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Alegações finais dos réus delatados - Anulação ou preservação das sentenças da Lava-Jato

Agenda 27/09/2019 às 12:02

Análise dos efeitos do julgamento do HC nº 166373, conhecido como "Caso Bendine", julgado pelo STF, e possível preservação ou nulidade dos atos processuais já praticados.

No Habeas Corpus nº 166373, impetrado pelo ex-gerente de Empreendimentos da Petrobras Márcio de Almeida Ferreira, condenado no âmbito da Operação Lava-Jato, conhecido inicialmente como “Caso Bendine”, o Supremo Tribunal Federal, em 26/09/19, formou maioria no sentido de compreender que em uma ação penal com réus colaboradores e não colaboradores, os delatados devem apresentar alegações finais após os réus que firmaram acordo de colaboração.

A discussão jurídica gira em torno de definir se os prazos serão simultâneos, como até então se previa a normatização (Código de Processo Penal e Lei 12.850/13), ou sucessivos, como entendeu a maioria do Supremo. Na visão do Ministro Alexandre de Moraes, condutor do voto que inaugurou a divergência, necessário que o delatado seja ouvido depois da acusação e do delator para que tenha conhecimento de todos os fatos atribuídos a ele e para que sua defesa não sofra prejuízos. Segundo o ministro, o réu tem o direito de se defender não apenas da acusação formulada pelo Ministério Público, mas de todo ato acusatório que lhe atribua algum ilícito ou alguma infração penal.

A sessão foi suspensa e deverá ser retomada em breve para passar à deliberação acerca dos efeitos temporais da decisão. Retroativos, imediatos ou pro futuro?

Seguindo-se a orientação normativa do Código de Processo Civil de 2015, alterações de entendimentos dominantes e consolidados devem ser realizados com a técnica da modulação dos efeitos, primando pela estabilidade, integridade e coerência, vetores do postulado básico da segurança jurídica (CRFB/88, art. 5º, XXXVI).

Em complemento ainda mais didático, o artigo 927, §3º do Código de Processo Civil enuncia que:

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

Segundo Marinoni, Arenhart e Mitidiero1, o Tribunal procede a essa ponderação de valores por meio de três métodos: a) por intermédio da sinalização (signaling), quando o Tribunal, percebendo a necessidade de reformular as suas decisões, começa, nos julgamentos da matéria, paulatinamente, a declarar que a Corte está repensando a sua jurisprudência no ponto debatido; b) por meio do prospective overruling, quando o Tribunal, atento ao princípio da proteção da confiança, ressalva que a decisão somente iniciará a produção dos efeitos a partir da própria decisão; e, c) mediante o prospective prospective overruling, quando a corte fixa um momento ainda mais à frente para que a decisão comece a produzir efeitos, semelhante à vacatio legis (por exemplo, passa a valer um ano após a publicação da decisão).

Esta técnica doutrinária está positivada no Brasil através da Lei nº 9.868/99, que disciplina os julgamentos das ações de (in) constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, aplicando-se, por interpretação extensiva, aos demais julgados da Corte.

De acordo com o artigo 27 da citada legislação, os fundamentos para a modulação dos efeitos da decisão encontram-se na segurança jurídica ou excepcional interesse social, exigindo-se quórum qualificado para deliberação.

Cabe salientar que o Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, decidiu um caso, envolvendo processo penal e interrogatórios dos réus, optando pela modulação dos efeitos, sem declaração de retroatividade ou nulidades, em nome da necessária segurança jurídica. Vejamos as semelhanças das situações.

Segundo o texto expresso, ainda em vigor, do artigo 57 da Lei 11.343/06 – Lei de Drogas, o primeiro a ser ouvido na audiência de instrução é o réu, antes mesmo das testemunhas. Rito semelhante segue a Lei Processual Penal Militar, estabelecendo no art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69 que o acusado seria ouvido em primeiro lugar. Por outro lado, o Código de Processo Penal, em seu artigo 400, com redação dada pela reforma de 2008, estabelece que o réu é o último a ser ouvido, para preservação da mais ampla defesa, uma vez que apresentando sua tese no final o acusado poderá contraditar pontos afirmados pelas testemunhas e eventuais vítimas.

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A tese levada ao Supremo Tribunal Federal, em síntese, foi: o réu ser ouvido antes das testemunhas é inconstitucional, pois fere os princípios da ampla defesa e do contraditório, merecendo o procedimento da lei especial ser afastado para aplicação do rito geral previsto no Código de Processo Penal. Não obstante diversas críticas doutrinárias, o entendimento que prevalecia e era aplicado diariamente pelos magistrados e Tribunais era no sentido de que a Lei Especial prevalece sobre a Geral (princípio da especialidade) e, por tal razão, mantinha-se o rito da Lei 11.343/06 e do Código Militar, fazendo-se com que o interrogatório efetivamente fosse o primeiro ato a ser realizado na audiência de instrução e julgamento.

