Resumo: Este artigo pretende abordar a ética médica e o segredo médico e demonstrar a interligação com a Bioética e o Direito. Em realidade, pretende-se demonstrar a contribuição da Bioética e do Direito. Situações em que o segredo médico pode ser quebrado e as consequências positivas e negativas nas diversas vertentes, ética, constitucional, disciplinar ou administrativa e criminal. Discorrer sobre algumas situações conflitivas onde médicos devem observar o Código de Ética Médica a fim de evitar a responsabilidade civil e penal.
Palavras-chave: ética médica, segredo médico; direito; bioética
Introdução
O presente artigo pretende abordar aspectos relevantes acerca do segredo médico à luz da ética, da bioética e do direito, indicar e evidenciar a relação entre elas com o segredo médico. A metodologia utilizada é teórica e baseada em obras bibliográficas nas áreas do Direito, Medicina e Bioética, bem como na jurisprudência.
O advento da tecnologia facilitou o acesso ao conhecimento, influenciando no comportamento da sociedade. As redes sociais, criadas para promover a comunicação, também influenciaram na área médica, facilitando a troca de informações. Contudo, os Conselhos de Medicina veem com muita prudência esta forma de comunicação, seja entre médicos ou, entre estes e seus pacientes.
A relação médico-paciente evoluiu, passando do paternalismo para uma relação com mais respeito à autonomia do paciente, priorizando o consentimento informado.
O segredo médico, obrigação moral da relação médico-paciente se ancora, tem como supedâneo o direito à intimidade, garantido constitucionalmente. Essa confidencialidade deve existir para que o tratamento decorra de forma segura e confiável, sem ferir o compromisso com os princípios éticos em vigor.
Com o intuito de fiscalizar esse importante e delicado vínculo, foram criados comitês de ética, os quais foram se adaptando aos novos clamores da autonomia e da proteção ao paciente vulnerável.
Em havendo quebra do sigilo, aos profissionais são impostas sanções administrativas, éticas e jurídicas, cíveis e penais, segundo a abrangência e responsabilidade em cada caso.
1. Bioética
Disciplina recente, a bioética nasceu como resposta à necessidade social e profissional na busca de uma solução para os dilemas éticos concernentes à vida, morte, religião e qualidade de vida.
Pode ser definida como o “estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e o cuidado da saúde, enquanto que dita conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais.” (SERRANO RUIZ, 1992, p.18). Abarca um amplo conjunto multidisciplinar, que une o mundo dos fatos ao mundo dos valores éticos do homem, configurando-se na ética da vida.
Segundo Beauchamps e Childress (2002) elencaram quatro princípios bioéticos: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, os quais servem como guias em muitas situações. Em síntese, a importância da autonomia denota que o paciente age conscientemente, de propósito, sem influências externas. A não-maleficência, por sua vez, refere-se a incapacidade de fazer ou causar danos intencionalmente aos enfermos, enquanto a beneficência alude a obrigação moral de atuar para o benefício dos outros e, por fim, a justiça indica que as pessoas têm os mesmos direitos, isto é, devem ser tratadas do mesmo modo, com igualdade, aplicando-se a justiça equitativa, ou seja, distribuição equitativa dos direitos e responsabilidades ou encargos para a sociedade.
Para a bioeticista e doutora em Direito, Tereza Rodrigues Vieira, (2003, p. 15):
“O vocábulo bioética indica um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço da tecnociências biomédicas. [...] Assim, seu estudo vai além da área médica, abarcando psicologia, direito, biologia, antropologia, sociologia, ecologia, teologia, filosofia, etc., observando as diversas culturas e valores. Esta pesquisa não tem fronteiras, dificultando, inclusive, uma definição, uma vez que os problemas são considerados sob vários prismas, na tentativa de harmonizar os melhores caminhos.”
Lembre-se aqui que o Código de Ética Médica possui vinte e cinco princípios fundamentais, abarcando inclusive, os mais ligados à Bioética. Assim, o princípio da beneficência impetra que se evitem danos ao paciente, ou seja, o paciente precisa confiar no médico e este deve olhar nos olhos do paciente e jamais perder a humanidade. Esse princípio está atrelado ao da não-maleficência, ou seja de não acarretar dano intencional, conforme Ferreira (2013, p. 9):
No Princípio da Beneficência, o Relatório de Belmont repudia a ideia de beneficência como caridade e a considera como uma OBRIGAÇÃO. Resume-se tal princípio em não causar dano, em maximizar os benefícios e em minimizar os possíveis riscos para o paciente. (...). Segundo este princípio o paciente não recebe favores, mas reivindica o direito à beneficência (e a não maleficência), que se torna dever do corpo clínico.
