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Repetição de indébito no direito civil e no direito do consumidor

Agenda 09/09/2019 às 10:58

O ARTIGO DISCUTE SOBRE O TEMA DA REPETIÇÃO DE INDÉBITO.

REPETIÇÃO DE INDÉBITO NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO DO CONSUMIDOR
Rogério Tadeu Romano

I – A MATÉRIA NO ÂMBITO CIVIL

Observe-se o artigo 940 do Código Civil:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

Art. 941. As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.

Nesse caso, a simples propositura da medida representa justificativa suficiente para amparar a procedência do pedido de repetição, em dobro, a ser formulada mediante reconvenção ou pedido contraposto, conforme o rito.

Ressalva-se, contudo, a ponderação da Súmula nº 159, do STF que impede a aplicação dessa penalidade, se houver boa-fé do pretenso credor.

Fala-se quanto a Súmula 159 do STF:

“Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art.1531 do Código Civil”
Sabe-se que aquele artigo 1531 do Código Civil de 1916 quis atingir aquele que pediu mais do que for devido. Na lição de Clóvis Beviláqua(Comentários, v. 5/240), é outra pena civil imposta ao que tenha tentado extorquir o alheio, sob color de cobrar dívidas.

Washington de Barros Monteiro(Curso de direito civil, v. 5/432), analisando aquele dispositivo, assinalou que, sem prova de má-fé da parte do credor, que faz a cobrança excessiva, não se comina a referida penalidade. A pena é tão grande e tão desproporcionada que só mesmo diante de prova inconcussa e irrefragável de dolo deve ser aplicada.

Aliás, a jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal não discrepava dessa orientação.

Observe-se o que se disse no RE 3.755, Relator ministro Waldemar Falcão(Otávio Kelly, Interpretação do Código Civil no STF, v. 2º/115): “Os casos de plus petitionibus têm sido considerados como aspecto de ato ilícito, pelo que a jurisprudência se orienta no sentido de somente reconhecer legitimidade a aplicação da penalidade do art. 1531 do Código Civil se provado o dolo, a má-fé ou culpa grave da parte do credor que reclama, judicialmente, dívida paga”.
Outro acórdão da lavra do ministro Laudo de Camargo: “Não há lugar para a aplicação do artigo 1.531 do Código Civil quando a parte procede por equívoco, e não por malícia”(Prado Kelly, ob. Cit., pág. 116) (RE 79.558, RTJ 86/515).

Mas, nem sempre o pagamento indevido é repetível. A lei atende a que a razão de equidade é que inspira a restituição. Portanto, onde falta esse fundamento descabe a repetição. Às vezes, é certo, a equidade mesma é que alicerça a obrigação do solvens; outras vezes é a sua conduta que ressai incompatível com qualquer proteção, e, por isso, a repele; outras ainda, é a situação jurídica do accipiens que a desaconselha.

Como ensinou Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de direito civil, 1976, pág. 261), neste último caso, inscreve-se o recebimento que o credor faz por conta da dívida verdadeira e, embora seja indevido, inutiliza o credor o título ou deixa prescrever a pretensão e a ação, ou abre mão de garantias que asseguravam o seu direito, como anotou o ministro Orozimbo Nonato(Curso de obrigações, segunda parte, II, pág. 227). Em tal situação, a restituição do indébito teria por efeito tirar de um para dar a outro: ao que paga a repetição serviria como técnica de impedir o enriquecimento indevido, mas em sentido oposto, a restitutio importa para o acipiente na perda de uma situação jurídica existente, já que, em consequência do recebimento, a inutilização do título, ou a prescrição do direito, ou a renúncia às garantias criará um empobrecimento, de que o devedor lucraria indevidamente entre a veracidade do débito e o pagamento indevido, de vez que o erro do solvens pode levá-lo a efetuar prestação que lhe não caberia, porém a outra pessoa, e, então, ocorre que o credor, ao receber, quita obrigação existente, ao mesmo passo que o solvens, ao pagar presta o que lhe não teria cabido fazer. A restituição do pagamento seria em detrimento do credor, que não pode sofrer as consequências do procedimento descuidado daquele que lhe pagou.

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É ainda insuscetível de repetição o pagamento quando realizado com a finalidade ilícita, imoral ou ilegal.

Aquele que solve dívida prescrita, não pode repetir o pagamento. O débito é considerado verdadeiro, mas a inércia do credor deixou que ele se desguarnecesse do véu protetor, e, por isso, tornou-se inexigível. O devedor, ao solvê-lo, nem incide em erro quanto à existência da obrigação nem se engana quanto ao seu objeto. A obrigação, juridicamente não reclamável, moralmente sobrevive.

Da mesma forma equipara-se a solução de dívida prescrita o cumprimento de obrigação natural.

II – A MATÉRIA NO ÂMBITO DO DIREITO DO CONSUMIDOR

Da mesma sorte, a matéria encontra tratamento no Código de Defesa do Consumidor(CDC).

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qual tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Nesse contexto, em se tratando de relação de consumo, prescinde de ser judicial a cobrança, para aplicação da repetição da quantia em dobro, em favor do consumidor.

