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Dia da mulher negra latino-americana e caribenha

A flagrante omissão do Estado Brasileiro

Agenda 23/07/2019 às 14:13

Dia de 25 de julho é marcado pelo dia da mulher negra latino americana e caribenha. Como tem se posicionado o Estado Brasileiro?

A partir dos anos de 1980 estrutura-se o movimento feminista de mulheres negras com característica hibrida, visto que desde sua origem ostenta pautas para além das condições de trabalho, do movimento sufragista e do aborto, dando ensejo a um ativismo que permeia os índices de violências, o racismo e as discriminações que atingem em maior escala as mulheres negras.

Nessa esteira, se de um lado difundia-se no movimento feminista ocidental discussões que estavam relacionadas aos direitos de segunda dimensão, ou seja, direitos sociais (direito ao voto, direito ao trabalho digno e salário), de outro lado, as mulheres negras precisaram se movimentar para dar origem a um movimento que discutia a sua legitimidade enquanto sujeito, o que no direito encontra-se posicionado na esfera dos direitos individuais, ou seja, direito básico e de primeira dimensão.

Nesse contexto, em 1992, entre 19 e 25 de julho, aconteceu o 1º Encontro de Mulheres Negras latino-americanas e caribenhas em Santo Domingo, na Republica Dominicana, reunindo mulheres negras de diferentes países com o fim de analisar os efeitos do racismo e do sexismo na região, além de articular ações e homenagear mulheres afrodescendentes, lideres dessa luta. Assim:

[..].se conmemora aquella primera reunión del 25 de julio de 1992 en República Dominicana, el punto de partida para la lucha hacia la reivindicación y la visibilización de la mujer afro y todo su aporte cultural y social en la conformación de los Estados, una lucha marcada por la incidencia para el cambio y transformación estructural de la discriminación racial, violencia, sexismo, exclusión, pobreza y migración.[1]

Com efeito, o 1º Encontro de Mulheres Negras latino-americanas e caribenhas fora articulado exatamente como a resposta ao silêncio dos 32 países latino-americanos e caribenhos, aproveitando-se a ampla trajetória de mulheres negras inseridas dentro do movimento negro, em instituições e organizações sociais comprometidas com a construção de uma agenda equitativa e justa pensando nas especificidades dessas mulheres, principalmente porque nem o movimento feminista e nem o movimento negro, por si só, foram capazes de empregar ações necessárias nesse sentido, razão pela qual o movimento de mulheres negras passou a evocar a questão racial frente ao clássico movimento feminista, assim como cobrar uma postura mais efetiva do movimento negro.[2]

A chamada Rede de Mulheres Afrolatino-amerinas, Afrocaribenhas e da Diáspora (RMAAD) inaugurou, portanto, a aliança transnacional e mobilização política no cenário latino-americano, já que, resguardadas as devidas proporções regionais de cada país envolvido, a similaridade de condições frente às questões sociais, políticas e econômica lhes aproximam, formando uma identidade de gênero e racial.[3]

Mesmo com a historicidade supra referenciada, o Brasil instituiu apenas em 2014 o dia 25 de julho, o nomeando como Dia Nacional de Tereza de Benguela[4] e da Mulher Negra por meio da Lei Federal nº 12.987.[5]

Depreende-se que no cenário brasileiro estão em vigência a Lei Maria da Penha e a Lei nº 13.104/2015 a qual reconheceu o feminícidio como tipo penal. Ocorre que, os institutos jurídicos ignoram as peculiaridades étnico-raciais, ou seja, são políticas públicas universais em proteção às mulheres, de modo que não foram suficientes para de igual modo proteger mulheres negras e mulheres brancas,[6] o que pode-se analisar nos dados abaixo indicados.

