Considerações finais
No Brasil, apesar de serem direitos constitucionais positivados, o direito à moradia e à propriedade geralmente são confundidos entre si. Todavia, esses direitos não se confundem, podendo ou não coexistirem.
São direitos autônomos, sendo o direito à moradia um direito que garante vida digna à população.
Os direitos à moradia e o direito à propriedade foram implantados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabelecendo, pois, estes pressupostos como fundamentais para uma vida digna, além de assumir papel de defesa à integridade humana.
O Brasil, ao se tornar signatário dessa Declaração, concede ao direito à moradia status de garantia fundamental de segunda dimensão por meio da Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000, trazendo no bojo do artigo 6º, caput da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), nova redação, e, como tal, é dever do Estado garantir seja cumprido de forma positiva, através de políticas públicas que assegurem o acesso a todos.
“Os direitos sociais constituem as liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por objetivo melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando a concretização da igualdade social” (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p.247).
Já o direito à propriedade, que diz respeito às faculdades que o proprietário tem de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem, está previsto no art. 5º, incisos XXII e XXII da CRFB/1988. Os referidos incisos ainda fazem menção à função social da propriedade, englobando princípios do bem comum, da participação e da solidariedade que norteiam essa função realizada pela propriedade.
Pela sua relevância e significado, essa necessidade passou a ser reconhecida como direito inerente à pessoa humana, todavia, não é amplamente observado. Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010, são mais de 6 milhões de domicílios vagos, e mais de 6,9 milhões de família sem ter onde residir.
Ainda, tem-se mais de 10 mil imóveis pertencentes à união, sendo 80% deles prédios comerciais, residências, salas, galpões e terrenos.
No tocante ao tema invasão e ocupação, geralmente são edificações privadas que são atingidas em maior número. As pessoas que, em regra, vivem em situação de miserabilidade, escolhem determinado local para ocupar e ali estabelecem sua residência ou mesmo seu local de trabalho; imóveis estes que podem ser alcançados pelo instituo do usucapião. Mas quando acontece com prédios públicos, os bens intitulados de dominicais, aqueles que, conforme o art. 99 do CC/2002, são os “[...] que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”, não podem ser tomados por particulares e tampouco usucapidos.
Tal previsão encontra-se expressa na CRFB/1988, art. 183, parágrafo 3º e 191, parágrafo único que deixam expressos em suas redações que os imóveis públicos não podem ser adquiridos por usucapião quando a propriedade é adquirida de pela posse ininterrupta e prolongada. O art. 102 do CC/2002 rechaça o previsto na Carta Constitucional.
Acontece que esses imóveis em desuso pela administração pública não têm destinação específica, apenas geram despesas. Ainda, apesar desse número elevado de imóveis sem utilidade, estima-se, de acordo com o Ministério de Planejamento, seja gasto algo em torno de R$1,6 bilhão por ano com aluguéis para abrigar órgãos públicos.
Observa-se, pois, através dessa pequena análise que os prédios inutilizados pela Administração Pública não estão exercendo a sua função social, e sim, despesa para os cofres públicos. Daí se extrai o questionamento: quantos prédios públicos estão abandonados poderiam servir de moradia para a população mais pobre?
Por mais que seja uma ordem expressa na CRFB/1988 a de que imóveis públicos não podem ser objeto de usucapião, em contrapartida também o é a garantia fundamental à moradia digna.
Acredita-se que seja o bem de que natureza for, deve-se prestar ao fim que se destina, assim, ao múnus da função da social.
Quanto ao jurisdicionado, ao determinar a remoção de pessoas das edificações esbulhadas, cumpre a lei, pois tem o Estado direito de reaver a posse do bem. Lado outro, quando são tomadas essas providências, deixa de observar direito e garantia fundamental elencada no art. 6º da CRFB/1988.
Às vistas dos princípios da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, cujo principal intuito é a preservação e o respeito dos direitos de cada cidadão e a manutenção do bem-estar social, percebe-se que seria justo valer-se dos institutos da concessão do direito real de uso e concessão de uso especial para fins de moradia, uma vez que os imóveis inutilizados, geradores de despesa para o Governo, passariam a ser de responsabilidade do sujeito ocupante, o qual teria pura e tão somente a posse do bem, durante toda sua vida, sem que recaísse sobre os mesmos o instituto do usucapião. Logo, a propriedade exerceria a função a qual é destinada, e deixaria de ser fonte de despesas para a Administração Pública.
Referências
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Nota
[1] De acordo com o art. 182, § 1º da CRFB/1988, “O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. ”