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O incidente de uniformização de jurisprudência após a Lei n. 13.467/2017:

estudo sobre a subsistência do instituto no processo do trabalho

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Agenda 11/09/2019 às 13:13

1  PRECEDENTE E JURISPRUDÊNCIA

 1.1  DEFINIÇÃO

O precedente, conforme ensina Marinoni, é um dado autônomo, independente, que figura como exemplo a ser seguido. O precedente pode ser revogado, bastando um novo precedente com motivos diferentes para que isso ocorra. O precedente não necessariamente respeita os costumes, fonte primária do direito, mas é fortalecido por estes[1].

 Entende Marinoni que o precedente representa uma decisão judicial, cuja própria natureza preenche as características acima. Para o autor, o precedente não necessariamente deve ter caráter vinculante. Um exemplo disso são os precedentes proferidos no Brasil, cuja observância, na maioria dos casos, é facultada ao julgador[2].

Para Hans Kelsen[3], o precedente judicial é sinônimo de decisão vinculante, de modo que as outras decisões sem o mesmo efeito não poderiam ser assim denominadas. Já Fredie Didier, com definição formulada sob a ótica da Lei nº 13.105/2015, define precedente da seguinte maneira:

Em sentido lato, o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. O precedente é composto pelas: a) circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; b) tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório. c) argumentação jurídica em torno da questão. Na verdade, em sentido estrito, o precedente pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi.[4]

Nesta linha, o precedente enquanto norma representa uma regra, um fundamento normativo de solução de um caso, produzido pelo julgamento de um caso concreto e aplicável por subsunção a outros casos com as mesmas circunstâncias fáticas que fundamentam a controvérsia.[5]

A jurisprudência, ensina Miguel Reale, deve ser compreendida como uma forma de revelação do Direito, que se processa por meio do exercício da jurisdição e firma-se pelas reiteradas e sucessivas decisões igualmente compartilhadas pelos tribunais.[6]

Alice Monteiro de Barros, sobre a origem etimológica, acrescenta que a jurisprudência está “vinculada ao termo ‘prudência’, como virtude intelectual dirigida para a prática, para a ação honesta, leal e justa, entre os romanos, a jurisprudência representou a grande força criadora da ordem jurídica.”.[7]

Nesta toada, Venosa acrescenta em suas lições introdutórias que:

O substantivo jurisprudência é um coletivo. Significa, modernamente, um conjunto de decisões dos tribunais. Desse modo, não há que se entender que um acórdão ou uma sentença seja jurisprudência; fazem sim parte da jurisprudência. Cuida-se do direito vivo; da resposta que os juízes e tribunais superiores dão às quesilhas que atormentam a nação. Fenômeno absolutamente dinâmico como a sociedade, os vários institutos jurídicos trazem respostas diversas nos vários períodos da história.[8]

Nesses moldes, trata-se de importante instituto jurídico que se define como o conjunto de decisões reiteradas dos tribunais acerca de determinado tema e que manifestam mesmo entendimento. Trata-se, portanto, de fonte do Direito que está em constante modificação, segundo a doutrina acima, amoldando-se às necessidades da sociedade.

Este aspecto dinâmico e flexível da jurisprudência, também é ressaltado pela doutrina inglesa. A exemplo disso, Lorde Leslie Scarman, ao ressaltar a relevância da jurisprudência, ensina que “essa flexibilidade faz parte do segredo da sobrevivência do nosso Direito”.[9]

Isto é, a interpretação conferida pelos tribunais brasileiros à legislação, determinando o alcance, abrangência e sentido da norma jurídica, impede que o direito expressamente consagrado se torne defasado.

Assim, pelos mais diversos ensinamentos que a doutrina traz acerca desta temática, a jurisprudência se caracteriza por sua especificidade ao caso concreto, pela aplicação do entendimento jurídico de modo particularizado, tomando como base os princípios gerais do Direito.[10]

Neste sentido, a jurisprudência ganha relevo e se destaca na promoção da eficácia da tutela jurisdicional por sua capacidade de amoldar-se ao caso concreto, renovando-se quando necessário, reinventando-se, transformando-se sempre de acordo com o ritmo da sociedade.

Logo, na tentativa de vencer a engessada e inflexível legislação própria do Direito positivo, fonte primária do Direito, conforme entende parte majoritária da doutrina, a jurisprudência intenta alçar voo na mesma velocidade de transmutação axiológica do volátil organismo social atual, seguindo suas modificações.

