RESUMO: Oriundo de uma decisão da Justiça equatoriana, o processo de Sentença Estrangeira Contestada nº 8.542 (SEC 8.542 / EC) no Superior Tribunal de Justiça trouxe às vistas um caso de peculiaridades nem um pouco escassas. Procedimentos em tribunais estrangeiros - togados e arbitrais - tramitando simultaneamente, declarações acerca de atos de corrupção inclusive por parte de julgadores daquele país, são apenas parte da complexidade do caso. Ainda assim, dentro de seu juízo de delibação, a referida corte brasileira trouxe em seu julgamento inovadores precedentes, incluídos também de ordem pública. Tecendo breves considerações acerca do atual estado da homologação de sentença estrangeira no Brasil, bem como sobre a questão da ordem pública, pelo presente texto buscar-se-á apresentar com profundidade o histórico do caso e como julgou o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir pela não homologação da referida sentença equatoriana.
Palavras-chave: Homologação de Sentença Estrangeira, Juízo de Delibação, Ordem Pública, Caso Chevron, Corrupção, Desistência e Renúncia em Processos de Homologação de Sentença Estrangeira.
SUMÁRIO:1. Introdução. 2. A Homologação de Sentença Estrangeira Hodiernamente no Brasil. 3. A Questão da Ofensa à Ordem Pública. 4. Histórico do Caso Chevron. 5. O Pedido de Homologação no Superior Tribunal de Justiça. 6. Conclusão. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Um dos mais polêmicos - e de mais vultuosos valores - que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já enfrentou, em se tratando de homologação de sentença estrangeira, o “Caso Chevron”, como assim ficou conhecido, bem como o julgamento pela não homologação da decisão estrangeira, certamente configura um inovador precedente, seja no tocante às questões preliminares endereçadas, seja quanto à rejeição por motivo de ordem pública, um tema controverso, mas que, devido às circunstâncias do caso, mostrou-se muito bem aplicável.
Os fortíssimos indícios de corrupção e parcialidade em território equatoriano, inclusive atestados por aqueles envolvidos diretamente no caso, levaram o referido tribunal brasileiro, dentre outras razões e dentro de seu juízo de delibação, a decidir pela não homologação da sentença daquele país.
Ademais, por motivo de um pedido dos requerentes no processo de homologação da sentença estrangeira junto ao STJ, pôde também a corte deliberar - e decidir - sobre a desistência e renúncia em processos de tal natureza.
Sobre esse caso, com foco no que decidido pelo STJ, irá o presente texto se debruçar.
2. A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA HODIERNAMENTE NO BRASIL
Com o advento da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 (EC 45/04), a competência para homologar sentença estrangeira[1] no Brasil foi transferida do Supremo Tribunal Federal (STF) para o Superior Tribunal de Justiça. Assim, em substituição ao Regimento Interno do STF, a Resolução nº 09 do STJ, conjuntamente à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), passou a regulamentar os procedimentos à homologação no país.
Vale dizer que o STJ, quando de um pedido de homologação de sentença estrangeira, se restringirá a realizar uma análise dos requisitos formais da decisão em questão, o que é conhecido como juízo de delibação. O próprio tribunal já se manifestou a esse respeito:
HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA. CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS FORMAIS. JUÍZO DE DELIBAÇÃO. [...] 2. O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos requisitos formais. Questões de mérito não podem ser examinadas pelo STJ em juízo de delibação, pois ultrapassam os limites fixados pelo art. 9º, caput, da Resolução STJ n. 9 de 4/5/2005. [...]. (STJ. SEC 8.847/EX, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2013, DJe 28/11/2013)
Sobre os requisitos formais quando do juízo de delibação, assim dispõe a Resolução nº 09, do STJ:
Art. 5º Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira:
I - haver sido proferida por autoridade competente;
II - terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;
III - ter transitado em julgado; e
IV - estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor oficial ou juramentado no Brasil.[2]
Quanto às possibilidades dentro do exercício da competência para homologar decisões definitivas estrangeiras, nos termos dos parágrafos do art. 4º da referida Resolução STJ nº 09, pode o STJ promover a homologação parcial de sentença estrangeira, admitir tutela de urgência nesses procedimentos, bem como homologar procedimentos não-judiciais que no Brasil tenham natureza de sentença.
Vale notar também que, até 2010, as sentenças estrangeiras declaratórias de estado de pessoa[3], quando emitidas por autoridades estrangeiras, dispensavam homologação. Desde então, a homologação passou a ser exigida.
Por fim, vindo a ocorrer a homologação da sentença estrangeira pelo STJ, a execução da sentença homologada competirá ao juiz federal de primeiro grau.