Este cenário permaneceu por longos anos, com vários réus sendo condenados por tráfico de drogas e delitos militares, com seu direito à ampla defesa, em tese, limitado pela normatização então vigente, obrigando-se o acusado a expor sua versão já no início do julgamento. Apenas em 2016, por meio do Habeas Corpus nº 124.900/AM, decidiu a Corte Constitucional:

Habeas corpus. Penal e processual penal militar. Posse de substância entorpecente em local sujeito à administração militar (CPM, art. 290). Crime praticado por militares em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar. Competência da Justiça Castrense configurada (CF, art. 124 c/c CPM, art. 9º, I, b). Pacientes que não integram mais as fileiras das Forças Armadas. Irrelevância para fins de fixação da competência. Interrogatório. Realização ao final da instrução (art. 400, CPP). Obrigatoriedade. Aplicação às ações penais em trâmite na Justiça Militar dessa alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes. Adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988. Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. […]. 4. A Lei nº 11.719/08 adequou o sistema acusatório democrático, integrando-o de forma mais harmoniosa aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988, assegurando-se maior efetividade a seus princípios, notadamente, os do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). 5. Por ser mais benéfica (lex mitior) e harmoniosa com a Constituição Federal, há de preponderar, no processo penal militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), a regra do art. 400 do Código de Processo Penal. 6. De modo a não comprometer o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) nos feitos já sentenciados, essa orientação deve ser aplicada somente aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso dos autos, já que há sentença condenatória proferida em desfavor dos pacientes desde 29/7/14. 7. Ordem denegada, com a fixação da seguinte orientação: a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. (HABEAS CORPUS 127.900 AMAZONAS RELATOR : MIN. DIAS TOFFOLI – DJE 03/08/2016).

Os destaques finais demonstram bem a preocupação da Corte, à época, em preservar os julgados já finalizados. Até mesmo os casos em que ainda pendia sentença, mas já findada a instrução processual, foram mantidos pelo Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento da segurança jurídica (ex nunc). O julgado, por decisão expressa do plenário, e quase unânime, vencido o Ministro Marco Aurélio, teve eficácia vinculante e erga omnes, válido, pois, para superar todos os ritos específicos então vigentes e desconformes o Código de Processo Penal.

A partir desta análise comparativa de casos, surge o seguinte questionamento: se em situação semelhante, na qual havia legislação expressa determinando que o réu fosse ouvido por fim (art. 400, CPP), e por observância de ritos previstos em leis específicas este trâmite não era considerado, o STF decidiu por preservar as decisões já instruídas e julgadas (condenatórias ou absolutórias), por que então, agora, anular decisões proferidas em casos de colaborações premiadas que sequer contrariaram legislações vigentes? A Lei nº 12.850/13 não traz essa previsão de delatado ser ouvido após o delator, tampouco o Código de Processo Penal ou qualquer outro preceito normativo.

O próprio Supremo Tribunal Federal já tinha se manifestado, em diversas oportunidades, acerca da interpretação e constitucionalidade da Lei nº 12.850/13 e do instituto da colaboração premiada, não tendo revelado ao mundo jurídico esta nova regra procedimental.

Trata-se, pois, de uma legítima interpretação constitucional realizada pelo guardião da Constituição, denominada overruling, superando julgados do próprio STF, o qual, por este mesmo motivo, precisa preservar a força da coerência sistemática e da boa-fé objetiva das suas decisões.

Desta feita, sem a pretensão de realizar prognósticos, mas seguindo-se uma ordem lógica e harmônica da jurisprudência, espera-se que este seja o caminho a ser adotado no HC nº 166373, conhecido como “caso Bendine”, posto a necessidade de manutenção de trabalhos já realizados sob o manto da estrita legalidade e constitucionalidade, não havendo que se falar em nulidades retroativas por mudanças de entendimento, sob pena de em nome da ampla defesa, serem fulminados valores como a segurança jurídica e o devido processo legal.

Referências:

1 Marinoni,Luiz Guilherme; Arenhart,Sérgio Cruz; Mitidiero,Daniel; Novo Código de Processo Civil Comentado, RT, São Paulo, 2015, págs. 875/876.

Sobre o autor
Thiago Chacon Delgado

Promotor de Justiça. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ (2009). Pós-graduado em Direito Administrativo pela Uniderp (2013), com ênfase em Improbidade Administrativa. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas, PPGD - linha 4 - Penal e Processo Penal.

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