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SEXISMO NAS LEIS PENAIS (PARTE IV)

Agenda 06/08/2019 às 09:56

O trabalho analisa o sexismo, que é a discriminação fundamentada no sexo, presente na legislação penal brasileira

PARTE IV

 

4.1 Habeas corpus coletivo n. 143.641

Tudo começou com a Lei n. 13.257/2016, o denominado Estatuto da Primeira Infância. Essa lei dispôs sobre políticas públicas para a primeira infância, identificada com os iniciais 6 (seis) anos de vida da criança, além de promover alterações em diversas leis.

Uma das leis alteradas pelo Estatuto da Primeira Infância foi o Código de Processo Penal. Seu art. 318, que trata das hipóteses de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, foi modificado para incluir: a mulher gestante (inciso IV); mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos (inciso V); o homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos (VI).

Até esse momento a legislação parecia ter um mínimo de preocupação em proteger efetivamente as crianças e em não excluir os pais que cuidam de seus filhos. Se o objetivo da lei é proporcionar maneiras de garantir a convivência dos presos com seus filhos menores de 12 anos, é evidente que tanto pais como mães teriam direito à substituição da prisão preventiva por domiciliar.

Acontece que isso foi considerado insuficiente. Alegando que as alterações realizadas pela lei n. 13.257/2016 não eram o bastante, e que muitas mulheres grávidas e mães não estavam recebendo o benefício da prisão domiciliar, em razão da gravidade dos delitos que praticaram (geralmente tráfico de drogas), várias instituições, dentre as quais o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, as Defensorias Públicas da União, diversas Defensorias Públicas estaduais (que ingressaram na ação como amicus curiae), impetraram um Habeas Corpus coletivo perante o Supremo Tribunal Federal para revogar a prisão preventiva decretada contra todas as gestantes puérperas e mães de crianças, ou substituí-la por prisão domiciliar.

Após a instrução do feito e manifestação de diversas entidades como amicus curiae, o Habeas Corpus coletivo n. 143.641 foi concedido. O Ministro Ricardo Lewandowski deferiu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, sem prejuízo da aplicação concomitante de medidas alternativas à prisão, de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, citadas no processo em relação apresentada pelo Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN e outras autoridades estaduais, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício.

O HC foi estendido, de ofício, a todas as demais as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, que não estavam relacionadas na ação.

Nesse HC coletivo nenhuma palavra foi dita a respeito dos pais que possuem filhos menores de 12 anos. Nenhum questionamento foi apresentado sobre se eles estão recebendo ou não o benefício de substituição da prisão preventiva em domiciliar. Embora a lei n.13.257/2016 tenha exigido, expressamente, que o homem só tem direito à conversão caso seja o único responsável pelos cuidados do filho, exigência que não foi feita em relação à mulher, simplesmente nada foi dito quanto a isso.

Verifica-se que o objetivo do HC coletivo não foi permitir que as crianças convivam e sejam cuidadas por qualquer dos pais, mas sim que as crianças convivam e sejam cuidadas pelas suas mães. Os pais podem continuar presos. Se houvesse alguma preocupação com estes, teria havido algum pedido também em seu benefício, ou concessão de ofício da ordem pelo Ministro Relator.

No que tange às gestantes, evidentemente, não há o que questionar, pois homens não engravidam. É elogiável toda a preocupação demonstrada no HC coletivo a respeito das condições das mulheres gestantes que estão presas em penitenciárias via de regra sem estrutura. De fato, o melhor é que a presa gestante faça o pré-natal e tenha o seu filho fora da prisão, em sua residência.

Contudo, todas as alegações referentes às mães de pessoas com até 12 anos poderiam ser estendidas aos pais. Os presídios masculinos são os mais superlotados. São os que se encontram em piores condições de higiene e estrutura. Neles ocorrem com frequência motins, rebeliões com mortes e todo tipo de violência. Essa situação foi, todavia, completamente ignorada pelos impetrantes e pelo STF ao conceder o HC coletivo.

