Aborto: anomia e autoritarismo
¹ María Soledad Alposta
² tradução por Matheus Maciel
Resumo
O objetivo deste trabalho é propor a aplicabilidade do conceito de anomia para a questão do aborto, a fim de preencher a lacuna entre a lei e a prática social que nos permite testar explicações ao conflito socionormativo. Pretendo percorrer um caminho interpretativo em que a anomia, como indiferença da prática social à proibição penal do aborto, resultaria em um limite à interferência do Estado. Entendo que esse limite pode ser transferido, na linguagem do Direito, como um direito político. Não vou considerar a anomia como um desvio, mas, neste caso, se trataria de um sintoma de ilegitimidade democrática da norma penal que marca a necessidade de inconsistência de mudança normativa. Ainda que todos os conceitos de anomia possam captar diferentes dimensões do fenômeno do aborto, encontro no conceito de anomia moral a maior força explicativa. A anomia daria conta da falta de um acordo na avaliação moral e na relação afetiva da vida gestacional e consequente um desacordo quanto aos meios que o Direito busca para sua proteção. Por sua vez, a reveladora anomia da ineficácia da norma criminal mostraria sua anemia como motivo de razões para atuar e sua perversão na promoção de um mercado negro de mortes evitáveis, onde deslocaria sua única possibilidade de eficácia (de inadmissíveis desincentivos cruéis). Sugiro ver na anomia a proibição penal do aborto precoce, um marcador de risco para o Estado de Direito e a democracia, por uma lei criminal que nessas coordenadas se situa no campo da simulação, da hipocrisia e da imposição de particularismos morais.
Palavras chaves
aborto, anomia, moral, autonomia pessoal, ilegitimidade do direito penal, democracia.
Introdução
O aborto gera um debate que põe em jogo a sensibilidade coletiva, uma vez que mobiliza aspectos emocionais e ideológicos. O debate é apresentado como uma guerra de Deuses em que se opõe olhares do bem. Nesse cenário de confronto e ruptura, a generosidade e a empatia parecem estar excluídas. Em um dos extremos, estão aqueles que rejeitam sua abordagem, uma vez que esta prática está localizada no âmbito do inominável e censurável e que são definidos em favor da vida gestacional. No outro, estão os que militam pela descriminalização e colocam o fenômeno em sua dimensão política e cultural. As pesquisas recentes mostram que essas posições não se identificam com o gênero, nem com faixa etária, embora a tendência seja que pessoas mais velhas, com maiores recursos econômicos, sejam mais resistentes à ideia de descriminalização, enquanto as mais jovens são as principais promotoras da descriminalização. O debate não é banal e uma prova disso é o número de mortes de mulheres de abortos clandestinos. Se, de fato, a descriminalização do aborto precoce salva vidas em geral, o que torna alguns setores tão resistentes à descriminalização? Na Argentina, esse debate está atrasado, mas nos traz uma oportunidade imbatível de falar sobre os principais alicerces nos quais nos baseamos ou queremos basear nossa vida em comum. Por causa de nossa história e cultura autoritária, a reflexão sobre a liberdade e a democracia ainda é uma questão não resolvida. O debate novamente coloca um desafio de secularização para o Direito, para redefinir a relação entre Direito e moralidade, e para pensar nas fontes de uma responsabilidade coletiva que não busca sua boa consciência deslocada em bodes expiatórios ou áreas de não-lei. O atraso no surgimento do debate, que se sobrepõe com um segundo processo contínuo que envolve a demanda por igualdade e reconhecimento social de outros, particularmente das mulheres, em uma época de reivindicações em que as resistências nos parecem retornar ao imaginário de natureza. Para tentar simplificar as diferentes abordagens, podemos distinguir, em princípio, duas abordagens: uma da dogmática dos direitos e outra no campo da política criminal, ambas inter-relacionadas. A primeira abordagem tem um eixo no reconhecimento de direitos, o direito de abortar ou não, o status da vida gestacional, o direito à privacidade entre outros, e sua ponderação e avaliação da legitimidade/legalidade da interferência do Estado na proibição. É debatido no dilema entre um humanismo secular relacionado à privacidade e ao individualismo, e convicções enquadradas na sacralidade da reprodução humana. A segunda abordagem faz um salto argumentativo para sustentar que, mesmo se concordarmos que ambas as vidas merecem proteção, da mulher e da vida gestacional, a penalização não é uma ferramenta eficaz e adequada para atingir esse objetivo. O crime de aborto teria, para este segundo olhar, uma função puramente simbólica particularista, sem constituir uma verdadeira política de proteção e prevenção. Além disso, a função latente da proibição penal estaria nas causas de omissão de morte materna por abortos clandestinos.