No que tange aos índices de violência doméstica, dados levantados com base na pesquisa nacional de saúde do IBGE, demonstra que 2,4 milhões de mulheres sofrem agressões de pessoas conhecidas. Desse número, 950 mil são mulheres brancas, 1,5 milhão são negras e 22 mil são indígenas ou orientais.[7]

Quando o tema é homicídio, o recorte por raça/cor revela realidades muito distintas para diferentes grupos de mulheres: enquanto a taxa de assassinatos de mulheres não negras caiu 7,4% entre 2005-2015, a mortalidade das mulheres negras aumentou 22%, apresentando uma taxa acima da média nacional (5,2 mortes para cada 100 mil mulheres negras). Isso significa que 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras.[8]  

Denota-se que a partir de 2015 os registros passaram a ser de feminicídio quando a letalidade é motivada por condição de gênero (feminino) e não mais como homicídio.

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Na América Latina e no Caribe, dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), demonstra que a cada dez feminicídios registrados em 23 países da região em 2017, quatro ocorreram no Brasil. Nesse mesmo ano, pelo menos 2.795 mulheres foram assassinadas, das quais 1.133 no Brasil.[9]

Quando observado os indicadores dos casos de estupro nota-se que em 2014 foram notificados pelo sistema de saúde 20.085 casos no país, enquanto os órgãos de segurança pública registraram 47.646 ocorrências de estupro. Os casos notificados pelo sistema de saúde revelam características particulares em relação ao gênero e a intersecção com idade e raça/cor: em 70% dos casos as vítimas eram menores de 18 anos e em termos absolutos predominam as vítimas pretas e pardas (53,3%). Salienta-se que do total de casos notificados, em 73% dos casos os autores de violência eram pessoas conhecidas e em 15,8% envolveram mais de um (01) agressor.[10]

É importante lembrar que estes registros administrativos (dados da saúde ou da polícia) representam apenas uma pequena parcela do preocupante cenário de violência sexual no Brasil, principalmente porque nem todos os casos são levados à registro.

Na saúde, as mulheres negras também são mais atingidas no que se refere à violência obstétrica. Isso tem raiz no período de escravização e se deve a própria dinâmica do período colonial, visto que para mulheres brancas a maternidade era compulsória e inerente a sua condição feminina, enquanto que para mulheres negras, os papeis sociais eram restritos ao espaço doméstico. Quando gestantes, as mulheres negras continuavam na condição de servis, pois amamentavam os filhos de mulheres brancas, enquanto eram separadas dos seus filhos.[11]

Nesse contexto, a violência obstétrica é aquela vivenciada pela gestante que se defronta com violações diretas e indiretas, como a dificuldade de encontrar um parto mais humanizado, o impedimento da entrada de um acompanhante, a violência física e verbal no parto hospitalar.[12]

Trata-se da desumanização, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda de autonomia e a capacidade de decidir sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres cometido por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnico-administrativos de instituições públicas e privadas, bem como civis.[13]

Ressalta-se que a cada 04 mulheres, 01 sofre algum tipo de violência no parto. [14] Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz, 65,9% das mulheres que sofrem violência obstétrica são negras.[15]

A ONU Brasil, reconhece que as diversas formas de manifestação do racismo fazem com que a discriminação racial seja outro fator estruturante das desigualdades sociais no Brasil, fazendo com que mulheres negras, indígenas e de outros grupos étnico-raciais, ostentem os piores indicadores nas mais diversas áreas da vida econômica e social.[16]

No mesmo sentido, Nadine Gaman, então representante da ONU Mulheres no Brasil elucida:

[...] o racismo intensifica as violências de gênero, o que se manifesta pelos altos números de mulheres negras que são parte das vítimas da violência contra as mulheres. Isso requer ações de prevenção e enfrentamento em que as mulheres negras sejam consideradas pela sua especificidade e representação populacional, o que traz desafios concretos em termos de resposta dos serviços essenciais de atenção e políticas públicas.[17]

Com efeito, para o combate à violência contra as mulheres, é necessária uma complexa rede organizada em eixos (enfrentamento, prevenção, assistência e garantia de direitos) e serviços de responsabilidade federal, estadual e municipal, de caráter especializado e não especializado no atendimento às mulheres, abrangendo órgãos do sistema de justiça e segurança pública, da assistência social e da rede pública de saúde[18], frisando as especificidades apontadas não só pela questão de gênero, como também étnico-racial.

