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A necessidade de estabelecimento e observância de limites legais à concessão de benefícios nos acordos de colaboração premiada

Agenda 30/09/2019 às 15:26

O artigo analisará a possibilidade da concessão de benefícios não previstos em lei aos colaboradores nos acordos de colaboração premiada, desde uma perspectiva constitucional, convencional e legal.

RESUMO

O artigo analisará a possibilidade da concessão de benefícios não previstos em lei aos colaboradores nos acordos de colaboração premiada, desde uma perspectiva constitucional, convencional e legal, tendo por base os acordos pactuados no âmbito da Operação Lava Jato, em que tal prática foi adotada pelo Ministério Público e referendada pelo Poder Judiciário. O estudo tem por objetivo demonstrar que a inobservância, pelos órgãos de persecução penal e pelo Poder Judiciário, dos limites definidos na legislação para a concessão de prêmios aos imputados nos acordos de colaboração premiada atenta contra a Constituição da República – violando os princípios da legalidade e da separação dos poderes –, e a legislação infraconstitucional, ensejando manifestações ilegítimas de poder, indevidas pressões e coações aos imputados e gerando situações contrárias às próprias finalidades do instituto. A metodologia utilizada empregará dois eixos teórico-metodológicos, quais sejam a pesquisa dogmática e a pesquisa epistemológica, cujo método será o dedutivo.

Palavras-chave: Colaboração premiada. Benefícios. Limites. Legalidade.

ABSTRACT

The article will analyse if there is the possibility of granting benefits not provided by law to the defendant in the plea bargain agreements, from a constitutional, conventional and legal perspective, based on the agreements reached within the scope of Operation Car Wash, in which such practice was adopted by the Prosecution Service and endorsed by the Judiciary. The study aims to demonstrate that the non-compliance, by the criminal prosecution bodies and the Judiciary, with the limits defined in the legislation for the granting of prizes to the accused in the plea bargain agreements is in the violation of the Constitution of the Republic – violating the principles of legality and separation of powers – and infra-constitutional legislation, leading to illegitimate manifestations of power, undue pressures and constraints on the accused and generating situations contrary to the very purposes of the institute. The methodology used will employ two theoretical-methodological axes, which are the dogmatic research and the epistemological research, whose method will be the deductive.

Key-words: Plea bargain. Benefits. Limits. Legality.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo analisará se o instituto da colaboração premiada, examinado à luz da Constituição da República – sobretudo das garantias processuais penais – e da legislação penal infraconstitucional, possibilita a concessão de benefícios extralegais ao colaborador, ou se há necessidade de estabelecimento e observância de limites legais à concessão das sanções premiais.

Para tanto, utilizar-se-á de metodologia que empregará dois eixos teórico-metodológicos, quais sejam a pesquisa dogmática – através de análise doutrinária, legal e jurisprudencial – e a pesquisa epistemológica, cujo método será o dedutivo.

O artigo terá por foco o estudo da Lei n.º 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) e dos dispositivos afetos ao tema, da produção bibliográfica existente, além da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desenvolvida sobretudo a partir do ano de 2014, com o início da Operação Lava Jato, em que os acordos de colaboração premiada foram extensamente utilizados para o combate aos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e contra a ordem econômica, especialmente os cometidos no âmbito de organizações criminosas integradas por agentes políticos e a elite empresarial brasileira.

A problemática da concessão de benefícios não previstos na Lei n.º 12.850/13 aos colaboradores assume especial importância em razão da escassez de produção científica especificamente destinada ao objeto, além da paulatina ampliação dos espaços de consenso no Direito Penal brasileiro e do fato de que, dada a novidade do instituto, a colaboração premiada ainda não teve seus contornos claramente delimitados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, o que é de excepcional importância em razão da insuficiência normativa de que padece referida lei.

Ao fim, pretende-se que fique demonstrada a ilegitimidade de tal prática negocial, desde as perspectivas constitucional, convencional e legal, e a necessidade de observância estrita dos parâmetros estabelecidos na Lei de Organizações Criminosas para a concessão de benefícios nos acordos de cooperação processual.

2 A COLABORAÇÃO PREMIADA ENQUANTO MECANISMO DA JUSTIÇA CRIMINAL NEGOCIAL

2.1 BREVE HISTÓRICO DA JUSTIÇA CRIMINAL NEGOCIAL NO BRASIL

A justiça criminal negocial, também denominada direito penal premial, é um modelo de justiça caracterizado pela realização de acordos de cooperação processual entre acusação e defesa em relação ao caso penal, por meio dos quais o réu adere à pretensão acusatória e abdica de sua resistência defensiva, permitindo a antecipação ou a supressão integral ou parcial do devido processo penal, facilitando a persecução criminal, e em contraprestação aufere benefícios ou vantagens relativos à resposta estatal ao delito (VASCONCELLOS, 2018, p. 23).