Já o princípio da autonomia da vontade, pode ser mais bem compreendido como a capacidade que cada pessoa tem para reger suas vontades e escolhas. A leitura do artigo 15 do Código Civil1 está ligada ao princípio em comento. Entretanto, não há opção de autonomia em casos de emergência, urgência, contudo haverá a necessidade de ponderação, mas a decisão é do médico. Interessante esclarecimento sobre o princípio na relação médico-paciente nos dá Sá e Naves (2011, p. 34). Vejamos:
“A relação médico-paciente sofre substancial transformação com a consideração desse princípio. A relação de autoridade perde espaço para a consideração do paciente como sujeito partícipe do processo de tratamento. Para tanto, o processo de intervenção deve ser transparente, permitindo que o paciente tenha o máximo de informações antes de decidir. Daí a exigência do consentimento informado.”
O princípio da justiça, por sua vez, exige a igualdade na distribuição dos medicamentos, bens, tratamento igual a todos e no tempo certo. Segundo (FERREIRA, 2013, p. 10):
“Os pacientes devem ser tratados de igual modo, pois todos são titulares de igual direito à saúde. Em segundo lugar, a justiça diz respeito ao Estado, que deve distribuir equitativamente seus recursos, para que todos os cidadãos possam receber cuidados médicos competentes e de qualidade.”
No Direito Médico, a contribuição da bioética é vasta no momento da decisão acerca do tratamento ou cuidado a ser fornecido ao paciente e também por ocasião do julgamento da conduta do profissional.
O fato é que a medicina tem se judicializado e desumanizado com a excessiva tecnicidade, contribuindo para balançar a relação médico-paciente. Os comitês de ética têm tentado cooperar na análise dos dilemas advindos da prática médica cotidiana.
2. Ética Médica
Ética médica advém da atividade médica que cotidianamente enfrenta inúmeros problemas clínicos, os quais podem surgir acompanhados de dilemas éticos, cujas respostas não são simples, mas envoltos em alta complexidade não solucionadas claramente pelas normas deontológicas.
Os profissionais de saúde, para deliberar sobre os problemas éticos que surgem no trabalho, necessitam ir além do conhecimento experimental, indo buscar auxílio em outras areas, como a filosofia, psicologia, direito etc, objetivando descobrir respostas para as dúvidas que brotam na vida cotidiana.
O surgimento da ética médica, por sua vez, remonta à Grécia Antiga através de Hipócrates, porém somente no século XIX, Thomas Percival, teve a ideia de planear as regras para o exercício da medicina. (CABETTE, 2003, p.123)
Ética médica é conhecida como o conjunto das normas de comportamento moral e deontológico que orienta os profissionais da medicina.
Na verdade, a Ética não pode ser vista apenas como conduta para nortear a vida profissional, mas além de tudo estar presente integralmente nas demais experiências cotidianas do médico em sociedade, sob pena de se transformar em ética de corporação, distanciada dos valores da sociedade. (PALÁCIOS; MARTINS; PEGORARO, 2002, p.64).
Podemos deduzir que, se Ética é conduta, contudo, esta não é norma, o mais correto seria denominarmos de: Código de Moral da Ética Médica? Pensamos que não, pois a moral é despida de sanção, talvez o melhor fosse Código de Normas da Ética Médica.
Mas ainda cabe a indagação, por que o nome Código de Ética Médica? Da leitura da obra de Cabette, (2011, p. 3), podemos inferir que, não só de regras de conduta, mas também de regras deontológicas2. Concluiu referido autor,
“É destacável que o Código de Ética Médica constitui-se num diploma que elenca muito mais deveres do que direitos dos médicos. Ele compõe-se de 25 princípios fundamentais do exercício da medicina, 10 normas diceológicas [3] , 118 normas deontológicas e 4 disposições gerais. Portanto, para confirmar a assertiva acima quanto à natureza predominantemente deontológica do diploma sob comento basta uma análise numérica, pois que as disposições principiológicas e deontológicas constituem a grande maioria das normas que compõem o Código de Ética Médica.”
Nos anos setenta surgiu a bioética contribuindo para a reflexão acerca de dilemas relacionados à vida, religião, à morte e à qualidade de vida.
Assim, falar em Ética Médica e seus princípios implica, necessariamente, em demonstrar a sua relação com a Bioética, conforme fizemos nos tópicos anteriores, por tratarmos aqui do sigilo médico, tema multidisciplinar que considera a ética da vida, inclusive, norteando as relações entre médicos e pacientes.