Em síntese, esses 27 anos daquele primeiro 25 de julho simbolizam a resistência de mulheres que estão na base da pirâmide social: as mulheres negras, já que ainda hoje permanecem lutando para conseguir ser reconhecidas como sujeitos de direito em face da constante omissão do estado brasileiro, observada nos números apresentados. Assim, demarcar uma agenda transnacional das nações sulamericanas e caribenhas que tenha intersecção racial e de gênero fortalece a urgência e a relevância do tema cujo objetivo central é a erradicação das violações de direitos humanos.


Notas

[1]  Disponível em: <http://www.mincultura.gov.co/areas/poblaciones/conmemoraciones/Paginas/mujer_afrolatina_afrocaribe%C3%B1a.aspx> Acesso em 22 jul. 2019.

[2] ZAMBRANO, Catalina Gonzalez. Mulheres Negras em Movimento: ativismo transnacional na América Latina (1980-1995). São Paulo: USP, 2017, p.14.

[3] ZAMBRANO, Catalina Gonzalez. Op. Cit., p. 14-15.

[4] Tereza de Benguela, conhecida como rainha e heroína negra, viveu no século XVIII e tornou-se líder do Quilombo do Quariterê, quilombo que resistiu de 1730 ao final do século.

[5] BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12987.htm. Acesso em 22 jul. 2019.

[6] BRASIL. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/565155-FEMINICIDIO-CRESCE-ENTRE-MULHERES-NEGRAS-E-INDIGENAS-E-DIMINUI-ENTRE-BRANCAS,-APONTA-PESQUISADORA.html Acesso em 23 jul. 2019.

[7] Disponível em; <http://www.fundosocialelas.org/falesemmedo/noticia/violencia-domestica-contra-as-mulheres-negras-cresce-no-pais/15913/>. Acesso em 23 jul. 2019.

[8] CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2017. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas/IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública/FBSP, 2017.

[9] CEPAL. Feminicídio ou femicídio. Disponível em:< https://oig.cepal.org/pt/indicadores/feminicidio-ou-femicidio>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[10] CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo S. C.; FERREIRA, Helder. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúdeentre 2011 e 2014. Rev. bras. segur. Pública. São Paulo v. 11, n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017.

[11] LIMA, Kelly Diogo de. Vivências de mulheres negras na assistência ao parto: vulnerabilidades e cuidados. 2018. 109 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Saúde Pública) – Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2018, p. 24.

[12] LIMA, Kelly Diogo de. Op. Cit.

[13] GOES, Emanuelle. Violência obstétrica e o viés racial. Disponível em: https://analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/pensamentos/147153503857b5d7be5878b/.

[14] CEERT. Dia nacional da mulher: a mulher negra é a que mais sofre no Brasil com violência no parto! <https://ceert.org.br/noticias/genero-mulher/24649/dia-nacional-da-mulher-a-mulher-negra-e-a-que-mais-sofre-no-brasil-com-violencia-no-parto>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[15] FIOCRUZ. Trajetórias negras na Fiocruz são temas de evento. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/trajetorias-negras-na-fiocruz-sao-tema-de-evento>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[16] ONU. Direitos Humanos das Mulheres.  Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/08/Position-Paper-Direitos-Humanos-das-Mulheres.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[17] ONU Mulheres. Campanha #uselaranja aborda vulnerabilidade de mulheres negras à violência de gênero.  Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/campanha-uselaranja-aborda-vulnerabilidade-de-mulheres-negras-a-violencia-de-genero/. Acesso em 22 jul. 2019.

[18] ONU. Direitos Humanos das Mulheres. Op. Cit. p. 14.

Sobre a autora
Monique Rodrigues do Prado

Advogada, palestrante e facilitadora no Instituto Gaio. Atuo nas áreas de Direito Médico e Direito de Família. Além disso, componho o corpo jurídico de advogados voluntários da EDUCAFRO. Co-Fundei o Afronta Coletivo, trabalho sociocultural protagonizado por mulheres negras que acredita na disseminação da cultura afrobrasileira. Também, participo do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil.

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