Com efeito, esta característica tão peculiar da jurisprudência é o que a distingue das demais fontes do Direito, e produz, notadamente, um modelo de aplicação do Direito mais próximo das particularidades dos casos sub judice. Acerca desta concepção destacam-se as lições de Miguel Reale:

Os juízes são chamados a aplicar o Direito aos casos concretos, a dirimir conflitos que surgem entre indivíduos e grupos; para aplicar o Direito, o juiz deve, evidentemente, realizar um trabalho prévio de interpretação das normas jurídicas, que nem sempre são suscetíveis de uma única apreensão intelectual. Enquanto que as leis físico-matemáticas têm um rigor e uma estrutura que não dão lugar a interpretações conflitantes, as leis jurídicas, ao contrário, são momento da vida que se integram na experiência humana e que, a todo instante, exigem um esforço de superamento de entendimentos contrastantes, para que possam ser aplicadas em consonância com as exigências da Sociedade.[11] 

Tem-se, pois, que a jurisprudência se define como instituto jurídico específico, eis que se amolda a cada caso concreto, tratando-se, assim, de entendimento jurídico aplicado de forma particularizada, que se renova, que se reinventa e se transforma.  

1.2  A JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DO DIREITO 

A jurisprudência dá origem ao Direito no momento em que, não raro sob inspiração da doutrina, atualiza o sentido possível da lei, amoldando esta as circunstancias e contingências do caso concreto. No caso de lacunas ou quando o juiz é autorizado a agir por equidade, esta função reveladora do direito exercida pela jurisprudência, torna-se ainda mais evidente[12].

Venosa, por sua vez, entende que a jurisprudência é fonte subsidiária do Direito, mas possui papel fundamental na produção do Direito. Por conta disto, os julgados formadores de jurisprudência não possuem força vinculativa, salvo as súmulas vinculantes, o que, para o autor, afasta a definição de tratar-se de fonte primária[13].

Na seara trabalhista, Leite diverge da doutrina geral acima e, ao contrário, assevera que a jurisprudência se localiza entre as denominadas fontes primárias do Direito, juntamente com os costumes e a doutrina. Afirma o autor:

Se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar a jurisprudência a categoria de fonte do direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser ‘de direito’ no caso concreto. O magistrado, em suma, interpreta a norma legal situada numa ‘estrutura de poder’, que lhe confere competência para converter em sentença, que é uma norma particular, o seu entendimento da lei.[14]

Neste particular ramo do Direito, observa-se que a legislação de regência já cuidou de observar a jurisprudência como fonte do Direito, mesmo que de forma subsidiária, conforme se lê do caput do art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, o qual não foi objeto de alteração pela Lei nº 13.467/2017 (esta lei apenas alterou os parágrafos deste artigo). Isto é, houve uma recepção expressa pela legislação trabalhista da tese de que a jurisprudência é fonte subsidiária, secundária, ou supletiva do direito[15].

Aurora Tomazini de Carvalho, em sentido contrário, entende por jurisprudência como “o conjunto de decisões judiciais uniformes, emanadas por um tribunal. A jurisprudência é resultado da atividade jurisdicional, ou seja, de um processo enunciativo realizado pelo Poder Judiciário. Não é fonte do Direito, ela é o Direito”.[16]

E, nos seguintes termos, a mesma autora explica os motivos que afastam a jurisprudência da definição de fonte do direito: 

Quando, por exemplo, um advogado cita determinada jurisprudência em sua petição inicial ou contestação, faz para tentar convencer o magistrado. Este, porém, não fica obrigado a decidir o caso de acordo com o julgado, que somente será aproveitado para fins de convencimento. Da mesma forma, muitas vezes a fundamentação das decisões judiciais trazem transcrições jurisprudenciais, o que demonstra que o juiz utilizou-se da jurisprudência para justificar seu convencimento sobre o caso. Em ambas as situações, a jurisprudência, por si só, não cria direito algum, apenas influi na decisão do magistrado na produção da norma individual e concreta (enunciação). Pode ser entendida, assim, como fonte psicológica do direito, mas não jurídica.[17 

Notadamente, o reconhecimento da jurisprudência como fonte do Direito não é uníssono na doutrina, conforme se percebe pelos divergentes entendimentos acima delineados. No Direito do Trabalho a divergência no sentido de considerar ou não a jurisprudência como fonte formal do Direito persiste.[18]

Mas acerca do dissenso acima delineado, Gustavo Filipe Barbosa Garcia, indica que a posição prevalente é a de considerar a jurisprudência como fonte do Direito. Afirma, inclusive, que “O juiz não é mero aplicador de regras postas, não se podendo negar o seu papel criador.”[19]