A decisão tomada no HC coletivo deixou bem claro que o direito da mãe com filho até 12 anos não está condicionado a nenhum requisito a não ser ao fato de ser mãe. Sua declaração verbal, inclusive, presume-se verdadeira até prova em contrário, como consta no trecho abaixo:

 

Para apurar a situação de guardiã dos seus filhos da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à palavra da mãe, podendo o juiz, na dúvida, requisitar a elaboração de laudo social, devendo, no entanto, cumprir desde logo a presente determinação. Caso se constate a suspensão ou destituição do poder familiar por outros motivos que não a prisão, a presente ordem não se aplicará.1

 

Uma mulher presa que seja mãe com filho até 12 anos de idade só não terá direito à substituição da prisão preventiva em domiciliar se estiver suspensa ou destituída do poder familiar. Mas toda mãe, a princípio, tem a guarda de seus filhos, em conjunto com o pai, mesmo que, em casos específicos, não cuide realmente de seus filhos, deixando essa tarefa a terceiros. A mulher não precisa ser a única responsável pelo filho.

Assim, basta que a mulher presa declare que possui um filho menor de 12 anos para que tenha direito à substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, a menos que o crime do qual é acusada tenha sido praticado mediante violência ou grave ameaça, ou contra o próprio filho.

Ao homem preso que seja pai de uma criança com até 12 anos, contudo, não basta sua palavra. É preciso ficar demonstrado, através de prova idônea, nos termos do parágrafo único do art. 318 do CPP, que ele é o único responsável pelos cuidados da criança2.

 

4.2 Prisão domiciliar para mães

 

Na onda da decisão tomada no Habeas Corpus coletivo n. 143.641, o legislador resolveu deixar mais claro o direito das mães à substituição da prisão preventiva por domiciliar.

Por meio da Lei n. 13.769/2018 (Lei das Mães Livres), foi incluído o art. 318-A, no Código de Processo Penal. Segundo esse artigo, a prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa, ou contra seu filho ou dependente3. O uso da conjunção “ou” deixa bem claro, na esteira do decidido no HC coletivo n. 143.461, que não é necessário que a mulher presa seja a única responsável pelos cuidados do filho, bastando que seja a mãe da criança e não esteja suspensa ou destituída do poder familiar.

Senão vejamos. O Código de Processo Penal trata da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar em dois artigos. O primeiro é o art. 318 do CPP, que diz que o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for “V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos” ou “VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos”4. De acordo com o art. 318, basta que a mulher tenha um filho de até 12 anos. Já o homem precisa ser o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos.

A fim de deixar bem claro o tratamento diferenciado, o art. 318-A do CPP determina a substituição (“será substituída”) da prisão preventiva imposta à mulher mãe ou responsável por criança que não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa e contra o próprio filho. O uso da partícula “ou” em vez de “e” deixa claro que os requisitos não são cumulativos, mas alternativos. Basta ser mãe de uma criança para ter direito à substituição da preventiva por prisão domiciliar. Um homem, por sua vez, só terá direito à substituição se for o único responsável pelos cuidados do seu filho de até 12 (doze) anos. Além disso, nesse caso, o juiz exigirá prova idônea da satisfação desse requisito.

Além disso, a Lei das Mães Livres passou a exigir prazo menor para a progressão de regime de cumprimento de pena para mulheres que tenham filhos. Enquanto o pai de um filho menor de 12 anos tem que cumprir 1/6 da pena para obter progressão de regime prisional, uma mãe na mesma situação só precisa cumprir 1/8 da pena5.

Os argumentos geralmente usados para não conceder esses benefícios aos pais podem ser assim resumidos: 1) uma suposta maior dedicação das mulheres em relação ao cuidado com os filhos; 2) a presumida indiferença da maioria dos pais com sua prole; 3) o prejuízo à segurança e à ordem pública caso sejam libertados todos os pais que tenham filhos menores; 4) o clamor público contra a libertação de homens criminosos pelo simples fato de serem pais.

