O princípio do acesso à justiça, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, preceitua que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Tal diretriz enraizou no ordenamento jurídico o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, princípio do direito de ação e o direito de petição.
Enalteceu, todavia, equivocadamente, uma cultura de judicialização (ajuizamento de ações judiciais) como se a decisão judicial fosse a única forma, a principal ou a mais correta de solucionar litígios.
O resultado foi o crescente número de aforamento de processos judiciais e a completa ausência de planejamento e estrutura para suportar a demanda. Desse modo, a solução mais imediata e lógica, por muitos anos, foi a contratação de pessoal (funcionários públicos efetivos e comissionados) e magistrados para garantir a prestação jurisdicional.
Mas tal política não se mostrou adequada, tampouco apresentou os resultados positivos esperados, pelo contrário.
Diante da problemática, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ instituiu a Política Judiciária Nacional, prevista na Resolução n. 125/2010, que tem por objetivo a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos – principalmente a conciliação e a mediação – no Poder Judiciário e sob a fiscalização deste.
Principia uma mudança de mentalidade dos operadores do Direito e da própria sociedade em relação a esses métodos, com a finalidade de alcançar a pacificação social, escopo magno da jurisdição, e tornar efetivo o acesso qualificado à justiça (“acesso à ordem jurídica justa”).
No entanto, na grande parte dos Tribunais de Justiça brasileiros, apesar da previsão normativa, ainda se persiste no sistema de judicialização e da decisão judicial como principal e legítimo caminho para a resolução das demandas. Como consequência, o Poder Judiciário arca com o crescente aumento do acervo, os autos custas financeiros e com o adoecimento dos seus profissionais por esgotamento físico e mental, fruto de um sistema que há anos se mostra ineficaz e impraticável.
Extrai-se do Relatório Justiça em Números 2018 (ano base 2017)[1]:
O Poder Judiciário finalizou o ano de 2017 com 80,1 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva. Desses, 14,5 milhões, ou seja, 18,1%, estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Em toda série histórica, o ano de 2017 foi o de menor crescimento do estoque, com variação de 0,3%, ou seja, um incremento de 244 mil casos em relação ao saldo de 2016. Esse resultado decorre, em especial, do desempenho da Justiça Estadual, que apesar de registrar historicamente um crescimento médio na ordem de 4% ao ano, variou em 2017 apenas 0,4%. Em outros ramos de justiça também se observa queda no ritmo de evolução do acervo. Nos Tribunais Superiores houve redução significativa: no STJ o acervo diminuiu 11%; no TST a variação foi de -7%, e no TSE, -14,4%. O STM foi o único tribunal superior com crescimento do estoque (17,2%). Durante o ano de 2017, ingressaram 29,1 milhões de processos e foram baixados 31 milhões. Houve decréscimo dos casos novos na ordem de 1% com relação ao ano de 2016, e aumento dos casos solucionados em 5,2%. A demanda pelos serviços de justiça registrou crescimento acumulado na ordem de 18,3%, considerada toda a série histórica desde 2009. Em 2017 foi o primeiro ano em que o volume de baixados superou o patamar de 30 milhões de casos solucionados, sendo visível, na Figura 47 o descolamento entre as curvas de casos baixados e de casos novos. Apesar de se verificar, historicamente, um número de processos baixados igual ou superior ao número de casos novos, o estoque não reduziu, conforme demonstra a Figura 46. O crescimento acumulado no período 2009-2017 foi de 31,9%, ou seja, acréscimo de 19,4 milhões de processos. Ainda que baixando casos em volume superior ao ingressado, com Índice de Atendimento à Demanda na ordem de 106,5%, o estoque manteve-se praticamente constante, e chegou ao final do ano de 2017 com 80,1 milhões de processos em tramitação aguardando alguma solução definitiva. Se o Poder Judiciário decidiu 6,5% de casos acima da demanda, seria esperada uma redução do estoque nessa proporção. Isso não ocorre, em parte, por conta de processos que retornam à tramitação (casos pendentes). São, por exemplo, os casos de sentenças anuladas na instância superior; ou de remessas e retornos de autos entre tribunais em razão de questões relativas à competência ou de mudança de classe processual. Somente em 2017 foram reativados 619.242 processos.
No mesmo Relatório está consignado que o tempo médio do processo baixado na Justiça Estadual Comum é: nas execuções extrajudiciais de 1º grau 1 (um) ano e 9 (nove) meses, conhecimento 1º grau 3 (três) anos e 7 (sete) meses, execução judicial 1º grau 3 (três) anos e 10 (dez) meses e 2º grau 11 (onze) meses.
Acerca da morosidade processual, Ada Pellegrini Grinover (2008, p. 2) destaca:
A morosidade dos processos, seu custo, a burocracia na gestão dos processos, certa complicação procedimental; a mentalidade do juiz, que nem sempre lança mão dos poderes que os códigos lhe atribuem; a falta de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva a obstrução das vias de acesso à justiça e do distanciamento entre o Judiciário e seus usuários. Por outro lado, o elevado grau de litigiosidade, próprio da sociedade moderna, e os esforços rumo à universalidade da jurisdição (um número cada vez maior de pessoas e uma tipologia cada vez mais ampla de causas que acedem ao Judiciário) constituem elementos que acarretam a sobrecarga de juízes e tribunais.
