No início do século XX surgiram no mundo várias teorias antiformalistas, que defendiam a ampliação da liberdade do intérprete ao aplicar a lei e criticavam o fechamento semântico e a fixação na vontade do legislador típicos do positivismo-formalismo do século XIX.
Contudo, o formalismo persistiu sob outra fórmula, especialmente nos meios acadêmicos, pois permitia que os valores morais contidos nas normas fossem desconsiderados. Nesse novo contexto, mesmo Kelsen, grande expoente dessa teoria no século XX, mostrava-se avesso às restrições do positivismo-formalismo do século anterior: ele considerava a existência de uma abertura semântica nas normas, a qual lhes impediria o estabelecimento de um sentido único.
À medida que o século se desenvolvia, ocorreu a releitura do conceito de equidade: passou a ser admitido tratar desigualmente os desiguais, no sentido de compensar suas diferenças e eliminar as disparidades extremamente injustas. A compensação dessas diferenças foi atribuída ao Estado do Bem Estar Social e aos seus três poderes.
Avançando no tempo, após a II Guerra Mundial, os antiformalistas passaram a insistir que a formação interdisciplinar do jurista deveria aumentar sua sensibilidade e proporcionar-lhe uma visão além da regra: o caso concreto, individual, deveria preponderar sobre qualquer pretensão universalizante.
Nesse mesmo recorte cronológico, nos Estados Unidos – onde foi inventado o controle difuso de constitucionalidade das leis – ocorreram os seguintes fatos que precederam a decisão do caso Brown vs. Board of Education (1954), retratado no filme Separados Mas Iguais (1991).
Em 1896, o veredito do caso Plessy vs. Ferguson oficializou a segregação racial pela doutrina “separados mas iguais”. A abolição da escravatura ocorrera somente três décadas antes, em 1865, e o medo ainda presente de revanchismo pelos negros oprimidos – a exemplo do que ocorrera na Revolução Haitiana (1791-1804) – levou a Suprema Corte a confirmar que era lícito separar ambientes para pessoas brancas e negras, fosse no transporte público ou em instalações educacionais.
Especialmente após a Crise de 1929 e durante o New Deal, entretanto, ocorreu uma mudança paradigmática: a Suprema Corte começou a apresentar decisões interpretando a Constituição, o Bill of Rights e as emendas constitucionais seguintes de maneira diferente. Pode-se dizer esse novo paradigma proporcionou a decisão do caso Missouri ex rel. Gaines vs. Canada (1938), no qual a corte proferiu que a doutrina “separados mas iguais” seria inaplicável caso não existisse o provimento de serviços de igual qualidade no ensino superior para pessoas brancas e negras.
Passando-se à trama do filme citado, os fatos que deram origem ao caso Briggs vs. Elliott ocorreram em 1947, pelo não fornecimento de transporte escolar para as crianças negras do distrito de Summerton, no condado de Clarendon, na Carolina do Sul. Como a autoridade escolar local recusou o pleito administrativo do responsável pela escola Saint Paul, J. A. DeLaine, este contatou a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) para ingressar em 1949 com uma ação judicial no sentido de obter a igualdade material – prevista na common law estadunidense – em relação às escolas para crianças brancas do mesmo condado. Segundo o advogado da NAACP, Thurgood Marshall, Clarendon gastava por ano US$ 179.00 com cada criança branca, enquanto a despesa anual com crianças negras era de apenas US$ 43.00 per capita, desobedecendo a doutrina “separados mas iguais”.
Havia dissenso entre os membros da NAACP no sentido de continuar pleiteando a igualdade material nos serviços públicos para brancos e negros ou avançar rumo ao fim da segregação; por isso, Marshall determinou como estratégia: “Podemos seguir os dois caminhos. Apontem o princípio da segregação como questão de princípio, mas concentrem o ataque na desigualdade do sistema escolar de Clarendon. Faça-os aplicarem seu precioso ‘separados mas iguais’”.
Na audiência inicial (1950) o juiz encarregado do caso Briggs vs. Elliott declarou não ser possível decidir uma questão de princípio sozinho e convocou uma nova audiência, onde essa questão seria analisada por um colégio de três juízes. Pediu ainda que os advogados da NAACP reformulassem a petição, na qual deveria estar explícito o questionamento constitucional como matéria, atacando a segregação racial diretamente.
Para a nova audiência, a NAACP contratou o psicólogo negro Kenneth B. Clark como perito, que conduziu experimento – conforme método desenvolvido em parceria com Mamie Phipps Clark – com as crianças brancas e as negras do distrito de Clarendon a fim de evidenciar o prejuízo psicológico em relação à autoestima sofrido pelas crianças negras, tendo a segregação racial nas escolas como causa desse prejuízo. Nessa audiência também foi apresentado o testemunho do psicólogo branco David Krech, que apresentou conclusão semelhante à de Clark.