Neste cenário, proponho olhar para o fenômeno do aborto a partir da ênfase da norma sociocultural contrária à proibição criminal sob o conceito de anomia relativa. No caso do aborto, essa anomia funcionaria como um delimitador sociocultural de zonas de não interferência que podemos identificar, em princípio, como privacidade, mas também se traduz em um direito autônomo de natureza política como direito sociocultural. A anomia funcionaria, por sua vez, como uma diretriz que revela a ineficiência penal que lhe entrega a uma mera função pedagógica. No assunto, o direito penal deixa de cumprir uma função integradora, uma vez que não consegue ser expressão de valores ou de uma moralidade compartilhada. A anomia delimita essas divergências de valoração em relação à prática do aborto, e marca a convenção sociocultural, mais além das análises biológicas sobre o status do embrião, que determinam um limite cuja travessia implicaria o uso da força bruta sem legitimidade. Assim, a anomia nos mostra uma tensão na condição em que a pessoa se agarra contra o Estado. Essa tensão interroga o Estado de Direito e exige para sua recomposição o ajuste da norma penal.
II. A dimensão sociocultural do aborto
A cultura, em linhas gerais, forma o conjunto de conhecimentos, crenças e padrões de comportamento compartilhados por um grupo social. Sejam considerados como uma estrutura objetiva de coerção ou como uma ordem subjetiva de significado, os valores culturais incorporam as instituições e contextos de ação com uma rastreabilidade histórica. A ideia de homogeneidade da cultura deu lugar à pluralidade cultural no reconhecimento de padrões culturais diversos. Identificou-se como subcultura a existência de grupos ou setores específicos que desenvolvem seus próprios valores e códigos de comportamento. Mesmo que exista uma tensão de valores culturais, a prática do aborto dificilmente pode ser entendida como uma subcultura, mas faz parte da racionalidade de nossa autodefinição cultural que se define como democrática e plural. O aborto do ponto de vista antropológico parece ser uma prática não promovida, mas aceita, que constitui um fato social. Seu impacto ou incidência depende, em grande parte, de fatores socioculturais ou, em outras palavras, a prática tem uma grande dependência sociocultural, como evidenciado por sua incidência em países como China e Índia. Nesses países, a maioria dos abortos responde à prática de abortos seletivos de embriões femininos, sendo o machismo, e não a descriminalização, um dos grandes determinantes. O lugar do aborto na cultura também é dado não apenas pela sua existência na prática e pela indiferença ou ocultação social, que nos informa sobre sua consideração sociocultural, mas também sua descriminalização, como política criminal, na maioria dos países do mundo ocidental com quem compartilharíamos um marco cultural. Discordâncias valiosas sobre a prática, por sua vez, nos falam de uma pluralidade ou de um pluralismo avaliativo, que também faz parte de um outro valor cultural profundamente enraizado e consubstancial à democracia moderna.
Quanto à prática de fato, na Argentina, o aborto responde a uma série de razões que são indiferentes à sua posição em relação ao direito penal. Ninguém parece levar uma gravidez adiante porque sua interrupção é proibida e ninguém a interrompe pela mera transgressão criminosa, menos ainda arriscando sua vida no ambiente clandestino para o qual foi forçado. A proibição e a criminalização do aborto não atingem a sua finalidade performativa (dissuasiva), se a tiverem, uma vez que não abordam o conjunto de razões para atuar, mas visam dificultar a sua acessibilidade, não com a penalidade, mas na perversão de sua função latente de promover um mercado clandestino, de uma zona de não-direito. A violação ou desobediência, vista do ponto de vista da norma penal, atinge não só a mulher, mas também os mesmos órgãos médicos, policiais, judiciais que não estão interessados em sua perseguição ,ou melhor, não estão dispostos a operacionalizar a sanção penal.
Essa indiferença à proibição não reside em uma rebeldia ou contestação solitária, que contrapõe o indivíduo à sociedade, tampouco é um comportamento de free riders, ou a uma resposta conjuntural de ruptura isolada ou interessada, e envolve algo mais do que o claro desuso da proibição penal.