O ordenamento jurídico pátrio notou a ocorrência de uma expansão da justiça criminal negocial a partir da Constituição da República de 1988, que, no art. 98, inciso I, previu a criação de juizados especiais criminais nos âmbitos federal, estadual, distrital e territorial, com competência para julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo e realizar transações, nos casos previstos em lei (BRASIL, 1998). Em 1995, foi editada a Lei n.º 9.099, que não apenas regulou o instituto da transação penal (art. 76), como também apresentou a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89) destinado a apurar infrações penais de médio potencial ofensivo – aquelas cuja pena mínima cominada em abstrato não seja superior a um ano (BRASIL, 1995).

Com a edição do art. 87 da Lei n.º 12.529/11 (Lei Antitruste), houve a adoção de um novo mecanismo negocial: o acordo de leniência, instrumento destinado ao combate aos crimes contra a ordem econômica e aos demais diretamente relacionados à prática de cartel, que permite a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário do acordo, além de ensejar a extinção da punibilidade quando do seu cumprimento (BRASIL, 2011).

Finalmente, no ano de 2013, o acordo de colaboração premiada foi introduzido à ordem jurídico-penal, tendo sido regulamentado nos arts. 4º a 7º da Lei n.º 12.850 (BRASIL, 2013), a nova Lei de Organizações Criminosas, que revogou a normativa anterior sobre a matéria (Lei n.º 9.034/95).

É salutar a ressalva de que referida “introdução” do instituto ao rol de instrumentos negociais existentes no país alude, tão somente, ao seu revestimento sob a forma de negócio jurídico processual, uma vez que a colaboração processual do imputado para a elucidação e repressão de delitos em que tomou parte como coautor ou partícipe, visando a obtenção de sanções premiais, já existia, na história legislativa recente, desde a Lei n.º 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), que a consagrou em seu art. 8º, parágrafo único (BRASIL, 1990), e a partir da qual surgiram diversos diplomas legislativos contendo disposições semelhantes, a exemplo do art. 6º da Lei n.º 9.034/95 (BRASIL, 1995), art. 25, § 2º, da Lei n.º 7.492/86 (BRASIL, 1986) e art. 16, parágrafo único, da Lei n.º 8.137/90 (BRASIL, 1990) – os dois últimos inseridos pela Lei n.º 9.080/95 (BRASIL, 1995).

2.2 FUNDAMENTOS PARA A ADOÇÃO DE MECANISMOS NEGOCIAIS - O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA NO BRASIL

A existência de uma atual tendência de expansão da justiça criminal negocial no cenário brasileiro e internacional é inquestionável (VASCONCELLOS, 2018, p. 15). No âmbito interno, os mecanismos de consenso no processo penal foram sendo paulatinamente incorporados pelo legislador ordinário a partir da década de 90, nos moldes supramencionados, sendo a manifestação mais recente do direito penal premial a regulamentação dos “acordos de não persecução penal”, pela Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2017) – cuja constitucionalidade é largamente contestada em face da competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal e Processual Penal, conforme o art. 22, inciso I, da Constituição da República (BRASIL, 1988).

Na seara internacional, a utilização do plea bargain norte-americano e do patteggiamento italiano, dois institutos penais negociais que admitem a feitura de acordos entre acusação e defesa sobre a pena a ser imposta pela prática delitiva, é amiúde levantada como argumento para sua inserção no sistema jurídico-criminal brasileiro, sobretudo por integrantes dos órgãos de persecução penal (MARTINES, 2018).

A finalidade de tais mecanismos, em asserção válida para todos os países que os adotam, é a facilitação da persecução penal por meio do incentivo ao abandono pelo acusado de sua resistência defensiva e sua conformidade à acusação, com o objetivo de “concretizar o poder punitivo estatal de modo mais rápido e menos oneroso” (VASCONCELLOS, 2018, p. 26).

Os discursos proselitistas que pugnam pelos sistemas de consenso processual penal ressaltam, sobretudo, sua efetividade e a eficiência para a imposição de penas, notadamente pela ausência (e ao custo) das barreiras que as garantias processuais constitucionais do imputado oferecem ao acusador. A ideologia, evidentemente punitivista, encrustada ao fundo de citados discursos, pode ser sumarizada no conceito de “eficientismo” descrito por Callegari (2010 apud BRITO, 2013, p. 44), que consiste no “pragmatismo utilitarista que se impôs na legislação penal, a partir do qual se aproveitam as demandas de lei e ordem, construídas por meio dos meios de comunicação”, com o objetivo de oferecer respostas simbólicas de maior intervenção penal.

