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Alocação de riscos em contratos de parceria público-privada: a (expressiva) distância entre teoria e prática

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[1] Embora muitas das análises empreendidas neste estudo possam também ser pertinen­tes aos contratos de concessão comum, regidos pela Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, o artigo foi desenvolvido com escopo em contratos de PPP.

[2] Apesar de o tema da alocação de riscos estar hodiernamente associado à cláusula comu­mente denominada de matriz de riscos, o tratamento de riscos perpassa diferentes cláusu­las contratuais; citem-se, por exemplo, os riscos de extinção prematura do contrato, cujas consequências são tratadas em capítulo contratual específico. É nesse sentido mais abran­gente que o termo matriz de riscos – utilizado repetidas vezes – é adotado neste artigo.

[3] Marcos Nóbrega registra que a essência do risco “é caracterizada por três aspectos fun­damentais: o evento que significa a possível ocorrência de algo que poderia impactar o investimento; a probabilidade que significa a chance do evento de risco ocorrer em de­terminado período de tempo e, por fim, o impacto que corresponde ao valor financeiro resultante da incidência do risco”. (NÓBREGA, 2010, p. 3).

[4] Com alguma frequência, os contratos estabelecem que os riscos relativos ao caso fortui­to e à força maior são compartilhados entre as partes.

[5] Há intenso debate doutrinário acerca da possibilidade de se imputar ao privado o risco relacionado à álea extraordinária, discussão que se baseia na compulsoriedade ou não da apli­cação do art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, às PPPs. Para a de­fesa da incidência desse dispositivo às PPPs, ver Ribeiro (2016). Para a posição contrária, ver Guimarães (2013). O Tribunal de Contas da União (TCU) tem precedente adotando a pri­meira posição, tendo o ministro relator se manifestado no seguinte sentido: “Veja-se que a Lei 8.666/1993, aplicável às licitações e aos contratos para concessão de serviços públicos por força de seu art. 124, ao tratar sobre reequilíbrio econômico-financeiro, assim dispõe: ‘Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...) II - por acordo das partes: (...) d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos impre­visíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. Fica claro, portanto, que o risco não atribuível ao contratado é aquele que, genericamente, está fora da capacidade tí­pica de previsão ou gestão do particular e/ou configura álea econômica extraordinária e extracontratual. Ainda que o conceito traga luz sobre a matéria, reconheço que em muitos casos é difícil discernir sobre o que seria álea contratual ou extracontratual, configurando linha tênue e subjetiva entre os dois campos jurídicos’.” (BRASIL, 2018). Para mitigar riscos e dubiedades dessa natureza e separar de forma objetiva as responsabilidades contratuais de cada parte, é preciso aperfeiçoar a redação da regra, tornando-a mais clara, previsível, justa e eficiente, à luz dos princípios regentes da Administração Pública, amoldando-a ao disposto art. 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993. A despeito da interpretação legal, o Poder Pú­blico já vem tomando algumas iniciativas para relativizar essa alocação de riscos genérica ao concessionário. Em suas últimas concessões rodoviárias, estruturadas com apoio técnico da International Finance Corporation (IFC) no âmbito do programa SP Roads 1, a Agência de Transportes do Estado de São Paulo (Artesp), apesar de manter a lógica de alocação residual dos riscos à concessionária, aloca ao Poder Concedente a responsabilidade pelos riscos relacionados a “fatores imprevisíveis, fatores previsíveis de consequências incalculáveis, caso fortuito ou força maior que, em con­dições normais de mercado, não possam ser objeto de cobertura de seguro oferecido no Brasil e, à época da materialização do risco, este não seja segurável há pelo menos 2 (dois) anos no mercado brasileiro, por pelo menos duas empresas seguradoras, ou com relação à parcela que supere média dos valores indenizáveis por apólices normalmente praticados no mercado, independentemente de a CONCESSIONÁRIA as ter contratado, nos termos da subcláusu­la 19.1, XXVI”. Parece uma mitigação relevante à prática usual, conferindo maior razoabilidade à alocação de riscos contratual.

[6] Nesse sentido, tem-se que, “quanto mais detalhada é a matriz, menores são as possibi­lidades de se negligenciarem aspectos relevantes na correta alocação dos riscos” (ITÁLIA, 2018, p. 140 – tradução livre).

[7] Maurício Portugal Ribeiro considera que o sistema de equilíbrio econômico-financeiro tem três funções: “a) desestimular a realização de alterações oportunistas pelo governante, exigindo que qualquer alteração seja devidamente compensada; b) proteger, estabilizar e dar cumprimento ao cerne do contrato, permitindo que seja dado cumprimento adequado à matriz de riscos ao longo do tempo; c) possibilitar a realização de alterações no objeto (...) e em outros aspectos do contrato para adequá-lo às necessidades e mudanças conse­quentes da passagem do tempo” (RIBEIRO, 2011, p. 105).

