O Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 (publicada no D.O.U em 31 de dezembro de 2004), a qual acrescentou ao artigo 92 da Constituição o inciso I-A, é composto por representantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da classe dos advogados e, por fim, de dois representantes da sociedade, escolhidos um pelo Senado Federal e outro pela Câmara dos Deputados, totalizando quinze membros, os quais, pela pluralidade de origem, dão ao Conselho um ar amplamente democrático.
Compete-lhe, resumidamente, exercer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, adotando providências para que a lei seja cumprida, além de zelar para que os juízes cumpram com seus deveres funcionais, podendo inclusive receber e conhecer reclamações contra membros do Judiciário, representar ao Ministério Público nos casos de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade e rever os processos disciplinares de magistrados, conforme dispõe o artigo 103-B, §4º, da Carta Magna.
Recentemente, foi alvo de deliberações por parte do Conselho matéria relacionada a uma prática nefasta, disseminada não só no Poder Judiciário como também nos demais Poderes do Estado brasileiro: o nepotismo. Enfrentando a questão, o CNJ editou a Resolução nº 7, de 18 de outubro de 2005, vedando, entre outras práticas, o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito do Tribunal ou juízo, por cônjuge, companheiro ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem como dos servidores investidos em cargo de direção ou de assessoramento.
A medida gerou muita polêmica. Foi recebida pela sociedade com bastante entusiasmo, assim como pela Ordem dos Advogados do Brasil (cujo representante foi o relator da resolução). Afinal, o combate ao nepotismo representa um avanço, um passo largo rumo à moralização da Justiça brasileira, que é vista pelas outras nações como elitista e ineficiente. Entretanto, a classe dos magistrados, especialmente os membros dos Tribunais de Justiça dos Estados, posicionou-se contra a providência adotada pelo CNJ. E já era de se esperar tal reação. Agem assim em defesa de seus cônjuges, companheiros e parentes, que pelo simples fato de possuírem esta "qualidade" (o parentesco), foram nomeados para cargos comissionados ou funções de confiança.
Os opositores da medida acusaram o Conselho de estar extrapolando das suas atribuições e de estar agindo inconstitucionalmente. Segundo aqueles que contestam a resolução, não há uma lei proibindo as nomeações e, sendo assim, as mesmas seriam absolutamente lícitas, haja vista que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, garantia expressa na Constituição. Sendo assim, caberia ao legislador disciplinar a matéria em lei específica, proibindo ou não as nomeações. Conseqüentemente, o CNJ estaria, inconstitucionalmente, legislando através de resoluções, invadindo a competência do Poder Legislativo.
Porém, como está arrimada em argumentos extremamente frágeis, esta tese de inconstitucionalidade da Resolução nº 7 do CNJ é absolutamente insubsistente. O texto do art. 103-B, §4º, inciso II, da Constituição de 1988, não dá margem a discussões. Conforme o referido dispositivo, cabe ao CNJ "zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União".
Não há invasão à competência do Poder Legislativo ou de qualquer outro Poder. A própria Constituição confere ao Conselho Nacional de Justiça, nos termos acima transcritos, poderes para desconstituir, rever os atos administrativos praticados por membros do Judiciário ou fixar prazo para a adoção de providências necessárias ao exato cumprimento da lei, especialmente no que tange à observância do seu artigo 37. Este importantíssimo artigo traz positivados em seu texto os Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e da Eficiência, aplicáveis não só ao Poder Executivo como a todos os demais, os quais também exercem, mesmo que esporadicamente, função administrativa (função atípica).
Os membros do Poder Judiciário, ao editar atos administrativos nomeando cônjuges, companheiros e parentes para cargos comissionados e funções de confiança, agiram em flagrante desrespeito à norma do artigo 37 da Carta Magna. Não há necessidade de lei afirmando a ilicitude do nepotismo, pois os Princípios Constitucionais da Impessoalidade e da Moralidade, expressos naquele artigo, têm força normativa e são absolutamente incompatíveis com essa prática absurda.
Nepotismo é sinônimo de favoritismo. Nomear pessoas levando em consideração critérios meramente subjetivos, tais como relações de parentesco, é o mesmo que lhes conceder privilégios, isto é, favorecê-las em relação aos demais. E favorecer alguém no âmbito da Administração Pública, em detrimento do interesse público, configura conduta imoral.
Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece, com extrema propriedade, que:
"Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética nas instituições. [...] Não é preciso, para invalidar despesas desse tipo, entrar na difícil análise dos fins que inspiraram a autoridade; o ato em si, o seu objeto, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrada." (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p. 111).
Ou seja, não basta que o ato administrativo seja legal, ou aparentemente legal como no caso em exame, mas deve também observar princípios éticos, de lealdade, boa-fé e honestidade, sem os quais se impõe a invalidação do mesmo.
As relações de parentesco ou de afinidade são extremamente subjetivas. Não podem servir de critério para a nomeação ou não de pessoas para cargos de provimento em comissão no âmbito da Administração Pública. A adoção desses critérios privilegia apenas uns poucos que, salvo raras exceções, não estão preparados para exercer cargos públicos, fato que concorreu para a grave crise de eficiência que se verifica atualmente nas instituições públicas nacionais. Estas exigem cada vez mais recursos sem, contudo, prestar seus serviços com a qualidade esperada.