Sua prática não é identificada com uma posição socioeconômica ou cultural, mas é transversal e intersubjetiva ou melhor transubjetiva. Além de sua prática clandestina e de certo estigma que continua a ter sua prática, o aborto não parece apresentar um questionamento sério da moralidade da época ou de uma ruptura cultural como já foi dito, bem como colocar em questão a força obrigatória da lei. Tendo em mente que o fenômeno é algo mais que uma prática contra-legem, ou um desuso, que não faz parte de um padrão anárquico, ou falta de socialização ou internalização do Direito, mas que escapa ao Direito Penal em sua reivindicação regulatória ou como um centro regulador, proponho olhar para esses fatos sociais como uma anomia relativa para tentar com este conceito captar a natureza do conflito socionormativo que expressa, e a crítica sobre a suposta solução punitiva.
III A prática do aborto como uma anomia relativa
O conceito de anomia tem sido abordado por diferentes autores, conceituando-o não apenas como a ausência de normas, mas também como o estado permanente ou duradouro de não aceitação e cumprimento das normas. Às contribuições de E. Durkheim (Durkheim, 1982) no assunto, foram acrescentados os desenvolvimentos teóricos de R. Merton, T. Parsons, entre outros. Esses autores tentaram analisar o desvio da norma criminal, a partir de uma visão estrutural e funcionalista da sociedade. Como defende M. Deflem (1998), a visão sistêmica pode ser útil na investigação sociológica para entender a mudança social e o conflito. É nessa perspectiva que os trabalhos sobre anomia nos permitem captar diferentes aspectos do fenômeno do aborto que nos permitem construir pontes entre o direito e a prática social e a partir daí questionar a legitimidade do direito.
No assunto que nos preocupa, a ideia de anomia em Durkheim nos leva a explicá-la como uma desorganização na divisão do produto do trabalho da modernidade, uma desigualdade que põe em perigo a solidariedade orgânica da interdependência moral. Para Durkheim, a anomia era um problema, uma negação da moralidade, e sua interrupção exigiu regras que mitigam as desigualdades externas, que introduzem mais justiça nas relações entre os órgãos, ou seja, regras que ajustam os fatores de instabilidade social. Enquanto Durkheim se referia a anomia nas sociedades industriais, suas ideias são aplicáveis à anomia que nos preocupa se queremos avaliá-lo como um mal-estar causado por uma situação de desigualdade estrutural, como uma mudança de significado em funções sociais, ou seja, conflito com os papéis resultantes de modernidade ou pós-modernidade. Em Robert Merton, por outro lado, vemos que a anomia deve ser entendida como uma dissociação entre os objetivos culturais e o acesso de certos setores aos meios necessários para alcançar esses objetivos. Essa versão da anomia também é explorável no caso do aborto, já que o modelo familiar e a parentalidade, com suas demandas atuais, não parecem conformar uma trajetória institucional compatível com a ideia de êxito social que também é proclamada como um objetivo cultural. Para Frederic Trasher, por exemplo, anomia consistia em uma desorganização, que deveria ser entendida como um estado transitório do sistema social na medida em que as formas de organização espontânea tendiam a ocorrer para aliviar as falhas do modelo dominante.
Na versão de Jean Duvignaud a anomia dava conta de um momento de mudança ou transição em uma sociedade que ainda não morre e outra que ainda não nasceu (uma anomia socrática). O caso do aborto permitiria ser explicado nesses termos, como uma anomia que propõe uma alternativa ao sistema predominante ou dominante de moralidade.
Enquanto vemos como todas as versões da anomia são interessantes e ricas para trabalhar na questão do aborto como uma anomia da modernidade, entendo que a versão individualista tem maior poder explicativo. Jean Marie Guyau, uma das primeiras a trabalhar no conceito de anomia, referiu-se à anomia moral como consequência da ética moderna baseada na ausência de regras apodíticas, fixas e universais. A anomia de Guyau respondia a um processo de individualização progressiva das regras morais, dos critérios de conduta e as crenças. As ideias de Guyau foram contra o conceito kantiano de autonomia, uma vez que em Guyau o código moral que governa o comportamento não era uma natureza que ele descreveu como transcendental ou metafísica. A moral vindoura seria anômica pela ausência de uma lei estabelecida e externa, para se tornar interna e individual. A anomia de Guyay tinha um significado positivo, não se apresentava como uma alternativa ou negação ao sistema predominante de moralidade, mas configurava uma moralidade em si mesma (Orrù, 1983). No caso do aborto, explicar a anomia como anomia moral nos permite concebê-la como uma falta de concordância ou de consenso intersubjetivo, devido à inexistência de uma regra moral homogênea no tema. Assim como em Durkheim, a anomia era o produto da mudança social, a norma penal do aborto poderia ser explicada como uma resistência ou sedimento de uma moral passada ou tradicional. A anomia moral nesse cenário seria em parte moldada pela inadequação da norma penal às exigências éticas da modernidade ou, por que não, da pós-modernidade e por uma falha democrática na mesma proibição penal. Especificamente, longe da perda ou supressão de valores, o fenômeno da anomia em relação à proibição criminal do aborto, pode ser explicado como falta de uniformidade na avaliação e relação de afetividade com a vida gestacional e dissidência também com os mecanismos de prevenção ao aborto. A anomia também mostraria que essa divergência valorativa não é apenas subjetiva, mas intersubjetiva ou transubjetiva, e nisso reside seu antídoto ao relativismo moral. Essa discordância, que tem uma rastreabilidade histórica, se estenderia às fontes do fato moral que depende de alguma descoberta metafísica e, em outras, de invenção ou interpretação (Welzer, 1990). As razões para o desacordo são múltiplas e opacas, porque os sentimentos ou predisposições morais dependem de um quadro relacional complexo que depende de uma variedade de fatores, incluindo orientação política, convicções religiosas, idade, como mencionado, entre outros.