O mecanismo da colaboração premiada foi inserido no Brasil, no formato em que hoje é utilizado – como acordo ou negócio jurídico processual –, para a alegada finalidade de atender a um “‘estado de necessidade de investigação’ ou ‘emergência investigativa’, locução indicativa de uma situação de impasse ou bloqueio na apuração persecutória de determinados delitos e seus autores” (PEREIRA, 2016, p. 79), imposto pela “disfuncionalidade dos instrumentos probatórios tradicionais” (SILVA, 2017, p. 287) diante da sofisticação das estruturas da criminalidade organizada, e do qual exsurgiria a necessidade de concepção de um ferramental apto à sua investigação e punição e dos crimes por meio dela praticados (BITENCOURT; BUSATO, 2014, p. 13).

Nessa toada, ressaltam Freire Júnior e Dezan (2017, p. 52) que “é necessário reconhecer a constante evolução das atividades criminosas, acobertadas pela infiltração de suas práticas nas castas empresariais, administrativas e políticas”, com a utilização das novas tecnologias e de subterfúgios aptos a ocultar sua atuação do aparelho investigatório do Estado.

No âmbito da Operação Lava Jato, na qual tais acordos constituíram verdadeiro sustentáculo da investigação, o instrumento serviu ao propósito persecutório do Estado voltado à criminalidade organizada por poderes econômicos privados (criminalidade organizada das empresas), que tem por característica o “uso de grandes empresas ou corporações para a prática de condutas criminosas” mediante o aproveitamento de sua estrutura hierárquica, e que “buscam a todo custo uma infiltração no Estado como forma de proporcionar vantagens e lucros ainda maiores”; porém, e principalmente, foi importante para a descoberta da criminalidade organizada endógena, em que os membros da organização são agentes públicos e políticos, agindo em todas as esferas – federal, estadual e municipal – e em todos os Poderes estruturantes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, e que é responsável pelo quadro de corrupção sistêmica existente no Brasil (TEIXEIRA, 2017, p. 63-65).

Em conclusão, é irretocável a lição de PEREIRA (2016, p. 28) ao afirmar que:

O objetivo imediato das técnicas premiais incentivadoras da colaboração premiada, portanto, é o melhoramento da operatividade do sistema judiciário punitivo; seu escopo é o de reforçar a resposta penal, o que é legítimo. Os maiores problemas, por certo, não estão no escopo, mas no instrumento: tanto nos seus efeitos no plano fático, como, principalmente, no que diz respeito ao aspecto valorativo, pela tendencial afetação de princípios e interesses legitimantes do sistema penal e processual.

Partindo da premissa de que a colaboração premiada é constitucional, tal como é considerada no cenário jurídico atual, torna-se imperioso, então, que seja manejada segundo parâmetros de contenção do poder punitivo, à vista da tendência natural da justiça criminal negocial de operar sob lógica de coerção e pressões ilegítimas sobre o imputado e de violação de seus direitos e garantias fundamentais.

3 O REGRAMENTO JURÍDICO DA COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEI N.º 12.850/13 E A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS EXTRALEGAIS

O acordo de colaboração premiada é um negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, em que os órgãos de persecução penal e o imputado, que pode ser apenas investigado, mas também o denunciado e o condenado, convencionam a confissão e o fornecimento de elementos de prova que facilitem a persecução penal de agentes responsáveis por práticas delitivas em que o colaborador figurou como coautor ou partícipe, em troca de benefícios ou prêmios consistentes no abrandamento ou eliminação da resposta estatal ao delito.

A Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013) não apenas introduziu o procedimento a ser observado no fazimento de tais acordos, como também expandiu seus efeitos de direito penal material ao prever sanções premiais inéditas na legislação nacional. Os benefícios previstos em lei ao colaborador que preste voluntária e efetiva cooperação processual estão dispostos no art. 4º, caput, e §§ 4º e 5º, da norma predita. São eles: (i) perdão judicial; (ii) redução de até 2/3 (dois terços) da pena; (iii) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; tendo o acordo sido celebrado na fase de investigação preliminar, e desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e tenha sido o primeiro a prestar efetiva colaboração, (iv) o não oferecimento da denúncia; na hipótese de o acordo seguir-se à condenação do colaborador, (v) a redução da pena até a metade ou a (vi) obtenção de progressão de regime, ainda que ausentes os requisitos objetivos.

