4. Aspectos tributários –
Sob o aspecto tributário, a afetação do patrimônio da incorporação não altera a responsabilidade tributária da empresa incorporadora ou o sistema de apuração do lucro tributável. A lei, entretanto, criou um regime especial, opcional, denominado "regime especial tributário do patrimônio de afetação". Assim, poderá o incorporador manter a incorporação afetada subordinada ao regime do lucro real ou adotar o regime especial da Lei n° 10.931/2004.
Pelo regime especial, a alíquota é de 7% da receita mensal recebida, e esse pagamento corresponderá ao pagamento unificado dos seguintes impostos e contribuições:
I – IRPJ – Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – 2,2%;
II – PPIS/PASEP – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – 0,75%;
III – CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – 1,15%;
IV – Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – 3%.
Os recolhimentos devem ser feitos a partir do mês da opção, até o 10° dia do mês subseqüente àquele em que houver sido auferida a receita. É admitida a compensação, mas somente por espécie e com o montante devido no mesmo período de apuração, até o limite desse montante. Pelo regime especial, a incorporação afetada terá um número de inscrição próprio no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ, bem como código de arrecadação próprio. Os débitos do regime especial não poderão ser parcelados.
Se o incorporador não optar pelo regime especial, continuarão sendo adotados os mesmos procedimentos de apuração de resultados e oferecimento à tributação, apurando-se o resultado de cada incorporação e, após, reunindo-se esses resultados no balanço geral do incorporador. Para esse fim, procede-se à reunião dos resultados de cada uma das incorporações da empresa, somados aos resultados não-operacionais e às participações, apurando-se o lucro líquido, ajustando-o pelas adições, exclusões ou compensações, donde de apura o lucro real, que constitui a base de cálculo do imposto de renda da empresa incorporadora (Regulamento do Imposto de Renda, arts. 219, 246, 248 e 277).
5. Nota crítica: deficiências, excessos e incongruências –
Não obstante o grande aperfeiçoamento que a nova lei introduz no sistema de proteção do adquirente, preservando de forma eficaz seus direitos patrimoniais, restam ainda algumas deficiências que prejudicam o pleno cumprimento da função social desse importante mecanismo.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao art. 31A, pelo qual a garantia da afetação será prestada por opção do incorporador. Trata-se de caso esdrúxulo, em que é o devedor quem decide se prestará ou não prestará garantia do cumprimento de suas obrigações. O dispositivo precisa ser modificado para tornar compulsória a afetação patrimonial, até porque o que está em jogo é a proteção da economia popular, e não a conveniência do incorporador.
De fato, a atividade da incorporação imobiliária se caracteriza pela captação de recursos do público e sua aplicação em determinada obra; ao realizar oferta pública de imóveis a construir o incorporador está lidando com a economia popular; esses elementos, por si sós, são suficientes para configurar uma situação merecedora de tutela especial, e um dos propósitos basilares da afetação é disciplinar essa modalidade de captação de recursos e preservar o patrimônio formado com recursos dos adquirentes e demais credores. Esse fato, por si só, recomenda que toda e qualquer incorporação deve ser qualificada como um patrimônio de afetação, independente de qualquer manifestação do incorporador, bastando para tal o registro do Memorial de Incorporação.
Nada justifica que a afetação seja manejada a critério do incorporador, pois a proteção da economia popular é matéria de interesse público que, a exemplo do que sucede no âmbito das relações de consumo, decorre do "reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo" (Lei n° 8.078/90, art. 4°, I), daí a necessidade de intervenção legislativa "para compensar eventual desvantagem contratual e garantir a segurança jurídica em favor do contratante mais fraco, impondo, para tal, regime jurídico próprio para determinadas atividades."
Ao deixar a afetação a critério do incorporador, a Lei 10.931/04 concede vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros e em quatro Projetos de Lei apresentados na Câmara Federal nesse mesmo sentido, todos eles, unissonamente, caracterizando a incorporação imobiliária como um patrimônio de afetação.
Outro aspecto que merece revisão é o regime tributário.
Com efeito, os arts. 1° a 11 da Lei n° 10.931/2004 instituem um regime tributário mais oneroso do que o regime do lucro real e do que o do lucro presumido, circunstância que desestimula sua adoção pelo incorporador, prejudicando, em última análise, os adquirentes. É que, na medida em que pode importar em aumento, injustificado, da carga tributária, e sendo a afetação uma opção do incorporador, este preferirá manter-se no sistema tradicional da incorporação, no qual não existe nenhuma proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes. Para afastar esse obstáculo, propõe-se que o regime especial tributário instituído pelos arts. 1° a 11 da Lei n° 10.931/2004 seja estruturado de acordo com os critérios do regime do lucro presumido.
Nesse contexto ressalta um aspecto de especial relevância, na medida em que imputa encargos absolutamente injustificáveis aos adquirentes.