3. A QUESTÃO DA OFENSA À ORDEM PÚBLICA
Um princípio basilar em se tratando de homologação de sentenças estrangeiras, o respeito à ordem pública é fundamental para se manter um equilíbrio e uma harmonia, em todas as vertentes, quando da apreciação de um pedido de homologação frente à Justiça brasileira.
A referida Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) assim dispõe, em seu artigo 17:
Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.[4]
Ademais, no julgamento da Carta Rogatória de nº 10.415, quando a apreciação de pedidos de homologação de sentença estrangeira ainda era de competência do STF, assim se manifestou o ministro Marco Aurélio, acerca do conceito de ordem pública:
[...] sob o ângulo do direito internacional privado, tem-se como ordem pública a base social, política e jurídica de um Estado, considerada imprescindível à própria sobrevivência. [...]. (STF. CR 10415/EU, Rel. Ministro Presidente MARCO AURÉLIO, julgado em 11/12/2002, DJ 03/02/2003)
Assim sendo, promover a defesa da ordem pública é pensar-se no Estado brasileiro enquanto parte de um ecossistema internacional, em que a cooperação internacional é fundamental para o convívio harmônico dos atores internacionais, sem que isso signifique uma abdicação, de qualquer forma, da soberania brasileira, bem como da sua força para bem prezar por estabilidade, segurança e reciprocidade em termos políticos, econômicos, sociais e, por que não, jurídicos.
4. HISTÓRICO DO CASO CHEVRON
A história começa em 1964, quando a Texaco Petroleum Company (ou, simplesmente, Texaco) dá início à perfuração de centenas de poços de petróleo na região amazônica do Equador, exploração essa que duraria até 1992.
Como consequência de tais atividades, a população local afirma que, no período, cerca de trinta mil moradores locais tiveram sua saúde comprometida, como comprovaria o alto acréscimo na incidência de casos de câncer em geral, leucemia, abortos, anomalias congênitas e doenças crônicas. No ano seguinte ao encerramento das atividades da Texaco, em 1993, um grupo denominado Unión de Afectados por Texaco (ou, na sigla, UDAPT) ajuíza uma ação na Justiça contra a companhia, em Nova Iorque.
Em sede de contestação, a empresa estadunidense argumenta que o caso deveria ser julgado no Equador, já que foi no país andino que ocorreu o dano ambiental. Em 2002, a Corte de Apelação nova-iorquina acata os argumentos da Chevron[5] e remete o feito ao país latino-americano, dando continuidade à disputa.
Vale destacar que o ingresso da, à época, Texaco na Amazônia equatoriana foi motivado e se deu no âmbito do Tratado Bilateral de Investimentos (TBI), firmado entre os Estados Unidos da América e a República do Equador. Ainda no âmbito do referido tratado, acordou-se, nos anos de 1995 e de 1998, quanto aos termos segundo os quais se faria a despoluição da área. Mas, segundo a Chevron, o Estado equatoriano não havia cumprido com sua parte, dado o fato de que, quando do período de exploração da região, era sócio da Texaco em cinquenta por cento, e que, portanto, deveria nessa proporção arcar com a despoluição da área. Diante da inércia do governo equatoriano, em 2009, a Chevron abre um procedimento arbitral contra a República do Equador na Corte Permanente de Arbitragem (CPA), em Haia, nos Países Baixos.
Enquanto isso, em 2011, um tribunal de Lago Agrio, no Equador, condena a Chevron a indenizar 46 pleiteantes em aproximadamente US$ 18,2 bilhões por danos ambientais. Relutante, a Chevron ingressa na Justiça estadunidense, embasando-se na lei federal RICO[6], de combate a organizações criminosas, asseverando que a decisão do tribunal equatoriano teria sido produto de suborno e de fraude por parte de advogados, ativistas, peritos, técnicos e consultores de forma a extorquir uma grande quantia da empresa.
Nesse mesmo ano de 2011, a CPA ordena que o Equador tome todas as medidas ao seu alcance para suspender ou mandar suspender a execução ou o trânsito em julgado, no território equatoriano e fora dele, de quaisquer sentenças contrárias [à Chevron] no âmbito do caso de Lago Agrio[7] até a conclusão do procedimento arbitral sob seu escopo. Em resposta, os equatorianos protocolam, em maio de 2012, um pedido de homologação de sentença estrangeira no Canadá e, no mês seguinte, outro no Brasil (STJ, SEC 8.542 / EC)[8], com o intento de promover a execução dos valores da condenação do tribunal de Lago Agrio, ainda que a decisão objeto dos pedidos de homologação houvesse tão-somente sido apreciada em primeira instância.
