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Direito Comparado: O Sistema Possessório na Ótica Brasileira e Portuguesa

Agenda 20/07/2019 às 09:37

Trata-se de artigo visando comparar o sistema possessório na legislação civil brasileira e portuguesa.

Diversos autores ao longo da história discorreram sobre a posse. Instituto esse, ainda complexo, com inúmeras indagações. Doutrinadores como Savigny, Ihering, Saleilles, Perozzi e Antonio Hernandez Gil foram os que mais se destacaram. Deveras suas divergências essenciais, todas tem um aspecto em comum, isto é, determinar a relação de poder entre o sujeito e a coisa. 

Nesse sentido, ensina o professor Caio Mário da Silva Pereira:

Sem embargo dos diferentes entendimentos, em todas as escolas está sempre em foco a ideia de uma situação de fato, em que uma pessoa, independentemente de ser ou de não ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a. É assim que procede o dono em relação ao que é seu; é assim que faz o que tem apenas a fruição juridicamente cedida por outrem (locatário, comodatário, usufrutuário); é assim que se porta o que zela por coisa alheia (administrador, inventariante, síndico); é assim que age o que se utiliza de coisa móvel ou imóvel, para dela sacar proveito ou vantagem (usufrutuário). Em toda posse há, pois, uma coisa e uma vontade, traduzindo a relação de fruição. (2018; p. 11).

Inicialmente, indispensável depreender o corpus e o animus.

Corpus é o elemento material, traduzindo-se nos atos materiais praticados sobre a coisa, tais quais guardar e conservar o objeto. Por seu turno, o animus é o elemento psicológico, sendo necessário a vontade de se comportar como o titular do direito correspondente aos atos realizados. 

Savigny, em 1803, foi responsável pela teoria subjetiva, adequando o conceito com sua realidade social. Para aquele, a posse é constituída por dois elementos, quais sejam: a) corpus, aspecto físico-material com a coisa; b) animus domini, liame essencialmente subjetivo com o bem, caracterizado pela vontade do sujeito de ter a coisa como sua.

Por seu turno, Jhering, sustenta a posse objetiva. Segundo o autor, em suas obras “ Fundamentos da proteção possessória” e “Papel da vontade na posse”, o conceito de animus não é relevante, sendo importante apontar a função econômica do bem, bastando, então, o corpus, vez que o animus já estaria integrado nesse. (VENOSA; 2017; p. 42).

Da comparação das duas teorias, compreende-se que o sistema objetivo concede uma tutela mais ampla, uma vez que abrange os casos nos quais o poder de fato se faz ao abrigo de um direito real e os casos em que o poder de fato se faz ao abrigo de um direito de crédito, tal qual o mandato.

Para Savigny, o fim e a causa da proteção jurídica da posse é a defesa da paz pública, enquanto para Ihering a razão pela qual se protege a posse é o fato dessa ser o sinal aparente, exterior do direito real correspondente.

Saleilles, a partir de uma teoria da apropriação econômica, afirma que a posse é uma relação de apropriação econômica e não jurídica. Para o teórico, o corpus não seria somente uma exteriorização fática da coisa, mas sim um fato de caráter econômico, envolvendo uma exploração dessa, sendo o animus, a vontade de concretizá-la. Dessarte, tal aspecto aproxima-se mais da via objetiva, ante a integração entre corpus e animus.

Em 1906, na obra “Insituzioni di Diritto Romano”, Perozzi discorreu acerca de uma verdadeira teoria sociológica da posse. Consoante o italiano, há dois aspectos a serem considerados: a) negativo, representado pela abstenção da sociedade em relação à coisa; b) positivo, sendo consequência, isto é, o exercício da coisa apreendida em razão da abstenção da sociedade geral. Em síntese, portanto, para o autor, a posse não dependeria da vontade do Estado, configurando um costume ético-social. Carlos Roberto Gonçalves, assim exemplifica a teoria de Perozzi:

Segundo o mencionado autor, a posse prescinde do corpus e do animus e resulta do “fator social”, dependente da abstenção de terceiros, como foi dito, que se verifica constumeiramente, como no exemplo por ele fornecido de um homem que caminha por uma rua de chapéu na cabeça. Segundo Savigny, tem ele a posse sobre o chapéu, porque o tem sobre a cabeça, podendo tirá-lo dela e nela recolocá-lo, e está pronto a defender-se de outrem arrebatá-lo. Para Ihering, é ele possuidor, porque aparenta ser o proprietário do chapéu.

Na concepção de Perozzi há, nesse caso, posse, pois quem tem o chapéu na cabeça torna aparente que quer dispor dele só, e , todos espontaneamente, se abstêm de importuná-lo. (2011; p. 38).