Não obstante o rol de vantagens processuais previsto em lei, desde a deflagração da Operação Lava Jato, em 2014, os acordos de colaboração premiada – concebidos como meio excepcional de obtenção de prova (BUSATO, 2013, p. 242), mas que adquiriram centralidade entre o ferramental investigatório utilizado, com 184 acordos realizados até 05 de julho de 2019, no Estado do Paraná, segundo dados do Ministério Público Federal (BRASIL, 2019) – em seu âmbito pactuados tornaram-se notórios pela concessão de benefícios extralegais aos colaboradores, mediante algum amparo doutrinário e, sobretudo, pela complacência de magistrados de distintas instâncias, que homologaram referidos acordos com infrequentes ressalvas. Por todos, ilustrando a atual posição do Supremo Tribunal Federal, citam-se alguns excertos extraídos do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, em Questão de Ordem na Petição n.º 7.074/Distrito Federal (BRASIL, 2017, p. 65-66):

[…] é perfeitamente possível e legítimo que, na colaboração premiada, sejam concedidos os benefícios que estão previstos na lei, como, por exemplo, redução da pena, regime de execução diferenciado, ou mesmo a extinção da punibilidade.

Portanto é possível prever o que já esteja de antemão escrito na lei, mas também é possível se estabelecerem condições razoáveis e legítimas, independentemente de elas estarem expressamente previstas na lei, evidentemente, desde que elas: I) não sejam vedadas pelo ordenamento jurídico; II) não agravem a situação do colaborador.

[...] tudo o [...] que tenha razoabilidade, que não seja absurdo, pode, sim, a meu ver, ser negociado, mesmo que não esteja previsto em lei, porque isso é da natureza das relações negociais.

Aqui - e eu gostaria de enfatizar isso -, o princípio da reserva legal em matéria penal é instituído, antes e acima de tudo, em favor do acusado, em favor do réu. Ele é uma garantia individual, uma proteção para o acusado.

Se em acordo com o Ministério Público, firmado com assistência de advogado de defesa técnica e homologado pelo juiz competente, se neste acordo se der uma condição mais favorável do que aquela que esteja expressamente prevista na lei, se o juiz a aceitar e homologar, não vejo nenhum problema. […]

Portanto, a sanção negociada, mais favorável e homologada pelo juízo, parece-me perfeitamente legítima. E por qual razão? É que, se a lei permite o não oferecimento da denúncia, se a lei permite a concessão de perdão judicial, isto é, permite que se isente o colaborador da imposição de qualquer pena, a meu ver, é intuitivo que se admita o estabelecimento de condições outras, que não resultem na total liberação do colaborador.

Simplesmente porque quem pode o mais - não oferecer denúncia ou negociar o perdão judicial - pode perfeitamente negociar uma sanção mais branda do que a que consta da textualidade da lei. [grifos próprios]

Verifica-se que, em suma e para o Ministro, é possível a previsão de vantagens extralegais, desde que (i) se mostrem razoáveis e legítimas, (ii) não sejam vedadas pelo ordenamento jurídico e (iii) não agravem a situação do colaborador. Ademais, são dois os fundamentos adotados para tanto pela Suprema Corte, na generalidade dos casos: (i) o princípio da reserva de lei é garantia individual do acusado, portanto, a outorga de sanções premiais mais vantajosas que as contidas no rol legal não pode ser arguida como impedimento; (ii) argumentos a fortiori, que são associados a dois princípios interpretativos ou máximas: qui potest plus potest minuse qui non potest minus non potest plus, sendo que o primeiro afirma que aquele que pode mais, também pode menos, enquanto o segundo estatui que aquele que não pode (por explicitamente proibido) menos, não pode mais (LUCAS; ANDRADE, 2018, p. 851). O argumento a fortiori foi também utilizado pelo Ministro Relator Dias Toffoli no Habeas Corpus n.º 127.483/Paraná (BRASIL, 2015, p. 50), acórdão basilar sobre o instituto da colaboração premiada.

Em sede doutrinária, Mendonça (2017 apud VASCONCELLOS, 2018, p. 164) mostra-se um defensor da pactuação de benefícios sem expressa previsão em lei, desde que observadas as seguintes condições:

(i) o benefício não pode ser expressamente vedado por lei; (ii) deve haver relativa cobertura legal, permitindo a analogia, embora sejam possíveis adaptações ao caso concreto; (iii) o objeto do acordo deve ser lícito e moralmente aceitável; (iv) deve respeitar os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana; (v) deve haver razoabilidade na concessão do princípio (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); e (vi) deve haver legitimidade do Ministério Público para conceder o benefício.

Segundo o mesmo autor, os benefícios extralegais não violariam o princípio da legalidade, porquanto este poderia ter uma interpretação menos rígida na seara da justiça criminal negocial, permitindo a concessão de prêmios adequados ao caso concreto e à condição do agente, além de não haver óbice à utilização de tal princípio em favor do imputado, a quem busca, em última análise, proteger (MENDONÇA, 2017 apud ROSA, 2018, p. 72).