Em face dos argumentos do advogado do estado de Carolina do Sul – que tergiversava, alegando o fato de o governador James F. Byrnes reconhecer sua falha em cumprir a igualdade material no ensino de brancos e de negros e de ter prometido investimento milionário em escolas para negros nos anos seguintes visando a evitar o fim da segregação racial –, Marshall declarou que a população negra desejava direitos agora, e não no futuro.
Por dois votos a um, o estado de Carolina do Sul teve reconhecido o direito de manter a segregação racial nas escolas. Mesmo sob pressão para desistir do caso, a NAACP decidiu apelar da decisão e levar o caso para a Suprema Corte. A causa passou a abranger cinco diferentes casos e a se chamar Brown vs. Board of Education; para defender seus interesses, o estado de Carolina do Sul contratou o reconhecido advogado John W. Davis.
Durante a primeira audiência na Suprema Corte (em 1952, segundo o filme), o Justice Frankfurter questionou pragmaticamente os advogados da NAACP sobre as consequências práticas do eventual fim da segregação racial escolar; segundo a narrativa, o veredito poderia se basear nessas consequências de viés político, em vez de aspectos estritos da norma constitucional.
Nessa audiência, a reconstituição dramatizada, o Justice Douglas teve o diálogo a seguir com Davis sobre a living constitution:
- Qual é sua resposta, Sr. Davis, à sugestão de que a Constituição, como um documento vivo, deve ser interpretada com relação aos fatos da época em que foi criada?
- Minha resposta para isso, Juiz Douglas, é que a mudança das condições não expande a linguagem que foi empregada pelos criadores da Constituição.
A decisão a respeito do caso não foi imediata, demorou o suficiente para um novo Chief Justice, Earl Warren, assumir a corte e abordar o caso sob outro ângulo. Contrário à segregação racial, Warren atuou influenciando os votos dos outros justices até conseguir a unanimidade, que seria essencial para dar lastro político e efetividade ao veredito. Em uma das negociações travadas por ele, o Justice Jackson lhe disse algo importante sobre a elaboração de seu voto com base na living constitution: “[...] as generalidades grandiosas da Constituição têm um conteúdo e um significado que mudam de uma época para outra”.
Para reavivar a discussão do caso, Warren convocou uma nova audiência na Suprema Corte (ele não havia participado da primeira), na qual as partes deveriam apresentar seus argumentos à luz da vontade dos legisladores que criaram a 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos. Cientes da inexistência de provas sobre a vontade do legislador que favorecessem o fim da segregação racial, os advogados na NAACP ousaram uma abordagem alternativa, humanitária, baseada em uma citação do congressista Thaddeus Stevens à época do debate da 14ª emenda – “nenhuma distinção será tolerada nessa república nova, senão aquela proveniente de mérito e conduta” – e ao recurso à teoria da living constitution para demonstrar que o significado do texto constitucional é dinâmico diante das modificações que a sociedade passara desde sua promulgação.
A nova audiência aconteceu em 1954 e a decisão da Suprema Corte foi unânime, deixando claro que a segregação racial causava desigualdade, por comprometer a autoestima das crianças negras e a capacidade delas para aprender. As oportunidades para as crianças negras seriam sempre piores que as para crianças brancas e esse círculo vicioso causado pela segregação racial jamais chegaria ao fim espontaneamente.
Na “Corte Warren” ocorreu uma transição no entendimento da Suprema Corte: em vez da busca pela vontade do legislador, passou-se a buscar a vontade da lei (voluntas legis, non legislatoris). Ao se analisar a mensagem contida na lei, esta permaneceria atualizada em relação à sociedade, mesmo com o passar do tempo. Nesse mesmo ínterim, a 9ª Emenda, que contém uma exemplificação não exaustiva dos direitos fundamentais, foi interpretada para ampliá-los mediante a noção de que a Constituição permitia e exigia a extração de novos direitos. A orientação dada à Suprema Corte pela gestão de Earl Warren alimentou o movimento popular pelos direitos civis, catalisando a discussão do assunto. Somente em 1963 o presidente John Kennedy apresentou o projeto de lei do Civil Rights Act, que foi inicialmente rejeitado; na esteira do assassinato de Kennedy, o projeto foi reapreciado, aprovado e sancionado pelo seu sucessor, Lyndon Johnson, em 1964.
Referências Bibliográficas
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