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Por fim, Antonio Hernández Gil, em La Posesión, elucida a posse como um verdadeiro tema social, descrevendo que é a partir dela que é possível atender as necessidades vitais do humano, envolvendo uma situação de moradia e trabalho, e, consequentemente, alcançando a dignidade da pessoa humana. Em decorrência disso, considera-se o espanhol o verdadeiro pioneiro nas teorias sociológicas da posse.

Pois bem, deveras pertinente essa exposição, para o sistema brasileiro e português interessa tão somente as doutrinas clássicas, isto é, a subjetiva e objetiva, ante sua evidente relação com o direito romano-germânico e, por conseguinte, com o sistema civil de Portugal e Brasil.

O Código Civil brasileiro de 2002 não conceitua posse, mas sim possuidor:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Os poderes inerentes à propriedade são quatro, isto é, usar, gozar, fruir e reivindicar. Dessa forma, segundo o dispositivo, basta o sujeito ser capaz de manifestar algum desses poderes para ter a posse. Não há no artigo mencionado qualquer elemento que possa remeter o sistema possessório como subjetivo. 

O legislador não positivou frases que possam indicar a necessidade de uma vontade de possuir, ou uma necessária vontade de agir consoante um proprietário. Pelo contrário, limita-se a afirmar tão somente a necessidade de manifestar um poder inerente ao direito real mais amplo, ou seja, a propriedade. 

Para tanto, basta mera interpretação gramatical.

O sistema brasileiro, portanto, adotou a teoria objetiva da posse, sendo essa também a posição de Caio Mario da Silva Pereira, senão vejamos:

Com o Código de 1916, hoje revogado, a doutrina objetiva entrou em nossa sistemática, com a relegação da subjetiva dominante entre os civilistas anteriores, bem como da concepção dos glosadores, presente no também revogado art. 200 do Código Comercial de 1850. O Código Civil de 2002, que em certa medida promoveu a unificação legislativa dos Direitos Civil e Comercial, manteve-se fiel à doutrina objetivista.

A posse, em nosso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio (Código Civil, art. 1.196). (2018; p. 22)

Dessa forma, considerar-se-á possuidor o locatário e o mandatário no sistema brasileiro, tendo acesso a todas as consequências do instituto da posse. 

A posse, diferentemente do caso brasileiro, é definida no Código Civil Português:

Art. 1251. Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

Do dispositivo, compreende-se a adoção da posição subjetiva. O corpus é identificado na passagem “quando alguém atua” e o animus “por forma correspondente”. 

Em uma comparação dos dois sistemas, possível exemplificar da seguinte forma: A empresta a B um bem móvel. No sistema português A é possuidor, mas B é um mero detentor. Já no sistema brasileiro ambos são possuidores, sendo A o mediato e B o imediato. Ora, B, deveras não conduza o bem como verdadeiro dono, possui o corpus, sendo suficiente para a teoria objetiva e insuficiente para a subjetiva.

Dessa forma, o locatário e o mandatário não são considerados possuidores no Direito Civil Português, sendo meros detentores ou possuidores precários, nos moldes do artigo 1253, do Código Civil de Portugal. 

Deveras adotada a teoria subjetiva em Portugal, o legislador cuidou de positivar algumas exceções no que concerne a defesa da posse, isto é, acerca da legitimidade para utilizar as tutelas possessórias. 

Tais exceções são encontradas nos artigos 1.037, 1.125, 1.133 e 1.188 do diploma legal, concedendo permissão de defender a posse ao locatário, parceiro pensador, comodatário e depositário. Porém, cumpre frisar que não são autênticos possuidores, não sendo a esses equiparados, estando eliminados, por exemplo, para efeitos de usucapião.

Portanto, denota-se que o legislador brasileiro cuidou de adotar uma tutela mais ampla para a posse, principalmente com fulcro em uma proteção aparente, valorizando eventual potencial econômico da utilização de um bem. Por seu turno, o legislador português foi mais exigente, sendo necessário o poder de fato sobre um bem, assim como a consciência e intenção de exercer um domínio de fato. 

Bibliografia

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direitos das Coisas. 4ª ed. São Paulo. Saraiva. 2011, p. 38;

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Direitos Reais. 26ª ed. Rio de Janeiro. Forense. 2018;

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos Reais. 17ª ed. São Paulo. Atlas. 2017.

Sobre o autor
Victor Bambinetti Gonçalves

Estudante de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE e da Faculdade de Direito da Universidade do Porto - FDUP. Com pesquisas no Direito Civil, mais especificamente Direito Civil Constitucional e Direito Digital.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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