Por fim, argumento menos recorrente, mas ocasionalmente levantado, é o de que, se não permite em termos expressos, a Lei de Organizações Criminosas tampouco proíbe a concessão de benefícios extralegais, não havendo de se falar em impossibilidade de ampla negociação dos prêmios entre os órgãos persecutórios do Estado e o potencial colaborador, com base nos princípios da autonomia privada, boa-fé e eficiência, que ocupariam o espaço predominantemente ocupado pela garantia do devido processo legal, mitigado em razão do espaço de consenso criado pela colaboração premiada (ROSA, 2018, p. 74-78).

O produto de semelhante orientação doutrinária e jurisprudencial, que, por óbvio, é também a do Ministério Público, porque externada pela instituição na prática negocial e em suas diretrizes normativas – como se observa dos pontos 27, 27.1 e 35 da Orientação Conjunta n.º 1/2018, da 2a e 5a Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (BRASIL, 2018) –, à revelia do regramento da Lei n.º 12.850/13, é um “fenômeno de completo esvaziamento de sua força normativa” (VASCONCELLOS, 2018, p. 163).

3.1 A (IM)POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS EXTRALEGAIS NOS ACORDOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA

São variados e intransponíveis os óbices constitucionais, convencionais e legais à concessão de benefícios extralegais nos acordos de colaboração premiada, conduta esta, pontue-se desde logo, absolutamente ilegítima e reprovável sob todos os níveis normativos acima citados.

Inicialmente, é mandatório que se esclareça o impeditivo representado pelos princípios da legalidade e da reserva de lei – o primeiro se dirige ao Ministério Público, enquanto o segundo se refere ao conteúdo do acordo –, distinguidos com maestria e concisão por Silva (2014, p. 425):

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A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade e o da reserva de lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal.

O princípio da legalidade é pedra angular do Estado Democrático de Direito, constituindo verdadeiro condicionante da legitimidade dos atos estatais e do próprio Estado, na medida em que assegura, em última instância, a submissão dos agentes públicos à soberania popular. Sendo garantia constitucional individual do cidadão em face do poder público, especialmente quando este se manifesta através das instituições responsáveis pela forma mais grave de controle social – o Direito Penal –, não se conhece conduta estatal legítima que não esteja pautada em lei.

Sob esse prisma, parece necessário rememorar o óbvio: membros do Ministério Público, delegados de polícia (legitimados para realização do acordo de cooperação processual) e, sobretudo, magistrados, guardam a semelhança de possuírem a condição de agentes estatais e o dever de executar as leis nos termos em que postas pelo Poder Legislativo, de forma impessoal (Ministério Público e polícia) e imparcial (magistrados). Neste campo, é mais do que adequada a já clássica expressão representativa do princípio ora tratado: ao Estado só se admite fazer o que é expressamente permitido, enquanto ao particular é possível tudo o que não for proibido.

Se tal assertiva é verdadeira em todos os ramos do Direito, no âmbito Penal e Processual Penal adquire tons quase absolutos, porquanto o poder punitivo estatal não pode ser objeto de disposição pelos integrantes dos órgãos de persecução criminal e do Poder Judiciário. Nesse sentido, Zilli (2017, p. 4) observa com acuidade que a “renúncia ao exercício daquele poder ou o abrandamento dos parâmetros punitivos não são produto de livre eleição do órgão acusador, mas sim do legislador”, porque é este o titular do mandato democrático e o legitimado a estabelecer as concessões que o Estado está disposto a realizar nessa seara.

Pelas razões acima, devem ser prontamente refutados os fundamentos doutrinários e jurisprudenciais que pugnam pela relativização (leia-se: violação) da legalidade in favor rei, porque, ainda que fosse esse o caso, não se pode conceber a legitimidade democrática de juízes e promotores – e, com menor razão, de delegados de polícia – para usurpar a função legislativa sem amparo constitucional e prever, em acordos negociados com imputados, benefícios não previstos em lei, em evidente disposição do poder punitivo estatal e atentado ao princípio da separação dos poderes.

Ademais, o falacioso argumento de que as sanções premiais extralegais deferidas ao colaborador representam-lhe um benefício deve se submetido a uma análise crítica, pois, aceitando o acordo de colaboração processual, aquele confessará o(s) delito(s) que lhe(s) é (ou são) atribuído(s), abandonará sua posição defensiva, aderindo à acusação e, em uma – no mínimo, questionável – inversão do ônus probatório estatal, assumirá o compromisso legal de dizer a verdade e de munir o órgão acusador do material probatório necessário para incriminá-lo e aos demais integrantes da organização criminosa, o que fere de morte algumas garantias processuais constitucionais – a exemplo do direito ao silêncio, a presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório.