[8] “Embora a legislação não detalhe o assunto de modo tão evidente, o equilíbrio econô­mico-financeiro vale igualmente em benefício do Estado e, por conseguinte, da coletivida­de de usuários do serviço público delegado. É possível conceber uma série de situações em que a equivalência inicial se quebra em desfavor do polo público” (MARRARA; SOUZA, 2016, p. 310).

[9] No entanto, ainda aqui, como já mencionado anteriormente, é possível surgir a discus­são acerca do enquadramento ou não de determinado risco como “inerente” à concessão.

 

[10] Por força do art. 21, XII, alínea “b” da Constituição Federal, os serviços de distribuição de energia elétrica são de competência da União, razão pela qual não podem constituir objeto de concessão municipal (BRASIL, [2016]).

[11] O exemplo foi retirado da minuta de contrato do projeto de PPP de iluminação pú­blica levado à consulta pública pelo município de Teresina (PI) em dezembro de 2018 (TERESINA, 2018).

[12] Tradução livre do original: “Having defined these terms, we can state the following principle of risk allocation: Each risk should be allocated, along with rights to make related decisions, so as to maximize total project value, taking account of each party’s ability to (1). Influence the corresponding risk factor. (2). Influence the sensitivity of total project value to the corresponding risk factor – for example, by anticipating or responding to the risk factor. (3). Absorb the risk”.

[13] A propósito, Yescombe (2002, p. 138) afirma categoricamente que “it is no use allocating risk to a party who cannot sustain the financial consequences if the risk materializes”.

[14] Brasil (1995, art. 9º, §3º, aplicado supletivamente às PPPs).

[15] Brasil (1995, art. 25, aplicado subsidiariamente às PPPs).

[16] Moreira (2016, p. 79) registra uma aproximação recente entre o Direito Administrati­vo e as ciências econômica e financeira: “(...) o Direito Administrativo não se preocupava com quaisquer raciocínios econômicos quando de sua aplicação. A economia e as finanças eram assuntos para economistas, financistas e contadores – mantidos do lado de fora do positivismo jurídico. Felizmente, hoje se sabe que tais questões precisam ser motivo de preocupações jurídicas”.

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[17] Entenda-se impropriedades como discrepâncias aos standards teóricos apresentados na subseção “Diretrizes teóricas para alocação de riscos”.

[18] Neste relatório, já se podem antever algumas das críticas que levaram à crise recente de credibilidade do programa. Por sua relevância, transcreve-se a seguir a conclusão do comitê sobre a análise da alocação de riscos nos contratos: “Allocating risk to the private sector is only worthwhile if it is better able to manage the risk and can pass on any subsequent savings to the client. The main benefit highlighted to us by PFI providers was the transfer of construction risk. However a PFI contract which lasts for 30 years is not necessary to transfer this risk. There are also other methods such as turnkey contracts which can be used for the same ends. We have seen evidence that PFI has not provided good value from risk transfer – in some cases inappropriate risks have been given to the private sector to manage. This has resulted in higher prices and has been inefficient. Some of the claimed risk transfer may also be illusory – the government is ultimately accountable for the delivery of public services. Therefore it would not be able to allow a number of services provided under a PFI contract to cease for any length of time”.

[19] Cite-se, como exemplo, a decisão do Conselheiro Relator do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul que suspendeu a licitação de PPP de iluminação pública do município de Venâncio Aires, seguindo recomendação da área técnica do Tribunal, “até que o Executivo Municipal demonstre novo cálculo de viabilidade, (...), além de com­provar o inciso I, alínea ‘a’, do artigo 10 da Lei Federal nº 11.079/2004, no que se refere à conveniência e oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justi­fiquem a opção pela forma de parceria público-privada e a demonstração da vantagem do projeto para a administração pública com a apresentação do Value for Money (VfM)...”. (RIO GRANDE DO SUL, 2018).

[20] Embora não seja essa a postura usual dos órgãos de controle em relação à fundamen­tação das cláusulas de alocação de riscos, como será visto adiante.

[21] Utilizou-se a expressão compartilhamento de risco específico para se referir ao trata­mento de divisão proporcional da gestão de determinado risco. Focalizando-se o conjunto dos riscos contratuais, o compartilhamento estará sempre presente.

[22] Arrisca-se dizer que há uma percepção de certos gestores, obviamente sem qualquer fundamento jurídico, de que números precisam ser justificados no processo administrati­vo com maior rigor que outras decisões não quantitativas.

[23] Como este artigo foca exclusivamente em PPPs e sua utilização pelo Governo Federal é quase nula, volta-se a presente análise essencialmente para a atuação dos órgãos de entes subnacionais.

[24] Os tribunais de contas são os órgãos de controle que assumem maior relevância em projetos de PPP.