Essa ineficiência das instituições públicas não se coaduna em nenhum aspecto com o interesse público, que deve servir de norte para a ação administrativa do Estado. Logo, se não traz vantagens ao interesse público, se não está relacionada à finalidade pública, a nomeação de parentes para cargos comissionados e funções de confiança, uma das causas da ineficiência do Estado, busca tão somente beneficiar aqueles que estão sendo nomeados.
Também quanto a este aspecto, padecem de inconstitucionalidade as nomeações de parentes realizadas no âmbito do Poder Judiciário e dos demais Poderes do Estado brasileiro. Como os atos que promovem estas nomeações visam, especificamente, trazer vantagens àqueles beneficiados por elas, sem considerar o interesse público, que é indisponível, há, conseqüentemente, ofensa frontal ao Princípio da Impessoalidade. Segundo este Princípio Constitucional, é dever da Administração Pública atuar de maneira impessoal, visando o bem comum, o interesse público, e evitar qualquer conduta tendente a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas.
Somente através da realização de concursos públicos, em que os candidatos sejam tratados de forma imparcial e impessoal, será possível selecionar aqueles mais preparados para o exercício de cargos públicos, obtendo-se, assim, resultados com máxima eficiência no serviço público.
Em face disso, é acertada a medida adotada pelo Conselho Nacional de Justiça. Ela veio dar ao povo brasileiro mais esperança, no que diz respeito à moralização das instituições, para que estas, com o fim dos favoritismos, voltem a ter a credibilidade almejada.
Solução semelhante foi adotada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, órgão também criado pela Emenda Constitucional nº 45 e com funções análogas às do Conselho Nacional de Justiça, porém aplicadas em âmbito do Ministério Público. De acordo com a redação da Resolução nº 1 do CNMP, a competência administrativa quando utilizada para obter-se proveito pessoal ou qualquer espécie de favoritismo constitui prática inconstitucional, independentemente da superveniente previsão legal, uma vez que os Princípios Constitucionais da Administração Pública são auto-aplicáveis e não precisam de lei para ter plena eficácia. A referida medida vedou a prática do nepotismo no âmbito do Ministério Público.
Ambos, o CNJ e o CNMP, em cuja composição existem representantes da sociedade, deram a esta uma resposta aos seus anseios e demonstraram de maneira expressa que são terminantemente contra o nepotismo, conduta retrógrada que ainda hoje insiste em macular a imagem das instituições brasileiras. No entanto, estes são casos isolados, que, apesar da sua importância, não conseguirão, por si só, banir o nepotismo da estrutura administrativa brasileira. Mas, podem servir de argumento, ou melhor, de fundamento para uma verdadeira ação moralizadora das demais instituições públicas nacionais, a ser iniciada e concretizada de forma efetiva por todos nós cidadãos.
Com efeito, cabe a nós, cidadãos, continuar a luta contra o nepotismo na Administração Pública brasileira, já que as medidas mencionadas acima, em face da independência dos Poderes, não afetam os Poderes Executivo e Legislativo, onde aquela prática é tão comum que foi banalizada. Para tanto temos ao nosso lado um importante instrumento: a Constituição Federal de 1988. Afinal, em seu artigo 5º, inciso LXXIII, a Constituição atribui a qualquer cidadão legitimidade para propor Ação Popular visando anular ato lesivo à Moralidade Administrativa, ficando o autor isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência, salvo comprovada má-fé.
Sendo certo que o nepotismo configura flagrante imoralidade, visto que a presença de favoritismos na Administração Pública viola os Princípios Constitucionais da Isonomia, da Moralidade Administrativa e da Impessoalidade, é plenamente cabível o ajuizamento de Ação Popular sempre que verificada hipótese de nomeação de cônjuge, companheiro ou parente de autoridade pública para cargos de provimento em comissão ou funções de confiança.
É chegada a hora de exercermos efetivamente nossa cidadania e participar ativamente da vida política nacional, fiscalizando a regularidade dos atos e contratos administrativos e cobrando dos órgãos e autoridades respeito aos Princípios Constitucionais.
O combate ao nepotismo está incluído nestas ações, devendo a sociedade mobilizar-se com o intuito de exigir a exoneração dos parentes, companheiros e cônjuges de autoridades, nomeados para cargos de provimento em comissão e funções de confiança, e, posteriormente, reivindicar a realização de concursos públicos para provimento dos respectivos cargos vagos. Insistindo o Poder Público na irregularidade, só resta ao cidadão recorrer, mediante ajuizamento de Ação Popular, ao Poder Judiciário, pioneiro no combate ao nepotismo e, portanto, sensível aos anseios da população brasileira. Certamente este Poder não se furtará de aplicar o Direito com justiça, interpretando as normas constitucionais de modo a conceder-lhes a máxima eficácia e, assim, concretizar os fins para os quais a Carta Magna de 1988 foi promulgada.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 48/2005 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94.
RESOLUÇÃO Nº 7 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, de 18 de outubro de 2005.
RESOLUÇÃO Nº 1 DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, de 7 de novembro de 2005.
CRETELLA JÚNIOR, José. Os "Writs" na Constituição de 1988: mandado de segurança, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção, habeas data, habeas corpus, ação popular. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991.
____________________________. Direito Administrativo. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2004.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2002.