A título de ilustração, cumpre aqui citar caso em que paciente transexual menor de idade (com indicação/diagnóstico de TIG – Transtorno de Identidade de Gênero) acompanhado dos pais, solicitou prescrição/tratamento de hormônios. Contudo, o médico negou o pedido alegando desconhecer tratamento para esse fim e que sendo o paciente menor não poderia ter acesso a qualquer tipo de hormonização. Agiu corretamente ou não o médico de acordo com a legislação vigente? A resposta é relativa, pode ser negativa ou positiva. A dúvida teve origem com a publicação pelo Ministério da Saúde da Portaria autorizadora MS/SAS nº 859/13 (artigo 10º, parágrafo 2º, inciso I), entretanto no dia seguinte o MS publicou a Portaria MS/GM nº 1579/13 que proibe tal procedimento, o que gerou dúvidas ao médico. Para os mais radicais, o médico não agiu de forma errada, com base no disposto nos incisos abaixo do Código de Ética Médica: I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza. II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. IX - Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Restou a dúvida, então a Defensoria Pública elaborou reclamação e foi necessária realizar uma análise para sanar a controvérsia através do Parecer 4 processo-consulta CFM nº 32/12 – parecer CFM nº 8/13 do Conselho Regional de Medicina de São Paulo - CREMESP-SP5 e pelo Centro de Bioética 6; É ético prescrever hormonioterapia a adolescente transexual? Acertadamente, o Conselho Federal de Medicina, defendeu a hormonioterapia Para a resposta quanto à questão, no entanto, pode-se usar parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) , de fevereiro último (portanto, divulgado antes das portarias mencionadas7), respondendo dúvida da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. No texto, o CFM pronuncia-se de forma favorável ao tratamento hormonal a garoto de 16 anos, com TIG.
“A supressão da puberdade, seguida pelo tratamento hormonal e eventual cirurgia, parecem ter inegável benefício para esses jovens” conclui o relator, com base em (amplo) levantamento bibliográfico.
(...).
Considerações éticas
A fim de prover consentimentos válidos, os adolescentes e pré-adolescentes devem receber todas as informações possíveis sobre tratamentos, incluindo os riscos de cada estágio terapêutico. Além de seu consentimento e da obediência da legislação, seus pais devem consentir. Em situação de adolescentes, o princípio de in dubio abstine (em tradução livre, “em dúvida, abstenha-se”) necessite ser considerado. Quando for julgada a conveniência da supressão hormonal da puberdade é preciso levar em conta também as possíveisconsequências da não intervenção, com todos os efeitos psicossociais deletérios envolvidos.
Em resumo
Baseado na literatura científica e na legislação disponível, o parecer do CFM indica que:
O adolescente com TIG deve ser assistido em centro dotado de estrutura que possibilite o diagnóstico correto e a integralidade da atenção de excelência, que garanta segurança, habilidades técnico-científicas multiprofissionais e suporte adequado de seguimento;
Tal assistência deve ocorrer o mais precocemente possível, iniciando com intervenção hormonal quando dos primeiros sinais puberais, promovendo bloqueio da puberdade do gênero de nascimento (não desejado);
Aos 16 anos, persistindo o transtorno de identidade de gênero, gradativamente deverá ser induzida a puberdade do gênero oposto. (CREMESP, 2017).”
Atualmente é perfeitamente possível e a procura vem crescendo para o tratamento em crianças de 5 a 12 anos8. A fim de tornar mais claro o assunto, o Hospital das Clínicas de São Paulo, já é referência para os tratamentos de TIG, a partir dos 16 anos9. Segundo o médico psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo:
“Na primeira fase do tratamento, não há uso de hormônios. Saadeh explica que a partir dos 12 anos é possível apenas fazer um bloqueio (reversível) para impedir o desenvolvimento das características sexuais do gênero biológico. Só a partir dos 16 anos, e se confirmado o TIG, é que tem início o tratamento hormonal para estímulo de características do sexo com o qual a pessoa se identifica.”
Afirma a diretora do Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/Aids -SP, Maria Clara Gianna10, que:
“Esse tratamento inicial bloquearia justamente a puberdade de gênero de nascimento. A partir dos 16 anos os hormônios que induzem à aparição de características do gênero desejado podem começar a serem tomados pelos jovens.”