Esses argumentos, porém, não convencem.

Primeiro, conceder prisão domiciliar a alguém pelo simples fato de ter um filho menor de 12 anos por si só é discutível. Quando um crime ocorre, é preciso saber se estão presentes os requisitos para decretar a prisão preventiva do suspeito. Uma vez existentes estes requisitos, a prisão precisa ser decretada, para preservar a ordem pública, garantir a aplicação da lei penal, ou por conveniência da instrução criminal. Poderá o magistrado aplicar medidas alternativas à prisão preventiva, quando esta não for necessária, mas antes de fazer isso precisa avaliar circunstâncias concretas e aspectos subjetivos individuais. Tal não se compatibiliza com o critério objetivo de “ter filho menor de 12 anos”.

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A lei n. 13.769/2018, ao seguir a decisão do STF e determinar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar de toda mãe com alguma criança, repetiu o mesmo equívoco. Essa liberdade automática, condicionada apenas a que o crime não tenha sido cometido mediante violência ou grave ameaça ou contra o próprio filho, permite que autoras de delitos graves, como o tráfico de drogas e a corrupção passiva, livrem-se da cadeia.

Pode-se alegar que a facilitação da liberdade das mães não teve a intenção de privilegiar o gênero feminino, mas sim zelar pelo bem das crianças, motivo pelo qual não existiria discriminação em relação aos homens, ou se existe, encontra-se justificada pela preocupação do legislador com o desenvolvimento das crianças.

Contudo, se o objetivo da lei fosse cuidar das crianças cujos genitores estão presos, de modo que aquelas não fiquem desamparadas, a liberação só deveria ocorrer mediante prova de que não há outro familiar que possa ser encarregado de tomar conta do(s) filho(s) menor(es) de 12 anos. Mas essa exigência não foi imposta por lei à mulher, nem na redação dada ao art. 318, V, do Código de Processo Penal pela Lei n. 13.257/2017, nem pelo art. 318-A, incluído no CPP pela Lei n. 13.769/2018.

Se a medida realmente visasse somente o cuidado das crianças, só faria sentido concedê-la com exclusividade às mulheres que tenham filhos de até 2 (dois) anos de idade, pois o bebê precisa ser amamentado pela mãe, sendo o leite materno o alimento preferencial. Após completar 2 anos, contudo, a amamentação pode cessar. Uma mãe com um filho de 4 (quatro) anos geralmente não amamenta mais. Na ausência da mãe o pai poderá cuidar do filho ou da filha, alimentando e prestando todos os cuidados necessários. Assim, se algum benefício exclusivo às mulheres devesse existir seria para mães com filhos de 2 ou 3 anos de idade, sendo desnecessário para mães com filhos de 4 anos e completamente descabido para uma mãe com um filho de 10 anos. Somente se o pai estiver ausente ou impedido de cuidar do filho, e não houver outro parente que possa fazê-lo, seria justificável a prisão domiciliar.

Alguém pode dizer que na prática as coisas não acontecem assim. Homens geralmente são irresponsáveis e maus cuidadores. Se a criança for deixada unicamente aos cuidados do pai, este não cuidará dela corretamente.

Esse pensamento não passa de puro preconceito e reflete total ignorância em relação ao gênero masculino. Se existem pais irresponsáveis que não cuidam de seus filhos, isso não quer dizer que todos sejam assim. Aspectos negativos não podem ser presumidos para se negar um direito a alguém. Da mesma forma que existem pais irresponsáveis, existem mães irresponsáveis, mas a lei não negou o benefício a todas as mães. Há mães negligentes que deixam seus filhos aos cuidados de babás ou empregadas, ficando as crianças mais apegadas a estas do que àquelas.6

O fato de ser pai ou mãe de uma criança deve ser levado em consideração tanto para homens como para mulheres que venham a ser presas, bem como na avaliação da necessidade de decretar a prisão preventiva ou substituí-la por medida alternativa. Não se deve ignorar a contribuição dos homens para o bem de seus filhos.