Com efeito, dispõe o art. 9° da Lei n° 10.931/2004 que, em caso de falência da empresa incorporadora, "perde eficácia a deliberação pela continuação da obra (...), bem como os efeitos do regime de afetação instituídos por esta lei, caso não se verifique o pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas, vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação (...), as quais deverão ser pagas pelos adquirentes em até um ano daquela deliberação, ou até a data da concessão do habite-se, se este ocorrer em prazo inferior."
Nos termos em que está redigido, o art. 9° viola, a um só tempo, os princípios da isonomia, da defesa do consumidor e do devido processo legal.
Em primeiro lugar, é absolutamente dispensável a transferência, para os adquirentes, da obrigação de pagar os encargos vinculados ao patrimônio de afetação, pois o § 11 do art. 31F da Lei 4.591/64, com a redação dada pelo art. 53 da Lei 10.931/2004, já contempla sua sub-rogação nos direitos e obrigações da incorporadora, obrigando-os, portanto, ao pagamento dos débitos fiscais, previdenciários e trabalhistas vinculados à respectiva incorporação.
Considerando que um dos pressupostos dessa segregação patrimonial é a vulnerabilidade econômica e técnica dos adquirentes, a lei deveria conceder aos adquirentes condições de pagamento mais favoráveis do que aquelas que normalmente são asseguradas às empresas, em geral. Esta á uma das hipóteses em que o princípio constitucional da isonomia se realiza pela desigualdade de tratamento, pelo qual se dá tratamento privilegiado para as categorias de pessoas que se encontrem em situação de desvantagem econômica ou técnica, como é o caso dos adquirentes de imóveis em construção, diante da caótica situação decorrente da falência da incorporadora.
Além disso, o art. 9° suprime direitos anteriormente assegurados aos adquirentes pela Lei n° 4.591/64, pela qual já era assegurado o prosseguimento da obra sem necessidade de resgate imediato dos débitos pendentes. A restrição ao exercício dos direitos dos adquirentes é inadmissível, mesmo se se considerar que eles sejam devedores, ainda que sejam devedores inadimplentes e mesmo que se mantenham na condição de devedores inadimplentes, pois, como se sabe, a pendência de débito, mesmo em execução, não priva a pessoa do uso e da fruição de seus bens ou direitos, mesmo que estes estejam submetidos a constrição judicial.
A par da arbitrariedade, a proibição é desnecessária, pois os débitos em questão estão garantidos pelo próprio patrimônio de afetação constituído pelo acervo da incorporação. De fato, nos precisos termos da definição legal, é o ativo do patrimônio de afetação que responde pelas obrigações contraídas para cumprimento da sua finalidade, e só ele responde por essas obrigações (ressalvada, obviamente, a responsabilidade do incorporador pelos prejuízos que causar). De outra parte, não há que se ter receio de que os adquirentes se esquivem do pagamento, subtraiam bens do ativo do patrimônio de afetação ou os transfiram para outro local, pois esse ativo é constituído de pedra e cal, fixo, inarredável. Além dessa estabilidade material, esse ativo é financeiramente valorizável e o prosseguimento da obra só tende a valorizá-lo ainda mais, aumentando a garantia até mesmo dos credores a que se refere o art. 9° da Lei 10.931/2004.
De outra parte, a despeito de constituir uma tutela especial que visa compensar a vulnerabilidade dos adquirentes, a afetação protege, igualmente, os demais credores do empreendimento, entre eles os trabalhadores, a previdência e o fisco. Assim sendo, além de ser danoso aos interesses de todos os credores vinculados ao empreendimento, o art. 9° é particularmente desastroso para os trabalhadores.
É que, independentemente de afetação, os compradores continuam a ter direito de prosseguir a obra, mas se eventualmente vier a ser extinta a afetação, como prevê o art. 9° , os trabalhadores perdem o direito de receber seus créditos diretamente do patrimônio de afetação, sendo obrigados a habilitar seus créditos no processo de falência, devendo aguardar seu encerramento para recebê-los, o que só ocorrerá após a realização do ativo da massa falida.
A tudo isso acresce que essa proibição jamais poderia ser cogitada, pois se contrapõe à própria finalidade da norma legal, que é facilitar a liberação para que a obra prossiga sem obstáculos, e não bloqueá-la, como se depreende desse art. 9°.
Por todas essas razões, entendemos que deve ser revogado o art. 9° da Lei n° 10.931/2004.
Há, de outra parte, excessos em alguns mecanismos de controle, que podem contribuir para emperrar o funcionamento da incorporação e devem, portanto, ser afastados.
São os casos da exigência de anuência dos adquirentes no "termo de afetação", de apresentação de balancetes e de auditoria.
A exigência de anuência dos adquirentes é dispensável e pode até tornar inexeqüível a afetação.
Com efeito, a afetação é uma garantia em favor dos credores, entre eles os adquirentes, que são beneficiários de uma tutela especial, de modo que a tomada da sua assinatura no "termo" constitui ato burocrático absolutamente estéril, que pode, até, prejudicar a comunidade de adquirentes, caso algum deles, por qualquer razão, se recuse a firmar o "termo."