Para Maurício Godinho Delgado:

Jurisprudência traduz a reiterada interpretação conferida pelos tribunais às normas jurídicas, a partir dos casos concretos colocados a seu exame jurisdicional. Trata-se da conduta normativa uniforme adotada pelos tribunais em face de semelhantes situações fáticas trazidas a seu exame. Segundo a conceituação clássica, consubstancia a autoridade das coisas decididas similarmente em juízo (autorictas rerum similiter judicatorum).[20] 

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No ramo juslaboral, a jurisprudência também exerce papel de grande importância, mas, assim como nas demais searas do direito, não pode ser considerada como fonte do direito processual do trabalho. Isto porque, não se configura como regra obrigatória, mas apenas o entendimento dominante dos tribunais quanto a interpretação e aplicação da lei, assim como para supressão de eventuais lacunas.[21]

Venosa baliza que não se pode esquecer do real papel dos juízes, qual seja o de dizer o direito e não de cria-lo, devendo o julgador colocar-se na posição de intérprete e não de legislador.[22]

Nesta esteira: 

Os juízes devem ser guardiões da lei e o seu papel consiste, conforme assinala Bacon, em ius dicere e não em ius dare, isto é, a sua função é a de interpretar o Direito e não de cria-lo. Esta opinião não exclui a contribuição da jurisprudência para o progresso da vida jurídica, nem transforma os juízes em autômatos, com a missão de encaixar as regras jurídicas aos casos concretos. É através dela que se revelam as virtudes e as falhas do ordenamento.[23]

Assim, conquanto a jurisprudência na qualidade de fonte do Direito revele papel fundamental à prestação de uma tutela jurisdicional eficaz e justa, esta deve ser constituída com cautela e dentro dos limites hermenêuticos de subsunção do fato à norma. Insta frisar, ainda, que tão somente em caso de lacunas e, com estas, na ausência de norma análoga, poderá o julgador aplicar os princípios gerais do Direito, ainda assim, sem incorrer em normatização, sob pena de usurpar a qualidade típica do Poder Legislativo.  

1.3 JURISDIÇÃO DO CIVIL LAW E DO COMMON LAW

A partir do constante e sistemático estudo do Direito Comparado iniciado no século XX, foi possível o descobrimento de diversos sistemas jurídicos ou famílias jurídicas[24] (conforme adotado por Silvio de Salvo Venosa), dos quais o sistema do civil law e o do common law são os mais relevantes.[25]

Estas relevantes tradições nasceram em circunstâncias políticas, culturais, econômicas e sociais diferentes, razão pela qual cada um destes sistemas ganhou tradição, institutos e conceitos próprios.[26] Quanto a estes traços que distinguem estas tradições, Miguel Reale estabelece que:

Temos, pois, dois grandes sistemas de Direito no mundo ocidental, correspondentes a duas experiências culturais distintas, resultantes de múltiplos fatores, sobretudo de ordem histórica. O confronto entre um e outro sistema tem sido extremamente fecundo, inclusive por demonstrar que, nessa matéria, o que prevalece para explicar o primado desta ou daquela fonte do direito, não são razões abstratas de ordem lógica, mas apenas motivos de natureza social e histórica.[27]

Com efeito, cada um destes sistemas possui fontes próprias do Direito e valorização específica destas fontes. Significa dizer, portanto, que o valor atribuído à lei e aos precedentes dependerá se estas fontes estão inseridas no sistema romano-germânico ou no sistema anglo-saxão.

O civil law, também conhecido como sistema romano-germânico, dada a sua origem romana e predominância na Europa[28], preponderou definitivamente após a Revolução Francesa. Este sistema declaradamente adotado pelo Brasil[29] e de influência positivista[30], encontra fundamento nuclear no respeito estrito à norma produzida pelo processo legislativo[31].

Os juízes anteriores à revolução francesa, membros do judiciário francês, ficaram conhecidos na história do direito como julgadores sem compromisso com a justiça e que pretendiam apenas o favorecimento das classes privilegiadas. Isto ocorria porque nesta época os cargos de magistrados eram herdados ou comprados, daí o viés espúrio que contaminava os julgamentos[32].

Diante da situação precária e da ausência de isenção do judiciário francês, as teorias de Montesquieu passaram a ser adotadas, o que se concretizou com a aplicação da separação dos poderes (teoria desenvolvida na obra “o espirito das leis”)[33] e, por consequência, a clara delimitação das atividades do legislativo e do judiciário. Fora isso, “Tornou-se imprescindível limitar a atividade do judiciário, subordinando-o de forma rígida ao Parlamento, cujos habitantes deveriam representar os anseios do povo.”[34].

