INTRODUÇÃO
A criminalidade, no Brasil, cresce de forma alarmante. A população carcerária dobrou nos últimos anos. A superlotação e as más condições dos estabelecimentos prisionais são notórias. Nesse contexto, um fato é incontroverso: se o encarceramento fosse a (única) solução para redução da violência, os índices deveriam estar diminuindo desde a década de 1990, eis que, de lá para cá, o número de presos se multiplicou. Segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, divulgado pelo CNJ, em 2018 havia mais de 600mil pessoas encarceradas, sendo que quase a metade eram presos provisórios[i]. A partir desses dados, percebe-se, aparentemente, na atualidade, um uso demasiado da prisão preventiva.
DA PRISÃO PREVENTIVA: DOS REQUISITOS E DOS FUNDAMENTOS
As prisões cautelares, medidas cautelares de natureza processual penal, buscam garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar, ou seja, são medidas destinadas à tutela do processo[ii], estando previstas no Título IX do Código de Processo Penal.
A prisão preventiva, espécie de prisão cautelar, prevista nos artigos 311 a 316 do CPP, como se sabe, não se presta a antecipar a punição estatal, ou seja, não se trata de antecipação da pena.
O jurista e professor Doutor Aury Lopes Junior[iii] ensina que as medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento, sendo ilegítima quando afastada de seu objeto e finalidade, deixando de ser cautelar.
Nos termos do art. 311 do CPP, “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.“
Vale registrar que, embora referido artigo (312) preveja a possibilidade de decretação da prisão preventiva, de ofício, somente no curso da ação penal (o que não condiz com o sistema acusatório, cujo assunto, todavia, é tema para próxima oportunidade), o art. 310, inc. II, do CPP, preconiza que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz poderá converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão.
Via de regra, a prisão preventiva possui como requisitos a prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (art. 312, caput, do CPP), trata-se, pois, do fumus commissi delicti, nos casos de crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos (art. 313, inc. I, do CPP).
Por outro lado, pode-se considerar que, o fundamento da prisão preventiva, segundo o CPP, é o periculum libertatis, isto é, do perigo que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, previsto no art. 312 do CPP como o risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
Nesse ponto, abre-se um parêntese para registrarmos o entendimento de que a garantia da ordem pública ou da ordem econômica se mostram de constitucionalidade duvidosa, na medida em que não se destinam à tutela do processo, verdadeiro fundamento das medidas cautelares.
A expressão “garantia da ordem pública”, como ensina LOPES JUNIOR, “por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante da maleabilidade conceitual apavorante” (2015, p. 637[iv]).
Com efeito, nos termos do artigo 144 da Constituição Federal, a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis e militares e corpos de bombeiros militares.
Contudo, a constitucionalidade, ou não, das referidas expressões (garantia da ordem pública e garantia da ordem econômica) não é o objeto deste texto, mas sim, no que se refere à legalidade da decretação da prisão preventiva em razão da gravidade, ainda que concreta, do crime.
Não obstante à natureza processual-cautelar da prisão preventiva, não é incomum decretos de prisão com base, unicamente, na gravidade abstrata do delito, sob a justificativa de risco de garantia à ordem pública, principalmente, nos casos de tráfico de entorpecentes, que representam cerca de 25% das prisões no Brasil[v], afirmando-se que o tráfico é crime grave e está ligado à prática de outros crimes, como homicídios, roubos etc.
Em outras palavras, a prisão preventiva, nesses casos, ocorre de forma automática: basta a prática de determinada infração penal para que se decrete a prisão extremada.
Entrementes, o Supremo Tribunal Federal já assentou entendimento de que a gravidade abstrata do delito não basta, por si só, para decretação da prisão preventiva, na medida em que a liberdade de um indivíduo suspeito da prática de infração penal somente pode sofrer restrições se houver decisão judicial devidamente fundamentada, amparada em fatos concretos e não apenas em hipóteses ou conjecturas, na gravidade do crime ou em razão de seu caráter hediondo. [vi]
DA ILEGALIDADE DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA COM BASE, UNICAMENTE, NA GRAVIDADE, AINDA QUE CONCRETA, DO DELITO: BREVE ANÁLISE DO ART. 282 DO CPP.
Embora o STF reconheça a ilegalidade da decretação da prisão preventiva com base na gravidade abstrata do delito, a Suprema Corte tem admitido a decretação da prisão com base na gravidade concreta da conduta (HC 135.913, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão:Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 24/10/2017; HC156.673 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 22/06/2018;HC 125.384 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJe de08/05/2015).
No entanto, a prisão preventiva decretada com base, exclusivamente, na gravidade do delito, ainda que concreta, revela-se flagrantemente inconstitucional.
Isso porque, mesmo que concreta, a gravidade do crime, só por si, não é fundamento idôneo para se decretar a prisão preventiva, na medida que, além de tratar-se de prisão cautelar, de natureza processual, faz-se necessária a verificação cumulativa das circunstâncias pessoais do agente, como a reincidência, por exemplo.
Com efeito, dispõe o artigo 282 do CPP, que, ad litteram:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (g.n.).
Veja-se que, no inciso II do artigo retro transcrito há a conjunção aditiva “e”, ou seja, para a decretação da prisão preventiva, não basta a gravidade do crime, é necessário, além disso, observar-se as circunstâncias do fato “e” condições pessoais do indiciado ou acusado.
Em consonância, é o que dispõem o artigo 5.º, LXVI, da Constituição Federal[vii] c/c artigos 282, § 6.º, 310, inciso III, 321, 322, parágrafo único, todos do Código de Processo Penal[viii], no sentido de que a prisão preventiva deve (deveria) ser a ultima ratio.
Destarte, a decretação da prisão preventiva com base, exclusivamente, na gravidade do crime, ainda que concreta, mesmo reconhecendo a legalidade da expressão “garantia da ordem pública”, mostra-se inadequada, nos termos do art. 282, inc. II, do CPP.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A decretação da prisão preventiva, com base, unicamente, na gravidade do delito, muitas vezes, sob a justificativa de que, em liberdade o agente poderá vir a delinquir, comprometendo, assim, a garantia da ordem pública, além de inadequada (art. 282, inc. II, do CPP), esvazia o fundamento dessa medida cautelar extremada, tratando-se de verdadeiro poder de vidência, de futurologia, eis que única presunção prevista no ordenamento jurídico é a do estado de inocência, princípio expressamente previsto no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição Federal.
[i] Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/987409aa856db291197e81ed314499fb.pdf>
[ii] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 589
[iii] Ibidem, p. 647-648.
[iv] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
[v] Segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, p. 39.
[vi] Nesse sentido: HC 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ 22.10.2004; HC 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJ 10.11.2006; HC 88.448/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, por empate na votação, DJ 9.3.2007; HC 101.244/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, unânime, DJe 8.4.2010 e HC 127.426/SP, rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, por maioria, DJe 17.9.2015.
[vii] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
[viii]Art. 282. [...]
§ 6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
[....]
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Art. 321. Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.