Introdução
A prática do nepotismo na esfera de atuação da Administração Pública é tema recorrente entre os estudiosos do Direito Público. Embora seja proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro é uma prática antiga que continua ocorrendo, ora de forma velada, ora às claras.
É nítido que a prática do nepotismo viola, flagrantemente, vários princípios constitucionais que orientam a atuação da Administração Pública, entre eles o princípio da impessoalidade, por criar privilégios em virtude das relações de parentesco, não levando em consideração a capacidade para o exercício do cargo público.
Nesse breve artigo, pretende-se discorrer sobre essa prática no âmbito da Administração Pública e como essa questão tem sido analisada pelo Supremo Tribunal Federal quando provocado para tanto.
Nepotismo: um pouco de história
A expressão “nepotismo” deriva do radical nepos (sobrinho, descendente) acrescido do sufixo ismo (prática de). Historicamente, aponta-se que o termo “designava a autoridade que os sobrinhos e outros parentes do papa exerciam na administração eclesiástica. Por extensão, hoje em dia, significa patronato ou favoritismo na nomeação dos integrantes da administração pública”[1].
Para o cientista político Norberto Bobbio (1997) o nepotismo é uma forma de corrupção: trata-se, segundo o autor, da prática de “concessão de empregos ou contratos públicos baseada não no mérito, mas nas relações de parentela[2]”.
Assim, o sentido original do vocábulo está ligado à forma de nomeação dos agentes para ocupação de cargos públicos em decorrência dos laços de parentesco. Parece claro que a nomeação de um agente para exercer funções públicas deve estar associada à garantia da isonomia, possibilitando igualdade de oportunidades a todos que preencham os requisitos para exercer a função. É evidente que a nomeação de um familiar, pela simples condição do vínculo sanguíneo, está longe de atender esse critério.
Trata-se, portanto, de prática contrária às disposições do ordenamento jurídico pátrio, por violar inúmeros princípios constitucionais e doutrinários que deveriam ser observados pelo administrador público, entre os quais podemos citar o princípio da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência e supremacia do interesse público.
Nem pense que a violação aos princípios é de menor importante que a violação à lei. Sobre esse tema, Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que a não observância ao princípio representa uma ofensa ao sistema jurídico como um todo e trata-se, portanto, da “mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais[3]”.
Com o propósito de banir, de maneira definitiva, as práticas de nepotismo do Poder Judiciário brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 07. Na Resolução, o CNJ define essa prática como “o favorecimento dos vínculos de parentesco nas relações de trabalho ou emprego. As práticas de nepotismo substituem a avaliação de mérito para o exercício da função pública pela valorização de laços de parentesco”[4].
Como o Supremo Tribunal Federal vem decidindo
Desde 2008, com a edição da Súmula Vinculante nº 13[5] pelo Supremo Tribunal Federal ficou claro que é proibida a prática de nepotismo no âmbito de qualquer dos poderes do Estado. A edição da súmula foi resultado de alguns julgados sobre essa questão, com decisões sempre nesse mesmo sentido.
O problema é que o enunciado da súmula vinculante tem causado muitas dúvidas entre os aplicadores e intérpretes do Direito, alguns compreendendo que a súmula não deve (ou não deveria) abranger a nomeação para os cargos políticos, enquanto outros defendem o entendimento contrário. Entretanto, mesmo para os que aceitam a possibilidade de indicar parentes para ocuparem tais postos, essa possibilidade não seria absoluta, devendo ser analisada no caso concreto.
Esse foi o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso em decisão monocrática proferida em 2014, ao reconhecer que “em linha de princípio, a restrição sumular não se aplica à nomeação para cargos políticos. Ressalvaria apenas as situações de inequívoca falta de razoabilidade, por ausência manifesta de qualificação técnica ou de inidoneidade moral”. O ministro ainda justifica que em inúmeros municípios nem sempre é possível a escolha de alguém com qualificação técnica formal[6], permitindo a nomeação das pessoas enumeradas na súmula vinculante 13 sem configurar o nepotismo.