Esta escola, dedicada a completude normativa do ordenamento jurídico, conhecida como escola da exegese e pelo lema “le juge est la bouche de la loi” (o juiz é a boca da lei[35]), propunha que os julgamentos não poderiam produzir direitos novos, mas apenas a afirmar o que já havia sido estabelecido pelo legislativo.

Este sistema jurídico, nascido na necessidade de reduzir a ausência de isenção dos juízes europeus, produziu influência em diversos países. Em relação à influência produzida pelo sistema romano-germânico sobre as nações, estabelece Paulo Bessa que:

O sistema romano-germânico é predominante em toda a Europa Continental, influenciando mesmo os países do Leste Europeu, a América Latina, países da Africa de colonização francesa ou portuguesa, chegando até a Asia. Mesmo na América do Norte, constata-se a força do Direito de Tradição romana.[36]

Em relação à origem do ordenamento jurídico de tradição romana, leciona Miguel Reale:

A tradição latina ou continental (civil law) acentuou-se especialmente após a Revolução Francesa, quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da Nação, da vontade geral, tal como verificamos na obra de Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social.[37]  

Ensina Silvio de Salvo Venosa que “No sistema romanista, a lei prepondera como o centro gravitador do Direito.”[38] Neste sentido, em referência a Guido Fernando Silva Soares, acrescenta que quanto ao método, o civil law tem a lei como fonte primaria e, subsidiariamente, a jurisprudência.[39] 

Neste sistema de jurisdição, o comando normativo abstrato e geral é interpretado diante do caso concreto, sendo a lei o primeiro objeto de exame do julgador. Por isso, no civil law as decisões judiciais não têm o condão de gerar eficácia vinculante, já que apenas a lei pode obrigar o julgador.

O Brasil, conquanto adote o sistema do civil law, admite a utilização dos usos e costumes como fonte do Direito por expressa previsão do art. 4º, do Decreto-Lei nº 4.657/42[40], “mas somente nas hipóteses em que a lei permitir expressamente ou for omissa no tratamento de determinada questão”[41].

Conclui-se, portanto, que no civil law os precedentes possuem papel secundário e de orientação interpretativa da norma ou do caso concreto, de modo que o julgador não é obrigado a seguir as diretrizes dos precedentes.

O sistema anglo-saxão ou anglo-americano, conforme referido por Miguel Reale[42] e Paulo Bessa[43], possui origem inglesa, tradicional de países como a Austrália, Nova Zelândia, Índia, Quênia e Inglaterra. Venosa, em menção a Guido Fernando Silva Soares, estabelece que a lei é apreciada como mais uma dentre as fontes do Direito, sendo que os cases constituem a fonte primária do Direito[44].

Este sistema se manifesta pela utilização maior dos usos e costumes e pela jurisprudência que pela observância do cumprimento as normas produzidas pelo processo legislativo. Isto é, nas palavras de Miguel Reale, caracteriza-se por um sistema costumeiro e jurisprudencial.[45] Alice Monteiro de Barros ensina que “No sistema anglo-saxônico o Direito está calcado em precedentes judiciais e costumes fixados pelos órgãos judiciários superiores, os quais vinculam as instâncias inferiores.”[46].

Luiz Guilherme Marinoni esclarece que o common law também possui intensa produção legislativa e que este não é o fator principal a diferencia-lo do sistema romano-germânico. O fator de distinção entre os sistemas, na verdade, é “o significado que se atribui aos códigos e à função que o juiz exercia ao considera-los”[47].

No sistema anglo-saxão, os códigos não têm a pretensão de esgotar as matérias de modo a abranger todas as regras capazes de solucionar os casos conflituosos. Ao contrário do civil law, nunca se pretendeu negar ao juiz a interpretação da lei.[48]

Ao asseverar o respeito aos precedentes como característica marcante do sistema anglo-saxão, declara Silvio de Salvo Venosa que “Não há que se entender que esse sistema inglês seja costumeiro, na acepção estrita da palavra, mas jurisprudencial, baseado em cases.”[49] Nada obstante, acrescenta que:

O isolamento inglês com relação à cultura continental, em particular ao movimento de codificação que grassou na Europa no final do século XVIII e século XIX, contribuiu para manter o Common Law fiel às suas origens, ao seu esquema de precedentes, no qual a lei não impera de forma soberana, mas sempre é colocada em paralelo com a jurisprudência. A própria constituição norte-americana assume um papel diverso nesse sistema jurídico, figurando como um superpoder de controle por parte dos juízes com relação ao Congresso, isto é, sobre a legislação (Monateri, 2002: 394). Nesse diapasão, o juiz inglês ou norte-americano produz, descobre, elabora o Direito, independentemente da obra do legislador, que pode apenas concorrer para sua convicção não sendo a lei seu ponto central de raciocínio.[50]

O precedente judicial, desta forma, se mostra mais relevante para a prolação de decisões no sistema inglês, haja vista que estabelece regra a ser seguida nos casos posteriores que guardem relação de identidade fática com aquele que produziu o precedente. Nesta linha, Paulo Bessa ensina que:

A legal rule é predominantemente casuística, adequada a cada caso concreto. Nâo possui fonte legislativa, sua fonte mais direta é a própria atuação dos juízes, em cada processo. Portanto, o chamado precedente judicial adquire uma importância imensa dentro do sistema inglês. É o precedente que norteará a decisão do órgão jurisdicional, embora sem vincula-lo.[51]

Aspecto marcante do common law é que este adota a teoria do stare decisis, derivada do brocardo jurídico “stare decisis et non quieta movere”, traduzida pela doutrina como “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido”[52].

Importante registrar que a teoria enfocada não se confunde com a jurisdição do common law. Este, conforme já explicitado, se refere a tradição jurídica dos costumes gerais, nascida séculos antes de se cogitar a existência de institutos como o stare decisis.[53]

Esta teoria que, atualmente, relaciona-se de forma íntima com o common law, propõe a estabilidade e coerência das decisões judicias, de modo a estabelecer vinculação, seja vertical ou horizontal, entre o precedente formado e as decisões que serão proferidas dentro da estrutura do órgão julgador ou da hierarquia entre estes órgãos[54].

A vinculação horizontal caracteriza-se pela observância da jurisprudência no âmbito de um mesmo órgão judicante, já a vinculação vertical se manifesta pela obediência das instâncias inferiores aos precedentes formados pela instância superior.

Enquanto no sistema romanista a tarefa de estabelecer os princípios, regras e valores está nas mãos do legislador, no sistema anglo-saxão esta tarefa cabe às decisões judiciais.[55]

Nesta toada, Nora Magnólia Costa Rotondaro[56] exemplifica que a Suprema Corte dos Estados Unidos, Estado de jurisdição common law, desempenha atividade legislativa, mesmo que indiretamente, quando ocorre o efeito vinculante para as decisões dos tribunais e juízes inferiores.[57]  

1.4  OS PRECEDENTES NO BRASIL. APROXIMAÇÃO DAS JURISDIÇÕES DO CIVIL LAW E DO COMMON LAW.

 O sistema jurídico brasileiro, embora possua raízes no sistema romanista (civil law) e tenha construído seu ordenamento jurídico sobre esta estrutura jurisdicional, tem sido influenciado paulatinamente pelo sistema anglo-saxão (common law), caracterizado pela observância das razões de decidir (ratio decidendi) de seus tribunais.

Desde longa data, a forte influência do civil law, oriundo da família romano-germânica e que reconhece destacado papel às normas legisladas, escritas, e coloca em um segundo plano inferior outras fontes de direito. Por outro lado, surge no sistema nacional cada vez mais nítida a aproximação do sistema civil law do common law, este de tradição anglo-saxônica, que foi criado pelos próprios juízes para solucionar alguns litígios e baseia-se em ‘leis costumeiras e não escritas da Inglaterra, que se desenvolveu a partir da doutrina do precedente’, pelas decisões dos tribunais.[58] 

Com o passar do tempo, portanto, o Brasil tem atribuído força vinculante às decisões judiciais. Observa-se esta gradativa transformação pela confecção e observância de súmulas, orientações jurisprudenciais e instruções normativas pelos tribunais, pelas referências presentes nas decisões a casos semelhantes que foram examinados pelo Poder Judiciário e pela produção de normas jurídicas pelo Poder Legislativo, no sentido de conferir força vinculante aos precedentes.[59]

Acerca desta confluência das tradições, o voto do Ministro Teori Zavaski, no julgamento do RLC 4.335/AC, traduz comprovação do entendimento existente no Supremo Tribunal Federal sobre o tema:

Não se pode deixar de ter presente, como cenário de fundo indispensável à discussão aqui travada, a evolução do direito brasileiro em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribui, cada vez com mais intensidade, força persuasiva e expansiva em relação aos demais processos análogos. Nesse ponto, o Brasil está acompanhando um movimento semelhante ao que também ocorre em diversos outros países que adotam o sistema da civil law, que vêm se aproximando, paulatinamente, do que se poderia denominar de cultura do stare decisis, própria do sistema da common law. A doutrina tem registrado esse fenômeno, que ocorre não apenas em relação ao controle de constitucionalidade, mas também nas demais áreas de intervenção dos tribunais superiores, a significar que a aproximação entre os dois grandes sistemas de direito (civil law e common law) é fenômeno em vias de franca generalização.”[60]

Ressalta-se que, em regra, os enunciados normativos (súmulas, OJ’s, etc) produzidos no Brasil, não possuem caráter vinculante. Contudo, por si só, o fato de os tribunais se preocuparem em uniformizar sua jurisprudência por meio da edição destes enunciados, os quais podem ser utilizados como razão de decidir pelo julgador de base[61], já evidencia uma aproximação das jurisdições sob exame.

Esta tendência de adoção dos precedentes judiciais tem se apresentado no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988[62]. É possível destacar duas características principais que conduzem a esta conclusão.

A primeira consiste na mantença pela Constituição do controle difuso de constitucionalidade, mas com a possibilidade de apreciação final pelo Supremo Tribunal Federal. O precedente produzido pelo Supremo Tribunal Federal, neste caso, poderia gerar a suspensão, pelo Senado Federal, da execução da lei declarada inconstitucional, a teor do art. 52, X, da CF/88[63].

A segunda característica marcante da Constituição de 1988 expressa-se pela expansão do controle concentrado de constitucionalidade (modalidade de controle criada por Hans Kelsen,[64] e utilizado pela primeira vez pela Constituição austríaca de 1920[65]), por meio do qual o Supremo Tribunal Federal profere decisão com efeito vinculante (erga omnes).[66]

A primeira previsão que conferiu eficácia vinculante a precedentes no Brasil decorreu da Emenda Constitucional nº 3/1993, que alterou a redação do § 2º, do art. 102, da Constituição Federal[67]. Este dispositivo foi alterado posteriormente com a aprovação da EC nº 45/2004, conhecida como a reforma do Judiciário. Dentre as diversas inovações promovidas pela emenda encontra-se a alteração do § 2º do art. 102 da Constituição Federal. Assim passou a constar do texto constitucional:  

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.[68]  

Não se pode olvidar que o Código de Processo Civil de 1973 já previa mecanismos de uniformização de jurisprudência, tais como o incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476, do CPC/1973)[69], mas naqueles procedimentos não se podia extrair a eficácia vinculante da decisão que se produzia.

Com a publicação da Lei nº 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil), a observância dos precedentes também ganhou força, já que o novo Código, além de disciplinar, por exemplo, o incidente de resolução de demandas repetitivas, estabeleceu, por meio do art. 926 do CPC, a obrigação dos tribunais de uniformizar, manter estável, coerente e íntegra a jurisprudência.[70]

Revela Bezerra Leite, por meio de suas considerações quanto às fontes do Direito Processual do Trabalho, que o atual Código de Processo Civil enaltece o valor da jurisprudência e dos precedentes:  

Em outros termos, o NCPC não estabelece uma gradação das fontes normativas que o juiz poderia utilizar para colmatar lacunas, ou seja, a analogia, os costumes e, por último, os princípios gerais de direito. Isso ocorre porque os arts. 1º e 8º do NCPC, em harmonia com o fenômeno da constitucionalização do direito processual, enaltecem a supremacia dos princípios jurídicos, sobretudo os que residem na Constituição, não apenas na interpretação como também na aplicação do ordenamento jurídico. Há, assim, o rompimento com a velha ideologia do Estado Liberal em que o juiz atuava apenas como a ‘boca da lei’.[71]  

No âmbito do processo do trabalho também houve avanços em relação à valorização do precedente. Em especial quanto à determinação legal para observância dos procedimentos para elaboração de súmulas, conforme estabelecido na alteração do art. 896 da CLT, redação da Lei nº 9.756/98[72].

O dispositivo celetista foi novamente alterado pela Lei nº 13.015/2014, passando a prever, além da obrigação de uniformização de jurisprudência o respectivo incidente apto a concretiza-la[73]. Nada obstante, a Lei nº 13.467/2017 revogou o dispositivo, suprimindo a obrigação de uniformização[74].

