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Transplantes de órgãos e tecidos:

uma abordagem constitucional

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RESUMO: Neste trabalho, pretende-se pautar a legislação relativa aos transplantes de órgãos e tecidos e analisar a constitucionalidade de alguns dispositivos da atual Lei nº 10.211 de 23/03/2001, em especial o seu art. 4º. Fundamentar-se-á a análise no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e no direito fundamental à vida. Também serão abordadas algumas discussões acerca dos direitos de personalidade, integridade física, poder de disposição do próprio corpo e liberdade de consciência, indispensáveis à análise constitucional da referida Lei.

PALAVRAS CHAVE: dignidade humana; direito à vida; direitos de personalidade; (in)constitucionalidade; transplantes de órgãos e tecidos.


RÉSUMEN: Este trabajo tiene el objetivo de abordar la legislación acerca del tema de transplantes de órganos y tejidos humanos y de analizar la constitucionalidad de de la actual Ley nº 10.211 de 23/03/2001, especialmente el artículo. 4º. Para ello, se fundamentará el análisis en el principio constitucional de la dignidad de la persona humana y en el derecho fundamental a la vida. También serán trabajadas algunas discusiones sobre los derechos de personalidad, integridad física, poder de disponer del propio cuerpo y libertad de conciencia – elementos indispensables frente al análisis constitucional que se propone.

PALABRAS CLAVE: dignidad humana; derecho a la vida; derechos de personalidad; (in)constitucionalidad; trasplantes de órganos y tejidos humanos.


APRESENTAÇÃO

            Com este trabalho propomo-nos a realizar uma análise constitucionalista acerca dos transplantes de órgãos, através do estudo da principiologia e dos direitos fundamentais elencados em nossa Carta Magna, mormente aqueles que se referem à vida e à dignidade humana, paradigmas para a compreensão do tema em questão.

            Além destes destacam-se, como condição de possibilidade para o exercício destes, outros tais como direitos de personalidade, integridade física e poder de disposição do próprio corpo, liberdade de consciência, entre outros.

            Analisar-se-á a Lei n. 9434, de 4 de fevereiro de 1997, que introduziu o consentimento presumido de doação de órgãos e tecidos em nosso país, bem como as alterações introduzidas pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001, em especial as mudanças na redação do art. 4o da Lei 9.434 de 1997, no sentido de excluir a manifestação de vontade do potencial doador, deixando a cargo da família a decisão sobre a doação - ou não - dos órgãos do de cujus. Será suscitado como problema a (in)constitucionalidade da nova e da velha da redação do referido artigo das citadas leis.


1 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

            A dignidade é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional, "é a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete". [01] Esse fundamento é considerado como o princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidas às pessoas no que se refere ao texto constitucional. Fabriz contribui com a sua magistral consideração: "o mencionado princípio torna-se a coluna vertebral do Biodireito, sendo princípio que se estabelece como direito humano e fundamental". [02] Assim sendo, leciona Nunes:

            [...] acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha - ou, tem o direito de ganhar - um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade -, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade. [03]

            Dignidade da pessoa humana [04] é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da nossa história, chegando ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, constituído pela razão jurídica [05]. O conceito de dignidade que é de específica aplicação ao ser humano, tem nítida fundamentação religiosa e faz parte da mais tradicional doutrina cristã.

            A experiência nazista, fruto de inúmeras atrocidades que afrontaram a dignidade da pessoa humana, foi o marco histórico que gerou a consciência de que se deveria preservar a dignidade da pessoa humana a qualquer custo, devendo-se, assim, lutar contra tudo que a viole.

            Sob esse enfoque, iniciou-se a busca incessante pela formação de consciência, demonstrando que os Direitos do Homem devem sempre primar pela proteção das liberdades fundamentais e pelo tratamento de modo justo e igualitário. É por isso que se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, como "fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marcam a experiência humana". [06]

            Após a Segunda Guerra Mundial, em 1948, surgiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada pela Organização das Nações Unidas, que, em seu preâmbulo, consigna que a dignidade, inerente a todos os membros da família humana, é "fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". [07] Nessa mesma época, outras convenções e pactos foram constituídos. Além disso, florescem no cenário internacional organizações não-estatais que objetivavam a divulgação de idéias e educação em Direitos Humanos.

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            A Constituição Brasileira de 1988 recebeu influência das Constituições de Portugal e de Espanha, ambas promulgadas na segunda metade da década de 70, após longo período de autoritarismo. Assim sendo, é interessante observar a imanente presença dos princípios fundamentais, havendo previsão expressa do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento e substrato principal dos demais direitos e garantias individuais e coletivas.

            A dignidade da pessoa humana é o principal direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, enunciada em seu artigo 1º, inciso III, que contém, além de mais de uma norma, fundamento de posições jurídico-subjetivas, ou seja, segundo Sarlet, "norma (s) definidora (s) de direitos e garantias, mas também de deveres fundamentais". [08]

            Toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Por esse motivo, não se admite discriminação, seja em razão do nascimento, raça, inteligência, saúde mental ou crença religiosa. Por isso, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana não pode deixar de ser considerado em qualquer ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas, devendo sempre estar assegurados, ao lado desse princípio, os demais direitos fundamentais encontrados em nossa Carta Magna.