Em que pese opiniões contrárias, entendemos que pacientes menores de idade diagnosticados com TIG (16 anos) – Transtorno de Identidade de Gênero, desde que com a concordância dos pais merecem ser assistidos e iniciar o tratamento hormonal. O Hospital das Clínicas em São Paulo vem realizando esse trabalho dentro das normas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina, CFM.
3. SEGREDO MÉDICO
Assunto amplo, segredo médico ou sigilo médico é dever do médico e por sua vez a coluna que sustenta a relação médico-paciente. Ele é associado ao princípio Bioético da Autonomia.
Com propriedade ensinam Franscisconi e Goldim, (1998, p. 270):
“Muitos autores e códigos utilizam indistintamente os termos sigilo e segredo. A palavra segredo pode ter o significado de mera ocultação ou de preservação de informações. Os segredos dizem respeito à intimidade da pessoa, portanto devem ser mantidos e preservados adequadamente. A palavra sigilo tem sido cada vez menos utilizada. A sua utilização em diferentes idiomas tem caracterizado cada vez mais os aspectos de ocultação e menos os de preservação [11] .”
Assim,
“O dever de manutenção do sigilo médico decorre da necessidade do paciente confiar, irrestritivamente, no profissional, com vistas a que possa ser estabelecida uma relação médico-paciente satisfatória, importante para que o tratamento transcorra da melhor forma possível, com a menor possibilidade de erros e iatrogenias. (YAMAKI, 2014, p. 177).”
Essa relação de confiança se estende a todos os profissionais, abrangendo recepcionistas e secretárias. O segredo médico tem a função de respeitar a intimidade do paciente. Ele é a proteção do paciente. Assim, conforme a lição precisa e selecionada de Tereza Rodrigues Vieira: “O segredo médico compreende confidências relatadas ao profissional, bem como as percebidas no decorrer do tratamento e, ainda, aquelas descobertas que o paciente não tem o intuito de informar.” (2003, p.144).
De suma importância as ponderações dos autores colombianos Correa e Dias, todos devem manter máxima atenção para evitar a quebra do sigilo, seja na forma verbal, física e tecnológica (2003, p. 107):
“El secreto profesional es la obligación ética que tiene el médico de no divulgar ni permitir que se conozca la información que directa o indirectamente obtenga durante el ejercicio profesional, sobre la salud y vida del paciente o su família.
(...).
“A los estudiantes de medicina y personas involucradas en la atención médica, también les obliga el secreto profesional, pues es necesário asegurar al enfermo, que todo lo relativo a su vida y enfermedad será guardado en reserva.”
Os autores acima revelaram uma grande preocupação nos dias atuais por conta da tecnologia, posto que os funcionários que trabalham nos hospitais devem ter o máximo de cuidado com as informações dos pacientes contidas em computadores, como asseveram:
“Otro problema es el desarrolo de la informática en el ejercicio de la medicina; con ella lós datos del paciente deben ser conocidos por muchas personas pudiendo ser revelados fácilmente. Cualquier historia o dato de laboratório puede ser consultado, desde una pantalha de computadora por cualquier persona. (2003, p. 107).”
Assim é que, para tanto ainda permanece em vigor a Resolução do CFM nº 1.331/89 em consonância com procedimento da microfilmagem que está autorizado pela Lei nº 5.433, de 8 de maio de 1968, e pelo Decreto nº 1.799, de 30 de janeiro de 1996, que a regulamenta. É de elevada importância a leitura do Parecer 12, n. PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 1.401/2002 PC/CFM/Nº 30/2002, vejamos a Ementa:
“EMENTA: Os prontuários elaborados em meio eletrônico poderão assim permanecer, bem como os novos a serem criados, desde que obedeçam ao disposto em resolução específica do CFM. Os prontuários médicos atualmente existentes em papel somente podem ser destruídos após serem microfilmados observados os trâmites legais. As unidades de saúde deverão constituir Comissão Permanente de Avaliação de Documentos e Comissão de Revisão de Prontuários.
Num ambiente mais restrito, como o hospital, onde há a circulação interna do prontuário eletrônico sem transmissão dos dados via Internet, os sistemas de segurança presentes nos bancos de dados são suficientes para a preservação do sigilo. É óbvio que cuidados devem ser tomados para preservar a integridade dos dados. No entanto, se forem observadas com rigor as normas técnicas dos sistemas para guarda e manuseio, certamente teremos níveis de segurança tão ou mais eficientes do que aqueles utilizados para a preservação dos prontuários em papel.”
A bem da verdade, o assunto abordado, já era tema de preocupação por aqui, conforme demonstra o longo parecer.