Ademais, embora o sistema jurídico brasileiro tenha avançado muito em termos de respeitabilidade de sua jurisprudência, ainda se mostra bastante distante do respeito e valorização que é conferido ao precedente pelas nações do common law.

Em relação à ausência de caráter vinculante dos precedentes na tradição do civil law no Brasil, esclarece Adriana Vojvodic que:  

O precedente judicial acaba recebendo uma conotação de elemento auxiliar na construção do direito, apresentando um papel unicamente persuasivo na fundamentação das decisões judiciais, sem qualquer capacidade de vincular o comportamento das cortes e dos juízes em decisões semelhantes. Por possuir este caráter não essencial na conformação do direito brasileiro, pouco poderia ter dito - e exigido – sobre a aplicação de precedentes nas decisões judicias deste tribunal.[75]  

Esta característica meramente persuasiva de grande parte dos precedentes proferidos pelo Judiciário brasileiro, ressalvada a decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, acaba por permitir ao julgador que formule interpretações particulares da lei. Isto é, que julgue com base em fundamentos jurídicos distantes daqueles considerados pela instância superior.

José Roberto Freire Pimenta, embora reconheça a contribuição do modelo de mera persuasão dos enunciados, apresenta crítica a este sistema, principalmente no que concerne à atual deficiência do controle da instabilidade das decisões judiciais.  

Embora o modelo de súmulas e orientações jurisprudenciais meramente persuasivas, pioneiramente adotado, entre nós, pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal em 1963, tenha trazido resultados positivos no sentido da aceleração e da racionalização da atividade de todos os tribunais brasileiros, mostrou-se incapaz, nos últimos anos, de evitar essa instabilidade da jurisprudência em relação aos processos repetitivos, provocando o tratamento desigual a litigantes em situação jurídica essencialmente igual e atuando como mecanismo de retroalimentação e de perenização do ajuizamento de novas demandas com esse mesmo objeto[76].  

O modelo meramente persuasivo dos julgamentos mostrou-se insuficiente aos olhos da doutrina e da jurisprudência, haja vista a pouca estabilidade jurisprudencial que oferecia. Neste sentido, ensinam Tatiana Denczuk e Lucas Petry:  

As decisões judiciais no Brasil – e nos países de civil law em geral – guardam pouco grau de estabilidade, variando constantemente de sentido na resolução de casos idênticos. No dia a dia forense, é possível constatar, sem muita dificuldade, a existência de decisões judiciais conflitantes entre si, estabelecidas com sentidos opostos para a resolução de casos que possuem a mesma hipótese fática.[77]  

Mormente a legislação tenha se alterado no sentido de aproximar o sistema de precedentes próprio do common law do sistema romanista adotado pelo Brasil, conforme se extrai do avanço legislativo detalhado acima, as decisões proferidas pelas cortes brasileiras, em especial aquelas proferidas pelos juízes de piso, insistem em afastar a aplicação dos precedentes.

Isto é, a ausência de força normativa dos precedentes, própria do sistema romano-germânico, permite que o julgador construa sua interpretação dos textos normativos alinhado às suas inclinações políticas, doutrinárias, filosóficas e sociais, afastando-se dos entendimentos formulados pelas instâncias superiores.

O resultado é um variado estuário de interpretações acerca de uma mesma norma, o que acaba por produzir um cenário de insegurança jurídica, já que, a depender do juiz que apreciar o caso concreto, o resultado do julgamento será diferente.[78]

Esta característica é bastante observada em algumas sentenças proferidas pela Justiça do Trabalho. Estas que, mesmo diante de iterativa jurisprudência dos tribunais regionais e do tribunal superior, insistem em julgar de maneira contraria a estes precedentes.

Exemplo disso é a discussão doutrinária acerca da constitucionalidade do art. 384 da CLT. Este dispositivo que foi revogado pela Lei nº 13.467/2017, e que constava do Capitulo III, Da Proteção do Trabalho da Mulher, do Título III, das Normas Especiais de Tutela do Trabalho, previa a concessão de intervalo de 15 minutos antes do início da jornada suplementar de trabalho da mulher[79].

Em resumo, a divergência consistia em parte da doutrina e da jurisprudência entender constitucional o intervalo previsto no art. 384 da CLT, e outra parte entender pela inconstitucionalidade desta regra.