            Complementa, ainda, Brauner:

            toda a filosofia dos direitos humanos desenvolvida pela Modernidade estabelece sua base neste mesmo princípio. Portanto, a idéia principal é de sustentar-se que a dignidade do homem e todos os direitos destinados a preservá-la, pertencem ao homem pelo único fato de seu nascimento. Mesmo que pareça difícil a compreensão da idéia de dignidade, podemos afirmar que este fundamento está presente no pensamento jurídico moderno. [09]

            Assim sendo, na moderna medicina, é reconhecido o respeito ao ser humano em todas as suas fases evolutivas (antes de nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer), assim: "para a bioética e o biodireito, a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim de vida com dignidade". [10]

            O princípio da dignidade da pessoa humana entranhou-se no constitucionalismo contemporâneo, daí partindo e fazendo valer-se em todos os ramos do direito. A partir de sua adoção, estabeleceu-se uma nova forma de pensar e experimentar a relação sócio-política no sistema jurídico; passou a ser princípio e fim do Direito contemporaneamente produzido e dado à observância nos planos nacional e internacional. Contra todas as formas de degradação humana, esse princípio fundamental emergiu como imposição do Direito justo o princípio da dignidade da pessoa humana.

            O principal direito fundamental que deve estar correlacionado à dignidade da pessoa humana é o direito à vida, pois "o que interessa mesmo não é que se possa garantir a vida, mas uma vida digna". Sem a vida não é possível a dignidade, isso porque "todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa". Nunes ainda afirma que a dignidade "é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. E é visível a sua violação, quando ocorre". [11]


2 DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS INTRÍNSECOS AO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS

            O transplante de órgãos e tecidos não é apenas um ato de benemerência do ser humano. Desde a doação de um órgão, até que esse seja transplantado, estão incutidos alguns direitos fundamentais pertinentes ao doador e ao receptor, como o direito à vida, a formação dos direitos de personalidade, a integridade física e o direito ao próprio corpo, a liberdade de consciência e o poder de disposição do próprio corpo.

            A noção de direitos fundamentais é mais antiga do que a idéia de constitucionalismo, que derivou diretamente da soberana vontade popular. Os direitos fundamentais tiveram a sua origem no antigo Egito e na Mesopotâmia, isso no terceiro milênio antes de Cristo, quando já havia previsão de alguns mecanismos para a proteção individual do homem com relação ao Estado.

            Os direitos fundamentais são as matrizes de todos os demais direitos, pois são entendidos como direitos que "emanam fundamentalidade sobre os demais, devido à sua natureza constitucional". [12]

            Atualmente, os direitos fundamentais são reconhecidos de forma expressa ou implícita em grande parte das Constituições de países que seguem o regime democrático. Gama afirma: "extrapolando os limites do direito constitucional, os direitos fundamentais, numa visão atual, conferem legitimidade ao novo Direito", [13] sendo assim mais propício para a sociedade atual, e menos utópico, como era em outros tempos.

            Em função de constituírem uma categoria especial do direito constitucional, os direitos fundamentais ganharam status de cláusulas inatingíveis pelo constitucionalismo democrático de nosso país. Tratam-se de direitos essenciais para a vida de qualquer pessoa humana, pois tocam as dimensões personalíssimas da vida, da liberdade e da dignidade.

            2.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA

            Parte da sociedade, concebe a vida como algo intocável e sagrado. Isso em função da cultura religiosa que acompanha até hoje a nossa civilização. "O argumento de que Deus é o dono absoluto da vida e que essa é sacral, prestou um grande serviço à humanidade, enquanto não havia legislação para defender a vida". [14]

            Hoje a humanidade tem condições de defender a vida com critérios racionais, muito diferentes das gerações que tinham a vida como um tabu, tomando essa idéia como a única maneira de defendê-la. Esta deixa de ser algo sagrado e intocável, como pregava a igreja aos seus fiéis e, com a sensibilidade da humanidade, conquista seu ápice com as primeiras legislações que primaram pela sua proteção legal. [16]

            O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos de personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integridade existencial, conseqüentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. [17]

            Acerca disso, discorreremos sobre os demais direitos fundamentais e de personalidade inerentes aos transplantes de órgãos e tecidos.