Em suma, se um pai e uma mãe forem presos juntos e tiverem um filho de 6 (seis) meses, a prisão domiciliar deve ser concedida preferencialmente à mãe, pois a criança precisa ser amamentada. Mas, se a criança tiver 7 (sete) anos, não faz sentido dar preferência a qualquer dos pais, devendo ambos permanecerem presos, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou serem ambos soltos, se não faltarem aqueles requisitos. Ficando ambos presos, o filho pode ficar aos cuidados de outros parentes. Se alguma preferência há de ser dada às mães, deve ser para aquelas com filhos de tenra idade, não para mães de pré-adolescentes.

O legislador pode ter acreditado que estender tal medida aos homens com filhos acarretaria uma verdadeira derrama de presos na sociedade. Acontece que não sabe exatamente quantos presos no Brasil têm filhos. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, em Junho de 2016, a informação sobre a quantidade de filhos das pessoas privadas de liberdade no Brasil estava disponível para apenas 9% da população prisional (ou 63.971 pessoas). Diante da baixa representatividade da amostra coletada, não foi possível extrair conclusões para a totalidade da população prisional no Brasil7.

Todavia, em agosto de 2018, 56,66% dos presos informaram seu estado civil ao CNJ, como consta no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões 2.0 do CNJ. Desses, 19,46% declararam ser casados ou viver em união estável. Do total de presos casados e conviventes, se supormos que 60% tenham filhos, e que metade desses sejam menores de 12 anos, chegaríamos a percentual aproximado de 6% da população carcerária, o que corresponde (sem rigor matemático ou estatístico) a mais ou menos 36.000 presos. Se todos esses presos masculinos recebessem os mesmos benefícios legais concedidos às mulheres (o que é bem improvável), a derrama não seria tão grande em comparação com a população brasileira. É bom lembrar que o Brasil tem uma população atual de mais de 200.000.000 (duzentos milhões de habitantes).

Porém, o correto é não facilitar a soltura de nenhum preso pelo simples fato de ter um filho menor de 12 anos. É necessário não existir outro parente disponível para cuidar da criança. Esse raciocínio vale para todos os pais e para todas as mães. Tratá-los de modo diferenciado não passa de discriminação.

 

4.3 Políticas contra o encarceramento

 

A quantidade de presidiários do gênero masculino é absurdamente desproporcional em relação ao do gênero feminino. Segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Presos, um cadastro de pessoas em regime de prisão judicialmente decretada, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2018 o Brasil possuía 602.217 (seiscentos e duas mil e dezessete) pessoas privadas de liberdade, dos quais 95% (572.764), eram homens e apenas 5% (29.453), mulheres8.

Essa é a taxa de encarceramento masculina a nível mundial, conforme Benatar: “Embora cerca de metade da população humana seja do sexo masculino, mais de 90% dos presos e uma proporção ainda maior dos que são executados são homens”9. Essa enorme desproporção entre o número de presos masculinos e femininos constitui sério indícios de discriminação no sistema prisional: “o fato de que as mulheres são a minoria dos encarcerados e executados deve igualmente ser visto como evidência de discriminação contra os homens”10.

Além das mulheres serem presas em número incrivelmente menor que os homens, elas também passam menos tempo na prisão. Estudos já constataram que as chances de uma mulher ficar presa antes do julgamento de um delito são bem menores que as de um homem:

 

De fato, a chance de detenção pré-processual foi de cerca de 37% menor para mulheres do que para réus do sexo masculino. Após uma análise mais aprofundada, verificou-se que as mulheres eram favorecidas em todas as fases da decisão sobre a libertação antes do julgamento. Elas eram menos propensas a receber detenção preventiva, menos propensas a ter condições financeiras impostas à sua libertação, tinham menores quantias de fiança impostas quando as condições financeiras eram colocadas e eram menos propensas a serem mantidas sob fiança. Outros estudos também descobriram que as mulheres são tratadas com mais brandura nas decisões de liberação pré-processual11.