O Tribunal Superior do Trabalho já havia se manifestado quanto à constitucionalidade da matéria em diversas oportunidades, tal como no julgamento do recurso de revista sob nº 16949120125130004, de relatoria do Ministro Hugo Carlos Scheuermann.[80]

A controversa também foi objeto de análise pelo STF e mesmo após julgamento do recurso extraordinário sob nº 658312/SC[81], de relatoria do Ministro Dias Toffoli, em que foi declarada a constitucionalidade do dispositivo, no sentido de que apenas as mulheres teriam direito ao intervalo, diversos juízes mantiveram suas decisões, reafirmando a inconstitucionalidade do artigo, em clara desobediência ao precedente da suprema corte.

A exemplo destas decisões que desconsideram os precedentes das Cortes Superiores, cita-se a sentença proferida recentemente pelo Juiz do Trabalho de Cianorte, Dr. Rodrigo da Costa Clazer, nos autos do processo sob nº 0001928-34.2017.5.09.0092.[82] A sentença deste processo julgou improcedente o pedido da trabalhadora que pretendia o recebimento do intervalo enfocado.

Essa característica de desvinculação das decisões judicias do sistema jurídico adotado pelo Brasil é asseverada pela doutrina. Assim, leciona Adriana de Moraes Vojvodic:  

A prática corrente de um sistema de civil law nos permite uma menor referência e deferência às decisões judiciais, já que elas não se incorporam ao sistema jurídico da mesma forma como as decisões judiciais o fazem no sistema de common law.[83]  

O resultado, conforme se depreende do exemplo apresentado, consiste no comprometimento da segurança jurídica do jurisdicionado, o qual, mesmo diante da jurisprudência das Cortes Superiores, não possui nenhuma garantia do conteúdo do comando sentencial.

Esta realidade das decisões judiciais brasileiras também parece desconsiderar o princípio da isonomia, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal[84], uma vez que, nas palavras de José Roberto Freire Pimenta, faz surgir:

A possibilidade de uma mesma situação jurídica substancial regulada de modo apenas parcial pelas normas constitucionais e legais gerar, em uma enorme multiplicidade de casos concretos iguais, interpretações judiciais diversas, com resultados também diferentes para os litigantes de cada processo.[85  

Vale observar que, conquanto as decisões judiciais não gozem do caráter vinculante, o direito ao duplo grau de jurisdição, tal como garantido no ordenamento jurídico brasileiro, torna, de certa forma, sem efeito a liberdade de cognição do juiz de piso.

Isto porque, diante de uma sentença divergente da jurisprudência construída pelo tribunal, basta ao jurisdicionado a interposição do recurso cabível que devolva a matéria ao exame do segundo grau de jurisdição. Com isso, por mais que tenha o julgador de piso entendido de maneira diferente, sua decisão será reformada, adequando-a aos preceitos da jurisprudência.

Esta inobservância dos precedentes no Brasil se sustenta no princípio do livre convencimento motivado, o qual tem sofrido críticas da doutrina após a vigência do atual Código de Processo Civil. Notadamente, esta valorização da liberdade dos julgadores de piso representa o individualismo do julgador, o que provoca críticas da doutrina.

Em relação a este individualismo do juiz do civil law, assevera Luiz Guilherme Marinoni: 

Embora as decisões no sistema do civil law variem constantemente de sinal, trocando de sentido ao sabor do vento, isso deve ser visto como uma patologia ou como um equívoco que, lamentavelmente, arraigou-se em nossa cultura jurídica. Supõe-se que os juízes não devem qualquer respeito às decisões passadas, chegando-se a alegar que qualquer tentativa de vincular o juiz ao passado interferiria sobre sua liberdade de julgar.

Trata-se de mal entendido, decorrente da falta de compreensão de que a decisão é o resultado de um sistema, e não algo construído de forma individualizada por um sujeito que pode fazer valer a sua vontade sobre o próprio sistema de que faz parte. Imaginar que o juiz tem o direito de julgar sem se submeter aos precedentes das Cortes Supremas é não enxergar que o magistrado é uma peça no sistema de distribuição de justiça, e, mais que isso, que este sistema não serve a ele, porém ao cidadão.[86] 

Portanto, esta tradição que, de um lado pretende a aplicação inconteste da lei e, de outro, presa pela manifestação da livre convicção do julgador em relação à interpretação da norma jurídica, promove inúmeros julgamentos diferentes para uma mesma situação fática.

Aspecto que persegue o sistema romano-germânico projetado no Brasil, portanto, é o manejo de recursos destinados apenas à observância da jurisprudência do tribunal, o que acaba por impor, pela via recursal, o caráter vinculante dos precedentes a um sistema que nega esta qualidade das decisões judiciais.

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