Só se justificaria essa anuência em caso de algum ato que pudesse prejudicar os adquirentes, mas parece paradoxal exigir sua assinatura para constituir uma garantia em favor deles mesmos, que não lhes impõe nenhum encargo a não ser em seu próprio benefício, qual seja, o encargo de assumir a administração da incorporação e dar prosseguimento à obra nos casos que a lei especifica.
Não se pode esquecer que a afetação importa numa restrição ao patrimônio separado do incorporador, e não ao patrimônio dos adquirentes, sendo certo que essa restrição é instituída exatamente para assegurar os direitos destes últimos.
Na prática já começam a surgir dificuldades para a tomada de assinaturas de adquirentes, podendo até ocorrer grande demora nessa diligência e, até, a recusa de algum deles, por qualquer razão.
A exigência é uma distorção em relação à garantia dos adquirentes e pode dar causa a graves prejuízos para estes. De fato, a recusa de algum adquirente poderá levar a comunidade de adquirentes a sofrer prejuízos de difícil ou impossível reparação. A lei é omissa quanto às conseqüências dessa falta de anuência, circunstância que pode gerar dúvidas e incertezas dos operadores. Nesse caso, salvo melhor juízo, o oficial do Registro de Imóveis poderá suscitar dúvida ao juiz competente; alternativamente, o incorporador ou a comissão de representantes poderia, diante desse fato, requerer suprimento judicial que assegurasse a averbação do "termo" mesmo sem assinatura de todos os adquirentes. Em suma, considerando que a afetação é garantia em favor dos adquirentes, a exigência de anuência poderia causar mais prejuízos à comunidade de adquirentes do que a dispensa, razão pela qual sugerimos seja reformulada a redação do art. 31B da Lei 4.591/64, substituindo-se a exigência de "assinatura" dos promitentes compradores pela sua "cientificação." [05]
A apresentação de balancetes trimestrais e a auditoria são também exigências repetitivas e excessivas, que tolhem a atuação do incorporador sem trazer nada em benefício dos adquirentes.
De fato, o incorporador é obrigado a apresentar, trimestralmente, um demonstrativo físico e financeiro do empreendimento, no qual são considerados o estado da obra e sua correspondência com os recursos captados e com a programação financeira do negócio. Essa demonstração atende as necessidades de controle dos adquirentes, sendo dispensável o balancete. Parece ter havido certo exagero do legislador nesse aspecto. De fato, aqueles que confiaram seus recursos ao empresário da incorporação devem ter assegurado o direito de fiscalizar e acompanhar a incorporação, e é exatamente nesse sentido que a lei obriga o incorporador a apresentar-lhes trimestralmente um relatório do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado. Se tais informações não forem suficientes para controle da aplicação dos recursos, aí, sim, seria razoável a busca de outros documentos e novas informações que complementassem ou esclarecessem aspectos que, no demonstrativo trimestral do estado da obra, tenham permanecido obscuros. Parece razoável que, nesses casos, a lei preveja a busca de tais dados caso o incorporador, notificado, não os tenha entregue tempestivamente.
6. Conclusão –
Em suma, a afetação das incorporações imobiliárias constitui garantia de incomparável eficácia em favor dos credores vinculados especificamente a cada negócio incorporativo, beneficiando em especial os adquirentes, na medida em que lhes assegura a preservação das suas aplicações financeiras e lhes outorga o direito de assumir a administração do negócio e prosseguir a obra com autonomia em relação a eventual falência da empresa incorporadora, prerrogativa essa que veio a ser reafirmada pelo art. 111 da Lei de Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário (Lei n° 11.101/2005).
A despeito de a Lei n° 10.931/2004 ter dotado o direito positivo brasileiro de nova e importante garantia, desviou-se do fundamento axiológico que justifica a afetação patrimonial nas incorporações, atribuindo-a como opção do empresário e não como garantia natural daqueles que a ele confiaram suas economias. Urge, portanto, ajustar a lei ao propósito de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes, tornando compulsória a aplicação da afetação a todas as incorporações, única forma de assegurar, na hipótese, a plena realização da função social do contrato e da propriedade.
Notas
01
MESSINEO, Francesco, Manual de derecho civil y commercial. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, v. II, p. 265.02
03
CHALHUB, Melhim Namem, Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 95.04
CHALHUB, Melhim Namem, Trust – Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp.172 e seguintes.05
Sugerimos a seguinte redação: "Art. 31B. Considera-se constituído o patrimônio de afetação mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, pelo proprietário do terreno, bem como por aqueles que tiverem transmitido seus direitos aquisitivos sobre o mesmo ao incorporador.""Parágrafo único. A afetação não será obstada pela existência de ônus reais sobre o terreno e acessões ou de contratos de alienação de unidades integrantes da incorporação, devendo os adquirentes ser cientificados da constituição da afetação, mediante carta dirigida pelo incorporador."