Em verdade, a colaboração premiada, embora definida por seus defensores como um instrumento de defesa do acusado, acarreta verdadeira renúncia ao direito de defesa, como percebe El Tasse (2006, p. 275) ao asseverar que:

[o] processo em que se faz presente o instrumental da delação premiada faz transparecer mera formalidade defensiva, sem qualquer possibilidade que a mesma [sic] seja efetiva. A necessidade de que o agente, para que obtenha os favores do julgador, colabore efetivamente, revelando sua participação, de terceiros, detalhes da ação criminosa etc., estabelece a ampla defesa como mera promessa vã do texto político.

Em afirmação incisiva, Vegezzi (2005 apud VASCONCELLOS, 2018, p. 47-48), referindo-se ao instituto da barganha, mas em raciocínio inteiramente aplicável à colaboração premiada, afirma que os acusados “devem pagar pela ineficiência do Estado para processá-los adequadamente com a renúncia coagida de suas garantias constitucionais”.

Por seu turno, a reserva de lei em matéria penal apresenta limitação de conteúdo aos acordos de colaboração premiada, que pode ser sintetizada na garantia prevista no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República (BRASIL, 1988): “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (nullum crimen, nulla poena sine proevia lege poenali). Quer isto dizer que tão somente a lei formal, de competência legislativa privativa da União, segundo o art. 22, inciso I, também da Carta Magna (BRASIL, 1988), pode dispor sobre Direito Penal e Processual Penal, prevendo não apenas a atuação dos atores processuais penais, como também o conteúdo e as formas de manifestação do poder punitivo estatal. Disso resulta que os crimes e as penas, e, por conseguinte, as sanções premiais, só podem ser tratadas no âmbito exclusivo da regra jurídica geral, abstrata e imperativa, emanada do Poder Legislativo e resultante do devido processo legislativo constitucional, encontrando-se fora do poder de disposição dos sujeitos processuais por força do caráter eminentemente público dos interesses envolvidos, afigurando-se taxativo o rol de benefícios descritos na Lei n.º 12.850/13.

Na mesma toada, notável a observação de Jardim (2016, p. 3) sobre o tema, alertando sobre a ilegítima privatização do sistema de justiça criminal:

É imperioso reconhecer que o acordo de cooperação premiada é um negócio processual e, por conseguinte, regido pelas regras e princípios de Direito Público. Como é de todos sabido, as regras e princípios do Direito Penal e do Direito Processual Penal são cogentes e ficam fora do poder dispositivo das partes que atuam no processo penal. Como se costuma dizer, em termos de Direito Privado, pode-se fazer tudo o que não seja proibido, enquanto sob a égide do Direito Público, só se [sic] fazer o que seja expressamente permitido ...

É imperativo, ainda, enfrentar o fundamento acolhido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual, se a Lei n.º 12.850/13 admite pactos de imunidade e o perdão judicial (o mais), então não haveria impedimento a concessões menos amplas (o menos) – como, por exemplo, reduções de pena acima de dois terços, regimes de cumprimento de pena “diferenciados” e liberação de imóveis de origem criminosa –, sob a ótica das observações realizadas alhures.

O argumento é expresso pelo brocardo latino in eo quod plus est semper inest et minus (“aquele a quem se permite o mais, não deve-se negar o menos”), que, no irreparável escólio de Maximiliano (2011, p. 200-201), não se aplica ao Direito Penal:

A conclusão do a minori ad majus nem sempre será lógica e verdadeira. Basta lembrar que os textos proibitivos e os que impõem condições, quase sempre se incluem no Direito Excepcional, sujeito a exegese estrita e incompatível com o processo analógico, ao qual pertencem os três argumentos – a pari, a majori ad minus, a minori ad majus. Por isso mesmo, só se aplicam estes ao Direito comum, não ao Penal, ao Fiscal, nem ao Excepcional, e têm como alicerce o adágio da analogiaubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio (4). [grifo próprio]

Como dito, o interesse punitivo do Estado não pode ser objeto de convenção, senão nos estritos limites da lei, e a discricionariedade negocial dos órgãos de persecução penal deverá ser objeto de controle judicial no momento da homologação do acordo de colaboração, quando analisar-se-á sua legalidade, regularidade e voluntariedade, nos termos do art. 4º, § 7º, da Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013), devendo ser consideradas ilegais quaisquer cláusulas concedendo sanções premiais sem previsão legal.

Por fim, o argumento de que a Lei n.º 12.850/13 não traz vedação expressa à concessão de benefícios extralegais, por todo o já dito, é fraquíssimo. A título de exemplo, o art. 155, § 2º, do CP (BRASIL, 1940), que regra o denominado “furto de pequeno valor”, possibilita, sendo o criminoso primário, que o juiz substitua a pena de reclusão pela de detenção, a diminua de um a dois terços, ou aplique somente a pena de multa, sem que jamais se cogitasse solução diversa porque, no Brasil, a atuação do poder punitivo estatal não está à mercê dos atores processuais penais, senão e apenas nos termos da lei formal.