A esse respeito, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin(Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 395/397) destaca que, no CDC, "usa-se aqui o verbo cobrar, enquanto o CC refere-se a demandar. Por conseguinte, a sanção, no caso da lei especial, aplica-se sempre que o fornecedor (direta ou indiretamente) cobrar e receber, extrajudicialmente, quantia indevida".
De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a empresa só não deverá pagar em dobro se tratar-se de engano justificável, se não houver má-fé ou culpa na conduta do fornecedor. Um exemplo seria o caso de culpa exclusiva de terceiros.

Apesar da análise da cobrança indevida ser objetiva, a forma que o fornecedor poderá se eximir da repetição de indébito em dobro, é quando houver a incidência de elementos alheios à sua vontade, que tornem a cobrança indevida fato inevitável. Assim, o caso fortuito e a força maior são elementos “justificáveis” para a não incidência da repetição de indébito no caso de cobrança indevida pelo fornecedor, ou seja, deve ter ocorrido um fator externo à esfera de controle do fornecedor (caso fortuito ou força maior), para que o engano (engano contratual, diga-se de passagem) seja justificável.

Deve-se tomar cuidado para não confundir a sanção imposta pelo Código Civil com aquela prevista no art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, tema sobre o qual Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin lecionam:

“A sanção do art. 42, parágrafo único, dirige-se tão somente àquelas cobranças que não têm o múnus do juiz a presidi-las. Daí que, em sendo proposta ação visando a cobrança do devido, mesmo que se trate de dívida de consumo, não mais é aplicável o citado dispositivo, mas, sim, não custa repetir, o Código Civil.

No sistema do Código Civil, a sanção só tem lugar quando a cobrança é judicial, ou seja, pune-se aquele que movimenta a máquina judiciária injustificadamente” (In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.395).

Mas qual a teoria a adotar: subjetivista, com prova de culpa, ou objetivista, sem prova de culpa:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/1973. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. COBRANÇA INDEVIDA. ENERGIA ELÉTRICA. PRAZO PRESCRICIONAL. DECENAL. DEVER DE INFORMAÇÃO. VERIFICAÇÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. CONSUMIDOR. TEORIA FINALISTA MITIGADA. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. COMPROVAÇÃO DE MÁ-FÉ. SÚMULA 7/STJ. 1. Quanto à tese de contrariedade ao art. 535 do CPC/1973, a parte recorrente não logrou êxito em demonstrar objetivamente os pontos omitidos pelo acórdão recorrido, individualizando o erro, a obscuridade, a contradição ou a omissão supostamente ocorrida, bem como sua relevância para a solução da controvérsia apresentada nos autos, o que atrai a incidência da Súmula 284/STF. 2. A Primeira Seção desta Corte, no julgamento do REsp 1.113.403/RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 15/9/2009, submetido à sistemática do art. 543-C do CPC, firmou o entendimento de que se aplica o prazo prescricional estabelecido pela regra geral do Código Civil - a dizer, de vinte anos, na forma estabelecida no art. 177 do Código Civil de 1916, ou de dez anos, de acordo com o previsto no art. 205 do Código Civil de 2002 - às ações que tenham por objeto a repetição de indébito de tarifa ou preço público, na qual se enquadra o serviço de fornecimento de energia elétrica e água. 3.Desconstituir a assertiva do Tribunal de origem de que a concessionária de energia não cumpriu com o seu dever de informação para com a empresa recorrida demanda o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado na via eleita ante o óbice da Súmula 7/STJ. 4. A jurisprudência desta Corte entende que se aplica a teoria finalista de forma mitigada, permitindo-se a incidência do CDC nos casos em que a parte, embora não seja destinatária final do produto ou serviço, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor. 5. Consoante a jurisprudência do STJ, é cabível a devolução em dobro de valores indevidamente cobrados a título de tarifa de água e esgoto, nos termos do art. 42, parágrafo único, do CDC, salvo comprovação de engano justificável. Entretanto, a verificação da presença de tal requisito enseja o revolvimento de matéria fático-probatória, o que é inviável em recurso especial devido ao óbice da Súmula 7/STJ. 6. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1250347/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/08/2017, DJe 21/08/2017).

Esse entendimento, porém, não é sustentado por toda a jurisprudência, como se pode observar do seguinte julgado.

AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. MONTEPIO CONVERTIDO EM SEGURO DE VIDA. PAGAMENTO INDEVIDO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MÁ-FÉ. HIPÓTESE, NO CASO, DE INDÉBITO SIMPLES. DECISÃO MANTIDA. 1. A repetição do indébito prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC somente é devida quando comprovada a má-fé do fornecedor; em não comprovada a má-fé, é devida a restituição simples. Precedentes do STJ. 2. No caso, não comprovada a má-fé, deve ser reformado o acórdão para afastar o indébito em dobro, mantido na modalidade simples. 3. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no REsp 1316734/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/05/2017, DJe 19/05/2017).

Aguardemos, nesse último ponto, uma definição cediça do STJ com relação a matéria.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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