            2.2. DA INTEGRIDADE FÍSICA

            Não podemos deixar de citar o respeito à individualidade de cada pessoa, pois a integridade física é um direito individual. Fabriz afirma que: "o que está em jogo é o ser em sua individualidade, que não pode ser atingida, sob pena de atingir e macular a sua própria essência. A consciência deve ser preservada, em decorrência do direito à intimidade". [18]

            Silva questiona:

            Se a integridade física é um direito individual, surge a questão de saber se é lícito ao indivíduo alienar membros ou órgãos de seu corpo. O problema é delicado. Se essa alienação, onerosa ou gratuita, se faz para extração após a morte do alienante, não parece que caiba qualquer objeção. É que em tal caso, não ocorre ofensa à vida, que já inexistirá. [19]

            A lei permite a doação inter vivos para fins de transplante quando se tratar de órgãos duplos, partes de órgãos tecidos e partes do corpo. Isso tudo desde que a extração do órgão respeite a integridade física do doador. Nesse viés, Silva assegura:

            [...] é de observar, contudo, que a lei só permite a disposição de tecidos, órgãos ou parte do corpo vivo para fins de transplante, quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa (art. 9º da 9.434, de 4.2.1997). [20]

            Sá, acredita ser necessário que tenhamos em vista a vontade transidividual tanto do doador, quanto do receptor, para que não ocorra agressão à integridade física de ambos. Destarte:

            [...] do ponto de vista da proteção da integridade física, a evolução do direito deixou preservada a vontade individual, que continua a ser imóvel das regras legisladas. Fez o acréscimo, entretanto, da vontade transindividual, seja do ponto de vista do doador saliente, ouvida a família, seja do ponto de vista do receptor, a quem não se insinua faculdade de dispor do corpo alheio, sem o concurso da vontade do doador. [21]

            O consentimento é um pressuposto de licitude quando se tratar de qualquer atividade que atinja a integridade física do ser humano. Assim sendo, o consentimento tem de ser livre e espontâneo, não podendo haver qualquer forma de coação.

            2.3. DO DIREITO AO PRÓPRIO CORPO E DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

            O direito fundamental ao próprio corpo está diretamente relacionado à noção dos direitos de personalidade. Tal direito impõe os limites admissíveis de interferência no corpo humano em todas as etapas e dimensões da vida humana, "seja ainda embrião, feto, criança, adolescente, pessoa adulta, pessoa idosa, ou já falecida". [22]

            O direito ao próprio corpo evidencia-se cada vez mais na área do biodireito "especialmente diante dos avanços das técnicas de tratamentos empregados pela medicina que envolvem possibilidade de disposição de certas partes do corpo humano, ora em prol do mesmo sujeito, ora em favor de outra pessoa" [23].

            Destarte, somente a vontade individual não é suficiente para o exercício do direito ao próprio corpo. Isso porque a faculdade dispositiva de partes do corpo humano está regulada pela ordem pública, tendo em vista os valores da dignidade humana e do direito à vida. Assim, a pessoa individualmente não tem direito real sobre partes de seu corpo, havendo, portanto, a necessidade de uma ordem pública que expressamente permita a disposição de partes do corpo humano.

            Já a liberdade de consciência, que "se caracteriza como exteriorização do pensamento no seu sentido mais abrangente", [24]está intimamente ligada às liberdades de expressão e de pensamento. Isso porque é através do acesso livre às correntes de pensamento da humanidade, em todos os campos, que poderá o indivíduo livremente formar a sua consciência.

            A liberdade do homem tem como característica a idéia de que a sua conduta corresponde a uma conseqüência. Tendo em vista a individualidade do homem (direito subjetivo), ele é livre para dispor de seu corpo. "Na esfera social, a humanidade é livre de pretender os órgãos e tecidos, embora não se sujeite a sanção, por indeterminação de destinatário". [25]

            Estamos diante de uma encruzilhada, nascida do conflito de interesses na dimensão individual (ou de interesses em conflito, prefira-se): o corpo humano só há de satisfazer a uma de duas necessidades: a liberdade individual, egoísta ou altruísta, que consulta ao jusnaturalismo; ou a liberdade social, coletiva, atrativa ou repulsiva, que vem do positivismo. (...) em face, pois, do corpo humano, há no direito duas atitudes metodológicas: os órgãos ou tecidos, vistos como partes do homem, feita remissão ao todo, são o próprio sujeito de direito, prevalência do valor vontade; ou vistos como coisa destacável, feita exclusão da origem, são objeto de direito de outrem, prevalência do valor interesse. [26]

            Tendo em vista a principal alteração introduzida pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001, em ser art. 4º, a qual institui que apenas os familiares elencados nesse artigo devem decidir acerca da doação, ou não, dos órgãos de seu familiar falecido, podemos ultimar que quando se tratar do consentimento para a doação de órgãos e/ou tecidos, a liberdade de consciência do doador e o poder de disposição do seu próprio corpo, devem ter prioridade sob qualquer decisão de seus familiares.

            Pretende-se, por fim, construir um pensamento que assegure que a liberdade de consciência do doador, ou seja, a construção e constituição expressa de todos os seus valores e princípios em vida, devem estar acima de qualquer decisão de seus familiares, quando se tratar de um doador em potencial.

Sobre os autores
Andiara Roberta Silva

bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), pesquisadora nas áreas de bioética e direito ambiental

Theobaldo Spengler Neto

mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Andiara Roberta; SPENGLER NETO, Theobaldo. Transplantes de órgãos e tecidos:: uma abordagem constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 857, 5 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7541. Acesso em: 22 nov. 2024.

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