Se se põe fora de dúvida o fato de que a previsão de benefícios extralegais quebra a legalidade do acordo, constituindo causa de sua não homologação, também o requisito da voluntariedade da celebração é violado num modelo de ilimitação dos benefícios, em razão do aumento exponencial das pressões e coações sobre o colaborador, o que afasta um requisito de validade do acordo e fere o núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais do imputado, devido à toda sorte de constrangimentos a que este pode ser submetido. Como afirma Vasconcellos (2018, p. 163-164), dissertando sobre o tema, “a aceitação de um modelo irrestrito e avesso às previsões normativas incentiva condutas ilegítimas e indevidas coações ao eventual delator”.

Desde que a colaboração premiada implica, em verdade, prejuízo ao imputado, a necessidade de limitação e adstrição à lei do poder de barganha dos órgãos de repressão penal exsurge do fato de que, se irrestrito, o instituto, criado como mecanismo de uso excepcional tornar-se-á regra, substituindo o devido processo penal e atentando contra a “tradição processual do protagonismo judicial” (ZILLI, 2017, p. 3) da ordem jurídico-penal brasileira, porque, entre colaborar e receber as benesses arbitrariamente negociadas e sem previsão legal, e não colaborar e sujeitar-se às incertezas – necessárias, porque assecuratórias de direitos e garantias fundamentais, como contraditório e ampla defesa, direito ao silêncio, presunção de inocência, julgamento por juiz competente, independente e imparcial, entre outros – do processo penal, a decisão será inequivocamente pela cooperação processual.

Por fim, há de se notar que o modelo negocial adotado nos acordos de cooperação processual firmados na Operação Lava Jato pode ir de encontro às próprias finalidades do instituto, uma vez que, como observado por Bottino (2016) ao analisar tais acordos, transparece que os “benefícios concedidos extrapolaram, em muito, as hipóteses previstas na lei, sugerindo um desequilíbrio entre os incentivos para cooperação e os desincentivos à falsa cooperação”. Em outros termos, a ciência de que não há limites aos benefícios de que poderá gozar em caso de colaboração efetiva com a persecução penal dá azo a chances reais de incriminação de terceiros inocentes pelo colaborador, com o fito exclusivo de percepção das sanções premiais. Nessa linha, elogiável a observação do Ministro Gilmar Mendes em seu voto em Questão de Ordem na Petição n.º 7.074/Distrito Federal (BRASIL, 2017, p. 200), ao afirmar que um “sistema que oferece vantagens sem medida propicia a corrupção dos imputados, incentivados a delatar não apenas a verdade, mas o que mais for solicitado pelos investigadores”.

4 ANÁLISE CRÍTICA DOS BENEFÍCIOS CONCEDIDOS NOS ACORDOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA CELEBRADOS NO ÂMBITO DA OPERAÇÃO LAVA JATO

A seguir, far-se-á uma análise crítica de algumas das sanções premiais pactuadas nos acordos de cooperação processual celebrados na Operação Lava Jato, por meio de sua descrição e demonstração das ilegalidades neles contidas.

4.1 ACORDO DE COLABORAÇÃO DE ALBERTO YOUSSEF - PETIÇÃO N.º 5.244, STF

Como ressaltado alhures, o art. 4º, caput, da Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013) prevê o benefício de redução de até dois terços da pena privativa de liberdade. Não obstante, tornaram-se notórios acordos contendo cláusulas dispensando frações de redução superiores ao marco legal, dentre os quais se sobressai o do doleiro Alberto Youssef, condenado a um total de 122 anos de prisão (BRANDT; AFFONSO; MACEDO, 2017), mas a quem fora concedido na cláusula 5ª, incisos III e V, de referido acordo (MACEDO, 2015), a vantagem de cumprir a pena privativa de liberdade em regime fechado por lapso não superior a cinco e não inferior a três anos, iniciando-se a partir de sua assinatura, e após cujo cumprimento obter-se-ia progressão per saltum, diretamente para o regime aberto, mesmo que não preenchidos os requisitos legais.

As ilegalidades são não apenas ostensivas, como teratológicas. A começar pelo montante de redução da pena, de quase noventa e oito por cento, considerando a soma das condenações e o período efetivamente cumprido em regime fechado, de dois anos e oito meses (CARAZZAI, 2016) – ainda menor que o estipulado.