Numa grande reviravolta, reforçando o argumento da Chevron de que teria havido falsificação de provas comprovantes da contaminação dos solos e águas, bem como que os defensores dos indígenas e colonos teriam subornado para que vistorias fossem canceladas e relatórios de inspeção forjados, em fevereiro de 2013, o juiz equatoriano Alberto Guerra Bastidas apresenta uma declaração juramentada ante um tribunal federal de Nova Iorque, confessando ter recebido milhares de dólares para redigir as decisões do caso (no Equador, naturalmente), assinadas por seu colega, o juiz Nicolás Zambrano, a mando dos advogados dos demandantes. De acordo com a declaração do juiz Bastidas, a decisão que condenou a Chevron era fraudulenta, e o juiz Zambrano teria recebido US$ 500 mil para condenar a empresa norte-americana. Em resposta, o mencionado juiz Nicolás Zambrano, que foi quem condenou a Chevron em cerca de US$ 18,2 bilhões por danos ambientais no Equador, negou que teria sido subornado pelos demandantes para sentenciar contra a petroleira. Disse que de fato recebera uma oferta de suborno, mas por parte da Chevron.[9]
Ademais, a Stratus Consulting Inc., empresa de consultoria ambiental contratada pelos demandantes no processo no Equador, declara que o diagnóstico por ela feito dos impactos causados pela petroleira na Amazônia andina foi diretamente influenciado pelos advogados da parte equatoriana, liderados por Steven Donziger. Dois membros da Stratus[10] chegam ainda a afirmar que, segundo instruções de Donziger, a consultoria conduzira os trabalhos de avaliação de danos ambientais usando unicamente dados e informações fornecidas pelos defensores dos demandantes, e que não tinha sido autorizada a coletar dados adicionais tidos como importantes. Além disso, que os relatórios elaborados pelo engenheiro perito Richard Stalin Cabrera Vega, que apontaram os prejuízos ao meio ambiente amazônico, teriam se baseado em suposições de Donziger e dos demais representantes da parte equatoriana. Assim, oficialmente, a Stratus rejeita os relatórios Cabrera Report[11] e Cabrera Response, negando-lhes veracidade e precisão.
A Chevron, por sua vez, alega que as conclusões do perito teriam sido predeterminadas e compradas pelos advogados da parte autora, com a existência inclusive de uma conta bancária “secreta” para transferir no mínimo US$ 100 mil em propinas ao referido perito. Tais pagamentos se somariam aos US$ 263 mil que os demandantes admitiram ter pago a Cabrera pelo trabalho que supostamente deveria realizar para o tribunal de Lago Agrio de forma imparcial; aduzira, ainda, a Chevron, que os procuradores dos demandantes teriam recorrido secretamente à consultoria previamente mencionada, a Stratus, para que esta forjasse laudo de impacto ambiental independente daquele do perito, e contestasse o trabalho e as conclusões deste, postulando a majoração da indenização e reavaliando o valor da indenização compensatória de aproximadamente US$ 16 bilhões para mais de US$ 27 bilhões.
Ainda em 2013, mais precisamente em 17 de setembro de 2013, o procedimento em sede de arbitragem[12] é sentenciado parcialmente pela CPA, no sentido de que a Chevron e a TexPet (ou Texaco) não seriam responsáveis[13] por demandas ambientais coletivas ou de interesse público no Equador. De acordo com a Corte, os acordos firmados entre o governo equatoriano e a Texaco, em 1995 e em 1998, eximiram de tais responsabilidades. Isso pois, na visão da Corte, o Equador transacionou e liberou de todas as ações ambientais coletivas ou de interesse público, incluindo as ações coletivas de terceiros, tornando a parte norte-americana parte exonerada na ação, podendo simplesmente fazer valer seus direitos contratualmente garantidos.
Inconformada com a decisão arbitral, a parte equatoriana recorre ao Judiciário holandês pedindo o afastamento da sentença parcial supracitada, alegando que não teria havido compromisso arbitral válido, que o dispositivo da decisão feriria a ordem pública e que os árbitros não teriam cumprido com seus mandatos; em suma, que a corte arbitral não possuiria jurisdição frente aos acordos de 1995 e de 1998. Em 20 de janeiro de 2016, a Corte Distrital de Haia[14] profere julgamento, rejeitando todos os argumentos da República do Equador e condenando-a em custas processuais. Até dezembro de 2017, a situação manteve-se inalterada, inclusive quanto a um posicionamento definitivo por parte da CPA[15].