 

Apesar disso, o Estado brasileiro não tomou nenhuma providência especial para diminuir o número de homens presos, apesar de adotar diversas medidas para facilitar a libertação de mulheres detidas provisoriamente e condenadas, como a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mães que tenham filhos menores (mesmo que não sejam as únicas responsáveis por seu cuidado), indulto do Dia das Mães e condições mais benéficas para receber progressão de pena.

Talvez o Estado brasileiro não se importe com a situação dos homens presos porque somente eles seriam os prejudicados. Mas não são apenas elas que sofrem as consequências do encarceramento.

Aqueles casados ou em união estável têm esposas, companheiras e filhos diretamente atingidos. Além da ausência do esposo, do companheiro e do pai, a família perde a parcela da contribuição financeira dada pelo homem para as despesas domésticas.

Já os solteiros possuem pais e mães que padecem com a prisão dos filhos, e podem ser prejudicados com a falta da assistência financeira que aqueles proporcionavam.

Se as medidas adotadas para reduzir a população carcerária feminina também fossem tomadas em relação à masculina, muitas famílias poderiam se recompor, filhos reencontrar seus pais e mães.

A discriminação contra homens pelo sistema penal acontece em todos os lugares. Exemplo disso foi uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, que considerou válida uma lei russa que prevê prisão perpétua apenas para homens. O Plenário da Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que não é discriminatório reservar a prisão perpétua apenas para eles. Os juízes validaram a legislação russa que prevê que homens, com idade entre 18 e 65 anos, podem ser condenados a passar a vida inteira atrás das grades. Menores de idade, idosos e mulheres ficam livres da punição vitalícia, não importa o crime que cometam12.

Essa decisão é absurda e prova como a discriminação contra homens tem o beneplácito dos tribunais nos países desenvolvidos. O princípio de que a pena deve ser aplicada considerando o crime praticado e a sua gravidade é mandado às favas, permitindo que a pena seja atribuída de acordo com o sexo do autor (direito penal do autor).

Há ainda o argumento de que a prisão das mulheres deve ser evitada para protegê-las dos abusos ocorridos nas cadeias. Ocorre que existem penitenciárias exclusivas para mulheres, nas quais trabalham em sua maioria agentes penitenciários do sexo feminino, o que logicamente diminui bastante a prática de abusos. Nos presídios masculinos são praticadas todos os tipos de sevícias e violência sexual contra homens, mas os tribunais têm dificuldade em reconhecer, como observou Benatar:

 

as mulheres presas são protegidas até mesmo de observações incidentais e breves por parte de guardas masculinos enquanto estão nuas, enquanto os tribunais recusaram-se a proteger os presos do sexo masculino de serem submetidos a revistas regulares nus e em cavidades corporais por guardas femininas13.

 

No Brasil é muito difícil que uma presa mulher seja submetida a revista pessoal íntima por um homem, pois em penitenciárias femininas só se permite o trabalho de agentes do sexo feminino, salvo pessoal técnico especializado14.

A expectativa de vida dos homens, como regra, no mundo inteiro é menor que a das mulheres. A discriminação que os homens sofrem por parte do Estado e da sociedade certamente contribui para isso, como notou Benatar: “a menor expectativa de vida dos homens é, em parte, consequência do tratamento discriminatório”15, pois, “se as mulheres não fossem favorecidas de alguma forma, então os diferenciais de expectativa de vida poderiam ser menores do que são atualmente”16.