[25] Ressalva-se, novamente, que as conclusões dos autores deste artigo não se amparam em estudos estatísticos rigorosos do universo de decisões de tribunais de contas e que, portanto, todas as conclusões e considerações esposadas devem ser lidas nesse contexto.

[26] Yescombe (2002, p. 127) registra que este não é um “mal” exclusivo dos processos de modelagens de PPPs, mas que aflige a estruturação de contratos de project finance em geral: “Insurance requirements in project finance are demanding, and as a result insurance costs are high, but this tends to be a neglected area of project development. This can lead to an underestimation of project costs because all required insurances have not been taken into account or to the financing being held up because the insurances required by the lenders are not in place” (grifos nossos).

[27] Segundo Ribeiro (2011, p. 126), afigura-se indispensável “a consulta a especialista no mercado securitário para definição do teor das exigências relativas a seguros”.

[28] Os conhecimentos necessários à estruturação de um projeto de PPP são diversos e específicos. Epec (2014, p. 7) assinala, a propósito: “The expertise commonly needed spreads over various fields such as technical, finance, legal, market/demand, tax, accounting and insurance. The “theoretical” knowledge required also needs to be complemented with practical deal-making experience in areas such as project management or contract negotiation”.

[29] Sendo o risco inversamente proporcional ao retorno, à atribuição de maior risco deve ser aumentado o retorno exigido pelo investidor.

[30] Em geral, despesas com seguros, conforme mencionado anteriormente.

[31] Cite-se um exemplo banal em que é atribuído ao parceiro privado o risco de defeitos em determinados equipamentos. Uma forma de tratar esse risco na projeção seria consi­derar que ele irá adquirir produtos de melhor qualidade ou com garantia mais extensa (e, portanto, mais caros) do que faria caso não suportasse esse risco.

[32] VfM pode significar tanto a metodologia de análise do valor gerado pelo projeto por meio da aplicação de critérios quantitativos e qualitativos quanto o resultado dessa análi­se. No decorrer do texto, utiliza-se o termo nos dois sentidos.

[33] Ver discussão relatada na nota 6.

[34] Essa maximização ampliaria a diferença entre o modelo de PPP e outras formas de contratação.

[35] A percepção que se imputou aos gestores públicos neste parágrafo parece ser, triste­mente, realista: é mais fácil ser questionado sobre os elementos específicos de determinada análise do que pela pura e simples ausência de análise.

[36] Abordando outro aspecto positivo da padronização setorial dos contratos de conces­são comum e PPP, Maurício Portugal Ribeiro ressalta que a familiaridade dos potenciais parceiros privados com as regras constantes desses padrões “facilita a compreensão e dis­cussão do projeto” (RIBEIRO, 2011, p. 79-80).

[37] É preciso deixar claro que não se está defendendo a absoluta independência entre ma­triz de riscos e obrigações contratuais. Ao contrário: a matriz de riscos deve ser construída com base no conjunto de direitos e obrigações das partes e com este deve harmonizar-se, mas merece um tratamento próprio e distinto, unificada em uma cláusula que reúna todos – e apenas – os riscos.

[38] Vêm imediatamente à mente os exemplos das PPPs do Centro Administrativo de Brasília, da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo e do Maracanã, mas, infelizmente, poderiam ser dados muitos outros exemplos.

[39] Não se ignora a existência de iniciativas estatais municipais (foi até citado um guia do município do Rio de Janeiro na segunda seção), estaduais, nacionais, supranacionais (o Banco Mundial oferece modelos de cláusulas de alocação de riscos para diferentes setores) e de demais organizações da sociedade. Entende-se, apenas, que tais iniciativas, quer no que toca à padronização de cláusulas, quer no que diz respeito a metodologias de avaliação de riscos, ainda não se tornaram uma referência “obrigatória” para os profissionais envol­vidos na estruturação de projetos: tal lugar ainda está vago.

[40] Nóbrega (2010) adverte acertadamente acerca do tamanho do desafio inerente à iden­tificação (detecção) de riscos: “Se não bastasse a dificuldade para classificar os riscos, há grandes obstáculos para a sua detecção. Em primeiro lugar, existem dificuldades cognitivas que advêm da dificuldade do tomador de decisão de discernir sobre o valor e a correspon­dente probabilidade de cada estado de natureza sobre cada possível ação. Há problemas no julgamento das probabilidades e existe uma tendência a superestimar a extensão na qual o presente foi previsível no passado (highsight bias)”.

[41] Calculado, por exemplo, como um autosseguro.

Sobre os autores
Antônio Fernando da Fonseca Martins

Advogado do BNDES, MBA em Finanças pela Faculdade de Economia e Finanças IBMEC.

Felipe Benedito Viana

Mestre em Direito Constitucional (USP). Advogado no BNDES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicado originalmente na Revista do BNDES, Rio de Janeiro, n. 51, p. [53]-100, jun. 2019

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