Os reflexos negativos são trazidos por Augusto Cury (2014, p. 143-144):
Há muitas classes fundamentais de profissionais voltados para a sustentabilidade do funcionamento da sociedade que têm uma sobrecarga de trabalho inumana. Entre elas, gostaria de ressaltar duas: a dos juízes (magistrados) e a dos promotores de justiça. É surpreendente que os governos federal e estaduais do país não atentem para a qualidade de vida desses diletos profissionais. Os juízes parecem enxugar gelo sob o sol do meio-dia numa sociedade conflituosa, que vitimada pela SPA (Síndrome do Pensamento Acelerado) e pelas armadilhas da mente, tem pouca habilidade para proteger suas emoções e resolver conflitos pacificamente, optando por instrumentos jurídicos processuais. São mais de 100 milhões de processos no Brasil para um número inexpressivo de menos de 20 mil juízes. Incontáveis magistrados, justamente por serem altruístas, destroem sua saúde física e emocional trabalhando à noite, sacrificando suas famílias, seus finais de semana e até seus feriados. Muitos deles, além disso, sofrem com ameaças externas; mas o primeiro e pior inimigo é mesmo o que vem de dentro, decorrente do esmagamento da qualidade de vida pela sobrecarga de trabalho intelectual exercido. A Síndrome do Pensamento Acelerado os leva a ter fadiga ao acordar, cefaleia, dores musculares, ansiedade, sofrimento por antecipação, transtorno de sono, déficit de memória. Como teremos uma sociedade justa e fraterna se somos injustos exatamente com aqueles que se encarregam de fazer justiça? É necessário dar atenção a todos os profissionais do sistema judiciário.
Portanto, a quebra de paradigma é urgente, sendo a adoção dos métodos consensuais de solução de conflitos a alternativa mais célere, justa e de fácil aplicabilidade diante das necessidades cogentes.
E a mudança de mentalidade começa pelo Poder Judiciário, através da reestruturação de órgãos administrativos e remanejamento de pessoal, a fim de consolidar e validar a atuação dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs).
No entanto, na prática, o que se verifica são esforços administrativos voltados à sólida estrutura de gabinetes, elevando o quadro de julgadores e assessores jurídicos no intuito de alavancar o número de decisões (mapa estatístico). E essa constatação é simples de ser feita, basta comparar o número de magistrados e assessores com o número de conciliadores e mediadores devidamente capacitados atuantes.
Obviamente que se está trilhando o caminho inverso.
A estratégia deveria ser focada na estruturação adequada dos NUPEMEC, que fariam frente à maior parte das demandas, seja na fase pré-processual ou na fase processual em 1º e 2º graus de jurisdição.
A capacitação do pessoal interno (servidores), seguindo as diretrizes que também estão dispostas na Resolução n. 125/2010 do CNJ, seria a grande alternativa para o elevado acervo judicial enfrentado diária e exaustivamente.
Afinal, a necessidade urge na formação de facilitadores em resolução de conflitos através de métodos eficazes, que interfiram efetivamente na causa do litígio e previnam novas demandas, e não no acúmulo de especialistas em elaboração de sentenças e acórdãos, que muitas vezes fomentam ainda mais o problema.
Mas a mudança apresentada passa pela conscientização sistêmica institucional.
Conforme Tartuce (2018 p. 70):
É inegável que os meios consensuais se inserem em um movimento de transformação da visão sobre as formas de distribuição de justiça. Como a mediação e a conciliação judiciais são desenvolvidas no curso da atividade jurisdicional, têm o condão de promover novas reflexões sobre como a jurisdição se configura e realiza.
A judicialização deveria ser a exceção, mais ainda é tratada como regra, inclusive dentro do Poder Judiciário.
Segundo o já referido Relatório Justiça em Números 2018, a Justiça Estadual possui 10.035 varas e juizados especiais e 2.697 comarcas. E, em 2017 contava com 18.168 magistrados e 272.093 servidores. Sem dúvida um potencial de profissionais que poderiam ser capacitados para figurarem como facilitadores (conciliadores e mediadores) judiciais e remanejados de gabinetes e setores administrativos para salas de audiências. Nelas, deveriam ser concentrados o maior número de servidores, pois é através da atuação dos conciliadores e mediadores que está garantida a eficaz prestação jurisdicional e a humanização dos processos, que, na maioria das vezes, trata as partes como coadjuvantes. Porque é durante as sessões que floresce a realidade por trás das narrativas processualizadas. A contextualização do problema, as experiências de vida, os conflitos pessoais, as expectativas, que dificilmente são alcançadas no desenrolar de um processo. Nas audiências, os envolvidos são inseridos na problemática e conseguem expor pessoalmente a questão, assim como são estimulados a procurar uma solução pacífica, respeitosa e justa, através do diálogo direto.
Acerca disso, já no ano de 2001 Warat (2001, p.217) anotava que “O direito da cidadania e a justiça cidadã são duas idéias novas que surgem no pensamento jurídico transmoderno como forma de humanização do Direito e da Justiça, distanciando-se de uma concepção normativa de solução de conflitos que burocratizou o estabelecimento de litígios e desumanizou seus operadores. Humanizar o Direito é reduzir a sua mínima expressão o poder normativo”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Lei 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 01 jul 2018.
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Conciliação e Mediação. Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao-portal-da-conciliacao. Acesso em: 28 jun. 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de Mediação. Disponível em: http://cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/07/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf. Acesso em: 28 jun. 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 125 de 29 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579. Acesso em: 25 jul. 2019.
FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões. 3. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Solomon, 2014.
CURY, Augusto. Ansiedade: como enfrentar o mal do século: a síndrome do pensamento acelerado: como e por que a humanidade adoeceu coletivamente, das crianças aos adultos. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 160 p.
GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.); WATANABE, Kazuo (Coord.); NETO, Caetano Lagrasta (Coord.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional: guia prático para a instalação do setor de conciliação e mediação. São Paulo: Atlas, 2008.
MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilho. Manual de metodologia da pesquisa no direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Forense, 2018.
WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
[1] Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/44b7368ec6f888b383f6c3de40c32167.pdf