Assim, nem toda nomeação para cargo político está imune à possibilidade de nepotismo, devendo ser examinada cada situação em particular. Contudo, de acordo com esse entendimento, na hipótese de o candidato ao cargo público demonstrar que possui capacidade técnica para o exercício da função pública para a qual está sendo indicado não há de se falar em prática de nepotismo.
Em julgamento proferido em 23/08/2019, o Ministro Alexandre de Moraes apresentou entendimento semelhante ao do Ministro Barroso, ao afirmar: “meu posicionamento é firme no sentido de que a nomeação de parentes para cargos de natureza eminentemente política, como no caso concreto (...) não se subordinam às hipóteses de nepotismo previstas no Enunciado Vinculante 13”[7].
Entretanto, a análise de decisões do STF demonstra que, apesar de ter editado a súmula vinculante que continua em vigência, existe uma divergência no entendimento dos ministros sobre o seu alcance e interpretação. Apesar de a maioria adotar o mesmo entendimento de Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, nas decisões proferidas pelo Ministro Marco Aurélio vê-se o entendimento oposto, que a indicação para cargos políticos deve observar o conteúdo da referida súmula.
Em ação civil pública com pedido de medida cautelar ele afirmou, em fevereiro de 2017, que “ao indicar parente em linha reta para desempenhar a mencionada função, a autoridade reclamada, mediante ato administrativo, acabou por desrespeitar o preceito revelado no verbete vinculante nº 13 da Súmula do Supremo”[8]. Essa decisão causou estranheza ao adotar um entendimento totalmente contrário aos entendimentos exarados anteriormente.
Recentemente, em julgamento datado de 08/08/2019[9], mais uma vez, o Ministro Marco Aurélio proferiu entendimento afirmando que a prática do nepotismo alcança a nomeação para cargos políticos, devendo essa prática, portanto, ser banida do ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, ao examinar as decisões do STF não é possível compreender qual o entendimento da Corte sobre a matéria, face à divergência de interpretação que tem sido adotada pelos ministros do tribunal. É nítido que posicionamentos conflitantes no lugar da uniformização da jurisprudência gera muita insegurança, além da descrença do jurisdicionado nas decisões do tribunal.
Considerações finais:
Essa situação é extremamente delicada, por causa da insegurança jurídica que ela proporciona. É preciso que a Corte tenha um posicionamento único para aplicar em todos os casos que lhe forem apresentados. Nesse aspecto, parece que o STF está a um passo de decidir, definitivamente, essa questão tendo em vista que no ano de 2018 foi reconhecida, por unanimidade, a repercussão geral em um processo que versa sobre essa temática, em deliberação na apreciação de um Recurso Extraordinário.
Ao se pronunciar pelo reconhecimento da repercussão geral, o ministro Luiz Fux destacou a relevância social e jurídica da matéria, uma vez que essa indefinição tem sido motivo de grande insegurança jurídica, pois “tanto o administrado quanto o poder público desconhecem a real legitimidade de diversas nomeações a cargos públicos até que haja um pronunciamento definitivo do poder judiciário”.
Portanto, a uniformização do entendimento da Corte sobre essa questão é necessária e urgente, pois essa indefinição gera desconfiança e descrença na justiça.
Referências:
BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: o Supremo, seus papéis e seus críticos. Disponível em http://www.osconstitucionalistas.com.br. Acesso em 15 de abril de 2019.
____________ . Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. 2017.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 10 ed. Brasília: UnB, 1997.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor.1993.
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Gen / Forense, 29ª. Edição. 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 943.
[1] DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Gen / Forense, 29ª. Edição. 2012, p. 951.
[2] BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 10ª edição. Brasília: UnB, 1997, p. 292.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 943.
[4] Conselho Nacional de Justiça (Brasil). O que é nepotismo? In: CONSELHO Nacional de Justiça. Brasília, 2006. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/component/content/article?id=13253:o-que-e-nepotismo. Acesso em 09 jun 2019.
[5] Texto da súmula vinculante nº 13: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.
[6] Confira o inteiro teor em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=223695712&ext=.pdf.
[7] Julgamento na íntegra em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340932849&ext=.pdf
[8] Confira a decisão em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311193786&ext=.pdf
[9] Decisão na íntegra em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340796115&ext=.pdf