Ora, se os homens vivem menos, conceder benefícios durante a execução penal somente às mulheres, para que saiam mais cedo da prisão, é uma grande injustiça, pois elas vivem mais e terão mais anos de vida para aproveitar que os homens.

 

4.4 Estímulo à criminalidade feminina

 

A previsão de benefícios legais somente para mulheres, de modo a permitir que estas cumpram condenações em menor tempo que os homens, teria que ter alguma justificativa, como uma grande população carcerária feminina.

Mas essa situação não existe no Brasil. Aqui, 95% dos presos são homens. Os presídios masculinos estão superlotados e encontram-se em péssimas condições higiene e funcionamento. Embora os presídios femininos padeçam de vários problemas, geralmente são melhor estruturados, até porque, sendo menores, fica mais fácil organizá-los.

Visitei durante quatro anos, na qualidade de conselheiro penitenciário, diversos presídios masculinos e femininos. Sou testemunha de que as penitenciárias femininas, embora deixem muito a desejar, não se encontram na mesma situação degradante da maioria dos presídios masculinos.

Ora, se 95% dos indivíduos que cumprem pena no Brasil são homens, se a situação dos presídios masculinos é pior que a dos femininos, não há motivo para evitar o encarceramento de mulheres e abrandar os requisitos para saírem da prisão. Por uma questão de lógica, se alguma medida tivesse que ser adotada para evitar o encarceramento, teria que ser em benefício dos homens.

Alguém pode alegar que os homens não devem ser beneficiados porque, se não receberem uma punição adequada e forem soltos em pouco tempo, praticarão mais crimes. Excluir os homens seria uma forma de evitar impunidade e prevenir delitos.

Mas, e quanto às mulheres que praticam crimes graves, como o tráfico de drogas? Não caracteriza impunidade evitar que sejam presas? Ser mais leniente com as mulheres não seria um estímulo para que mais mulheres cometam delitos? A impunidade não poderá aumentar a criminalidade feminina?

Há um movimento para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, sob o argumento de que muitos menores de 18 anos cometem grives graves (como homicídios e roubos) e não recebem a punição adequada. Estão sujeitos só às medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, onde a penalidade mais severa é uma internação por no máximo 3 anos17.

Igual preocupação se aplica à criminalidade feminina. Se mulheres cometem crimes e não são adequadamente punidas, a tendência é que reincidam na sua prática. Ademais, podem ser utilizadas como executoras de diversos delitos, por membros de organizações criminosas, na confiança de que ficarão impunes, como acontece com os menores.

Assim, a facilitação legal da liberdade das mulheres, para que sejam colocadas em liberdade mais rapidamente que os homens, pode ter como efeito colateral o aumento da criminalidade feminina.

 

4.5 Abate de cangurus na Austrália

 

Desde 2013 existe na Austrália uma lei que permite o abate de cangurus.

Sob a justificativa de que a população de cangurus no país cresceu vertiginosamente e agora traz prejuízos à existência humana, provocando acidentes e competindo por alimento com o gado, a Austrália decidiu autorizar a caça de cangurus adultos. Contudo, só podem ser mortos os cangurus do sexo masculino. A lei proíbe o abate de filhotes e cangurus fêmeas.

A justificativa para isso é que quando as fêmeas morrem, os filhotes ficam órfãos. Quer dizer, o tratamento discriminatório estaria baseado na preocupação com o bem dos filhotes.

Não dá para deixar de perceber uma certa semelhança entre a lei australiana, que autoriza o abate só de cangurus machos, e a legislação penal brasileira que dá uma proteção especial às mulheres.

O leitmotiv dessas leis é o mesmo: a prole, os filhos, não devem ser prejudicados. Quando um dos pais precisa “desaparecer”, as fêmeas são preservadas, para que cuidem da sua prole. Os machos, porém, vez que não têm a função de cuidar dos filhotes, podem ser abatidos ou presos livremente.