O caminho do acordo que ainda não conseguimos viajar, e que nunca poderemos alcançar desde o surgimento do debate em termos de um dilema, exigiria talvez a superação de uma série de obstáculos à reflexão ética, entre os quais Monique Canto-Sperber inclui o voluntarismo do bem; o fetichismo das normas e a ignorância da especificidade da reflexão ética. Identificar esse fenômeno como anomia moral nos permite argumentar que o Direito Penal não alcança a sua pretensão de universalidade, e portanto o direito diante do fato do desacordo irredutível, não pode legitimamente perseguir um fim integrador que não alcança, sem colocar em xeque a democracia.
III Anomia e legitimidade moral
A anomia deixa a criminalização do aborto na cornija do mundo do Direito como uma regra de comportamento que, no caso de seu descumprimento, é possível antecipar sua justa sanção. Poderíamos dizer com isso que o crime só forma parte do Direito na medida de sua legitimidade formal, como norma produzida por um legislador. A essa norma formal opõe-se a norma de pessoas situadas e não abstratas, e do resto de uma sociedade relativamente passiva sobre o assunto. A proibição criminal é um direito não evidente e sem uma força integradora, devido a sua falta de uniformidade avaliativa em relação ao bem a ser protegido. Além dos debates em torno da autonomia ou da lei, é um direito que não tem vigência sociológica.
A anomia constitui um desafio do fato sociocultural para a legitimidade material da norma Penal, e também para seus meios de configurar a criminalidade, que delimita uma área de não-intervenção, uma esfera de indiferença social. Tentamos apresentar essa delimitação como uma anomia moral, devido a um processo de individualização moral com caráter transpessoal, ou como falta de valor objetivo da moral. Neste sentido, além da formalidade da lei, Joseph Raz argumenta que o Direito será tal, desde que consiga se inserir no mundo das razões para atuar. Algo mais é necessário no Direito do que sua simples legalidade a ser obedecida, operativa. A impertinência da interferência Penal no coração da desobediência nos fala da existência sociológica de uma esfera de resistência, traduzível em nosso atual universo simbólico na lei como uma reivindicação do princípio regulador da autonomia (o princípio cardeal de nosso sistema legal moderno).
Este princípio regulador que sustenta a dignidade damulher que não pode ser instrumentalizada, refere-se à mesma autonomia como parte do campo referências retórica da reprodução humana. Trata-se do exercício da autonomia entendida como a capacidade de escolha moral das pessoas, o princípio de uma racionalidade que imuniza contra toda alienação e, portanto, também tem sido abordada em sua dimensão política como liberdade de culto, opinião, liberdade de escolha. Esse é o universo simbólico em que a divergência está inserida na avaliação e relação da afetividade com a vida gestacional. Se a anomia é uma anomia moral, fica aberto o desafio da norma criminal ao Estado de direito e à democracia, já que por um lado a anomia mostraria que a criminalização é uma empresa particularista, e por outro lado a anomia levaria em conta a existência de direitos irredutíveis à intervenção estatal que responde a um pluralismo compatível com as bases liberais de nossa institucionalidade.
