do auxílio da doutrina e da jurisprudência pátrios.
Restou concluso, ainda que a matéria é deveras controvertida e que não há como padronizar a aplicação dos institutos, devendo a cada caso o magistrado aplicar atenção redobrada de modo a não os confundir e sentenciar uma pena descondizente com a justiça, seja decidindo por uma pena muito branda quando em comparação com a gravidade do crime, seja sentenciando com rigor desproporcional determinado agente que jamais teria coadunado com o evento desastroso.
No entanto, para que o julgador obtenha a perfeição de seu julgamento em hipóteses relativas ao tema objeto da discussão, se faz impreterível que este seja uma “parede intransponível”, capaz de superar obstáculos que vão além da própria dificuldade em dissociar os dois elementos objeto do tema em tela, que seriam, em especial, as influências trazidas pela mídia e pelas consequências de sua repercussão sobre toda a sociedade; e ainda o próprio lado humano do julgador, em combinação com o princípio do livre convencimento do Juiz, que pode ser deveras perigoso dependendo das circunstâncias.
No tangente à influência midiática, e seu poder de manipulação sobre a população, pode-se dizer que se trata de um fator que, dependendo das circunstâncias, pode constranger um magistrado a julgar contra seu próprio entendimento, sob pena de que o próprio julgador seja vítima do “julgamento” da sociedade.
Também convém lembrar da natureza humana do juiz, fator que, dependendo das circunstâncias, muitas vezes pode prejudicar sua característica fundamental, qual seja, a imparcialidade, sendo impreterível, pois, que o julgador busque se afastar ao máximo de sua subjetividade na hora de aplicar seu entendimento jurídico acerca dos fatos, tendo em vista que a aplicação adequada de seu ofício exige, sobretudo, que a razão se sobreponha às emoções.
Todos os mencionados infortúnios à correta aplicação dos institutos, a princípio, seriam inerentes não somente aos crimes de trânsito, mas a quaisquer condutas delituosas, no entanto a situação se agrava no que se refere ao tema em tela, diante da proximidade que há entre dolo eventual e culpa consciente, fator tal que pode corroborar para a produção de sentenças não condizentes com os requisitos legais.
Por tais razões, é impreterível que haja um cuidado redobrado anterior a análise final do mérito no que tange aos processos referentes a crimes de trânsito, de modo a ser aplicada a mais lídima justiça e atribuída a necessária importância à grave situação em que o Brasil se encontra, no que se refere a mortes geradas no trânsito.
Conforme demonstram as estatísticas, em termos absolutos, o Brasil é 4º país do mundo com maior número de mortes no trânsito, perdendo em números tão somente para a China, a Índia e a Nigéria, e é sabido e consabido que; muito mais importante do que a aplicação mais rigorosa das penalidades recaindo sobre os condutores de veículos automotores; deve haver uma reformulação significativa no que concerne a educação básica no trânsito, tal providência, uma vez levada a sério pelos governantes, certamente reduzirá substancialmente as tragédias que diariamente ocorrem nas avenidas e demais vias públicas da nação.
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7. 4. ACÓRDÃOS
TJ-SC - APR: 179570 SC 2002.017957-0, Relator: Jaime Ramos, Data de Julgamento: 08/10/2002, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Apelação Criminal n. , de Blumenau.
TJ-SC - APR: 20130068992 SC 2013.006899-2. (Acórdão, Relator: Newton Varella Júnior, Data de Julgamento: 19/11/2014, Quarta Câmara Criminal Julgado).
TJ-SC - RC: 20130104607 SC 2013.010460-7 (Acórdão), Relator: Ricardo Roesler, Data de Julgamento: 29/07/2013, Segunda Câmara Criminal Julgado.
STJ: 58826 RS 2006/0099967-9, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 29/06/2009, T6 - SEXTA TURMA. Data de Publicação: DJe 08/09/2009.
STF: HC 107801, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011.
TJ-PE - HC: 1863020128170850 PE 0008741-64.2012.8.17.0000, Relator: Cláudio Jean Nogueira Virgínio, Data de Julgamento: 01/08/2012, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 147.
TJ-SP, Relator: Rachid Vaz de Almeida, Data de Julgamento: 21/03/2013, 10ª Câmara de Direito Criminal.
TJ-RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Data de Julgamento: 11/09/2013, Primeira Câmara Criminal.
TJ-PR - RSE: 775477 PR 0077547-7, Relator: Oto Luiz Sponholz, Data de Julgamento: 10/06/1999, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 5417.
STJ - HC: 120175 SC 2008/0247429-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 02/03/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/03/2010.
TJ-DF - HC: 134101820078070000 DF 0013410-18.2007.807.0000, Relator: MARIO MACHADO, Data de Julgamento: 06/12/2007, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 23/01/2008, DJU Pág. 927 Seção: 3.
STF - HC: 71800 RS , Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 20/06/1995, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 03-05-1996 PP-13899 EMENT VOL-01826-01 PP-00159.
STJ: 120175 SC 2008/0247429-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 02/03/2010,T5-QUINTA-TURMA.