A lógica que permeia a existência dessas leis é a de que homens, machos, podem ser descartados porque não cumprem uma determinada função social, no caso, criar os filhos. Fêmeas precisam ser poupadas, ou permanecer livres, porque tomam conta dos filhos. Estes precisam crescer para formar a sociedade dos cangurus ou a sociedade humana.

Mas, analisando com calma, percebe-se que cangurus-fêmeas e as mulheres recebem uma especial proteção da lei, independentemente do cumprimento efetivo da referida uma função social.

As fêmeas não precisam comprovar que realmente cuidam de crianças. Presume-se que cuidam, mas isso nem sempre ocorre. Por outro lado, um homem que cumpra essa função social, que cuida dos filhos menores, precisa provar.

O tratamento benéfico é concedido às fêmeas com base numa presunção que não precisa ser comprovada. Uma mulher terá direito a ele mesmo que deixe toda a tarefa de cuidado e educação com terceiros, como babás, empregadas, parentes e escola.

Na Austrália, a vida do canguru macho adulto não tem valor, não é preservada, só a do filhote macho. Mas a vida do filhote macho vale menos que a vida do filhote fêmea. O macho terá um tempo de vida menor que a fêmea, pois será abatido tão logo chegue à vida adulta. As fêmeas crescerão e morrerão de velhice.

A vida do macho e da fêmea não têm o mesmo valor. Homens e cangurus não são merecedores de cuidado. Eles não possuem a mesma dignidade de filhotes e fêmeas.

Na Austrália não houve qualquer preocupação em tentar livrar os cangurus machos do abate. Por outro lado, há um impedimento total do abate de fêmeas, mesmo quando não têm prole. Os filhotes de cangurus permanecem com a mãe, dentro de sua bolsa, até os 7 meses de idade. Com 1 ano de idade tornam-se completamente independentes. Fêmeas com filhotes de mais de 1 ano poderiam ser abatidas sem prejuízo à vida dos filhotes.

Na sociedade brasileira, a liberdade do homem é menos importante que a liberdade da mulher. Cumprir uma função social é de fato o critério aplicado pela lei para preservar a vida dos cangurus fêmeas e a liberdade das mulheres com filhos menores?

Na verdade, não, pois fêmeas e crianças recebem benefícios mesmo quando não cumprem função social alguma. Trata-se de um tratamento discriminatório unicamente em razão do sexo.

Esse é um critério legítimo? O desempenho de uma função social não é um critério legítimo pois coisifica o ser humano, trata-o como um animal que, quando causa algum prejuízo, pode ser eliminado.

Já as mulheres e crianças recebem uma proteção legal independentemente de desempenharem um bonito papel. Mesmo quando praticam crimes, recebem amparo legal, pelo simples fato de serem mulheres ou crianças. A sua dignidade reside unicamente nisso.

Embora cangurus machos e fêmeas, adultos e filhotes, provoquem acidentes, comam o pasto do gado, etc, apenas os cangurus machos são “punidos”, eliminados, enquanto as fêmeas e os filhotes são poupados, ainda que causem os mesmos problemas.

A dignidade humana deveria valer para qualquer ser humano, pelo simples fato de existir, independentemente de outra condição. Ao impor condições, tarefas, para que a dignidade de alguém seja reconhecida, a lei cria diferenças e preferências entre seres humanos, por motivo de idade, sexo, cor, estado civil. Declara que existem pessoas mais dignas que outras, seres inferiores e superiores, uns mais dignos de proteção que outros.

Fazer isso com animais já é algo moralmente questionável. Agora, fazer isso com seres humanos é algo que não deveria ser admitido de maneira alguma, pois não deveriam existir homens melhores que outros perante a lei.

O macho não cumpre uma função social? O canguru macho serve para procriar e depois fornecer carne e pele à sociedade humana. A eliminação dos machos, contudo, prejudicará toda a sociedade dos cangurus, pois a falta de machos diminuirá a quantidade de indivíduos da espécie. A longo prazo, pode significar o fim da própria espécie.