IV. A força do direito penal
No caso específico do aborto, a norma penal é anêmica, é seriamente questionada em seu valor de direito, pois não obedece a uma norma aceitável, punível e obediente. O crime é incapaz de exercer sua função reguladora. Isso ocorre porque a lei não pode fazer todo o trabalho para garantir o Estado de Direito, e quando a lei e a prática se divorciam, o único recurso da lei é a força. A anomia coloca, assim, em questionamento a legitimidade material da proibição e a sua legitimidade democrática. Tentamos definir essa carência como uma falta no sustento moral da norma penal, já que a falta de homogeneidade na avaliação que fundamenta a proibição impossibilita sua obediência sem contestação. Vemos como a proibição não tem força integradora e, portanto, não tem força simbólica, já que a eficácia da proibição exigiria o uso exclusivo e intensivo da violência. A anomia está no centro do paradoxo da autoridade que descreve a incompatibilidade entre a ideia de autoridade e a de autonomia moral. Sua ilegitimidade estaria no abuso legislativo do poder de definição criminal em face da divergência moral e sua ineficiência, agravada pela dissociação entre sua função declarada e latente.
Embora a intenção seja proteger a vida gestacional, essa intenção não aborda as deficiências bem conhecidas da ferramenta do Direito que é servido. Como sabemos, além de ser um Direito terrivelmente seletivo, o Direito Penal é um direito que chega tarde, no caso do crime de aborto, já que aparece quando o aborto já ocorreu. Chegaria mais cedo se a norma criminal tivesse um papel de dissuasão ou se, como sustenta Raz, isso fornecesse razões suficientes para agir de acordo. A realidade de sua prática mostra que a única coisa que a criminalização alcança é a criação de um obstáculo normativo à acessibilidade da prática, o que faz com que ela se desloque para a clandestinidade.
A eficácia indireta da proibição consiste em criar um obstáculo que se cristalize em um extenso mercado de abortos clandestinos fora do controle do Estado, que produz mortes evitáveis. Essa perversão da norma penal, de reenviar sua possibilidade de eficácia ao risco da clandestinidade, compromete nossa responsabilidade coletiva. A história mostra como a proliferação de mercados clandestinos é uma das consequências das penalizações autoritárias, em que a relação entre o paternalismo e o fascismo se torna tangível.
O deslumbramento com a solução penal responderia mais aos sedimentos autoritários de nossa cultura, do que à ignorância que pode ser salva com respeito à capacidade dissuasora, adequação e eficácia em geral do Direito Penal. No caso do aborto, a única magia que o Direito Penal opera parece estar no campo da crueldade e da hipocrisia do populismo penal, e consiste em reforçar a crença absurda de que estamos protegendo a vida gestacional sem também investir nela nem um centavo.
V. Conclusão
O conceito de anomia nos permite tentar captar a natureza do conflito socionormativo que apresenta a criminalização do aborto. A ideia de anomia moral tem uma grande força explicativa dessa tensão particular e nos permite nutrir nossa reflexão sobre como reagir a ela. A anomia seria indicadora de uma limitação na incumbência da proibição legal e, portanto, na interferência estatal. Essa limitação responderia a uma área regulada pela autonomia pessoal derivada de um pluralismo moral em relação à avaliação da condição fetal e da relação afetiva com a vida gestacional e ao exercício dessa capacidade moral por parte de pessoas situadas e não abstratas. No caso do aborto, a anomia como prática social, despojada da criminalização como um empreendimento moral não consensual, em uma mediação inadequada entre moralidade e política. A ilegitimidade da lei penal seria baseada na falta de acordo intransponível na guerra dos deuses, com o bem que é protegido e os meios a serem usados para isso. Esta discordância, que se apresenta como uma discordância política, como evidenciado pelo intenso debate em torno da questão, requer do exercício de uma função simbólica sem a pretensão de absoluto e obriga ao direito que pretenda ser democrático a renunciar ao uso de seu braço armado quando ele não alcançar a sua função integradora e se apresenta dependente de um particularismo moral.
A anomia também desmascara uma lei penal indigna que não visa dissuadir a conduta individual, mas cria um obstáculo inadmissível em uma área de não-direito, reenviando a essa clandestinidade sua única possibilidade de efetividade. Portanto, a norma penal como fator autoritativo compromete nossa institucionalidade e nos força a assumir nossa responsabilidade pública, marcando um desafio à democracia em termos de como lidamos com o dissenso moral. Finalmente, a dependência sociocultural do aborto mostra a necessidade de mudar nossas pretensões morais para outro campo no qual o Direito possa recuperar sua autoridade: o campo do diálogo, as boas razões, a persuasão o cuidado mútuo, e deixar de lado um ‘facão’ que, por sua vez, não estamos dispostos a usar.
¹María Soledad Alposta, Universidade de Buenos Aires. Faculdade de Direito
Buenos Aires, Argentina soledadalposta@gmail.com
² Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.
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