Na sociedade humana, o homem sempre cumpre uma função social, ainda quando não cuida dos filhos. Trabalha para a manutenção da família, fornece soldados ao Estado para manter seus exércitos, exerce as profissões mais arriscadas, mal remuneradas e perigosas. Enfim, ele se sacrifica dia a dia. Mas, quando deixa de ser útil, ou se torna perigoso, é trancafiado, sem pena ou dó. Ele é eliminado socialmente através da prisão.

1STF. HC coletivo n. 143.641-SP. Segunda Turma. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em 20/02/2018. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em 29/06/2019.

2 Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:

(...)

V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo.

3 Art. 318-A.  A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.

 

4 Código de Processo Penal:

Art. 318.  Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV – gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo.

5 Lei de Execução Penal:

Art. 112.(...)

 

§ 3º No caso de mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são, cumulativamente: I - não ter cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II - não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente; III - ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior; IV - ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; V - não ter integrado organização criminosa.

6 Existem diversos casos de mães que abandonam seus filhos. Geralmente estes vão para orfanatos para serem adotados. Para ilustrar isso, o filme Três solteirões e um bebê (Three men and one baby, 1987) conta a história de 3 homens solteiros que encontram um recém-nascido abandonado na porta do apartamento onde moram. Com muita dificuldade eles conseguem cuidar do bebê. Anos depois, a mãe biológica da criança aparece, consegue obter a judicialmente a guarda, mas, diante do comportamento arisco do bebê com ela, acaba desistindo e devolve-a aos três amigos.

7 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias-2016. Disponível em:<http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em 23/05/2019.

8Banco Nacional de Monitoramento de Presos do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/09/abc7c9d895ba4e6cd3e0518e6f840164.pdf>. Acesso 16.05.2019.

9“Although about half the human population is male, over 90% of those imprisioned and an even higher proportion of those executed are male.” (BENATAR, David. The second sexism: discrimination against men and boys. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2012, p. 155)

10“the fact that women are the minority of those incarcerated and executed should similarly be seen as evidence of discrimination against males.” (Idem, p. 252)

11“Indeed, the chance of pre-trial detention was found to be about 37% less for female than for male defendants. Upon further analysis, it was found that females were advantaged at every stage of decision about pre-trial release. They were less likely to receive preventive detention, less likely to have financial conditions placed on their release, had smaller bail amounts imposed when financial conditions were placed and were less likely to be held on bail. Other studies have also found that females are treated more leniently in pre-trial release decisions.” (Idem, p. 156).

12 Corte europeia de direitos humanos valida prisão perpétua apenas para homens. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-jan-25/corte-europeia-valida-prisao-perpetua-apenas-homens.>. Acesso em: 23/01/2019

13“female inmates are protected from even incidental and brief observation by male guards while they are naked, while the courts refused to protect male inmates from being subjetcted to regular strip and body cavity searches by female guards”. (Idem, p. 146)

14 Lei de Execução Penal:

“Art. 77. A escolha do pessoal administrativo, especializado, de instrução técnica e de vigilância atenderá a vocação, preparação profissional e antecedentes pessoais do candidato.

 

§ 2º No estabelecimento para mulheres somente se permitirá o trabalho de pessoal do sexo feminino, salvo quando se tratar de pessoal técnico especializado.

(...)

 

Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva.

§ 2o  Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.

§ 3o  Os estabelecimentos de que trata o § 2o deste artigo deverão possuir, exclusivamente, agentes do sexo feminino na segurança de suas dependências internas.”

15“males'shorter life span is partly the consequence of discriminatory treatment.” (Idem, p. 152).

16“if women were not favored in some ways then the life-expectancy differentials might be smaller than they currently are.” (Idem, p. 153).

17 Lei n. 8.069/90:

Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

(…) § 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.

Sobre o autor
Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

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