Não há recurso exegético que legitime diminuição de pena superior à razão prevista em lei, ou dúvida sobre a ilegalidade de tal disposição do interesse punitivo do Estado. As razões atinentes à violação da legalidade e da reserva de lei, além do princípio da separação de poderes, já foram expostas, de modo que se evitará repeti-las. Mas outras questões devem ser postas diante deste rematado absurdo jurídico: se é verdadeiro o brocardo verba cum effectu, sunt accipienda (“não se presumem, na lei, palavras inúteis”), como se admitir tamanho desvio na aplicação da lei penal? Se o dispositivo prevê redução máxima de dois terços, como permitir diminuição em patamar superior? Com este exato entendimento, lecionam Canotilho e Brandão (2017, p. 147):

[…] o princípio da separação de poderes, que se procura garantir e efectivar através da prerrogativa de reserva de lei formal ínsita no princípio da legalidade penal, seria frontal e irremissivelmente abatido se ao poder judicial fosse reconhecida a faculdade de ditar a aplicação de sanções não previstas legalmente ou de, sem supedâneo legal, poupar o réu a uma punição. É o que sucederia, por exemplo, no caso de atenuação de uma pena de prisão para lá da redução de “em até 2/3 (dois terços)” prevista no caput do art. 4o da Lei 12.850/2013 [...]

Outra ilegalidade patente é a fixação da pena final e em cada regime de cumprimento no acordo de colaboração. Identificam-se os seguintes vícios: a uma, a dosimetria da pena é de competência do magistrado, conforme o art. 59, caput e incisos, do Código Penal (BRASIL, 1940), de maneira que mencionada cláusula acarreta usurpação da função jurisdicional. A duas, a homologação de acordo que a contenha importa em antecipação de julgamento do colaborador – de acordo com o Manual de Colaboração Premiada da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (BRASIL, 2014, p. 8) – que, embora confesse o(s) delito(s), não poderá ser condenado sem que haja acervo probatório suficiente para tanto.

Por fim, a progressão per saltum é vedada não apenas pelo art. 112, caput, da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), como também pela jurisprudência sumulada (enunciado n.º 491) do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2012).

Ademais, há de se questionar e legalidade da cláusula 7ª, §§ 3º, 4º, 5º e 6º, do acordo em questão (MACEDO, 2015), que concede a liberação do uso de bens móveis e a propriedade de bens imóveis, provenientes de origem ilícita, em favor de familiares do colaborador. Obviamente, inexiste arrimo legal para quaisquer destas disposições, o que levou o Supremo Tribunal Federal a realizar verdadeiro “malabarismo” interpretativo para lhes conferir validade quando do julgamento do Habeas Corpus n.º 127.483/Paraná (BRASIL, 2015). Em suma, a Suprema Corte afirmou a validade da cláusula porque (VASCONCELLOS, 2018, p. 171):

a) as convenções de Mérida e Palermo, introduzidas no ordenamento brasileiro, autorizam tais medidas a partir de uma interpretação teleológica de seus dispositivos; b) a partir da lógica do “quem pode o mais, pode o menos”, já rebatida anteriormente, não haveria impedimento a outros tipos de benefícios, ao passo que pode ser concedido até o perdão judicial ou o não oferecimento da denúncia;31 e c) tendo em vista que o colaborador tem direito à proteção, o que será garantido pelo Estado posteriormente, não há motivo para vedar medidas imediatas nesse sentido.

Quanto ao primeiro fundamento, deduziu o Tribunal que, pelo fato de o art. 26, 2, da Convenção de Palermo (BRASIL, 2004) – Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – e o art. 37, 2, da Convenção de Mérida (BRASIL, 2006) – Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – preverem, respectivamente, que o Estado considere a possibilidade de, nos casos apropriados, reduzir/mitigar a pena dos que colaborem com a investigação e julgamento dos delitos de que tratam as Convenções, uma interpretação teleológica das expressões “redução de pena” e “mitigação de pena”, previstas nos referidos documentos internacionais, “permite que elas compreendam, enquanto abrandamento das consequências do crime, não apenas a sanção penal propriamente dita, como também aquele efeito extrapenal da condenação” (BRASIL, 2015, p. 60), referindo-se ao confisco, pela União, “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”, previsto no art. 91, inciso II, alínea b, do Código Penal (BRASIL, 1940).

Para além da total ausência de cobertura legal do conteúdo da cláusula em comento, a interpretação dos dispositivos acima levada a efeito pela Corte Suprema é absolutamente desarrazoada. Ambas as Convenções visam claramente fazer com que os Estados signatários assumam o compromisso de, no direito interno, mediante regulamentação expressa, estabelecer sanções premiais (reduções de pena, por exemplo) aos colaboradores que auxiliem a justiça no esclarecimento dos crimes de corrupção e de organização criminosa transnacional, o que foi realizado pela Lei das Organizações Criminosas ao definir os benefícios penais passíveis de concessão, exsurgindo daí o dever de respeito à legalidade e às opções legislativas de política criminal nela consagradas.

Em verdade, as Convenções de Palermo, no art. 12, 1, a (BRASIL, 2004), e de Mérida, em seu art. 31, 1, a (BRASIL, 2006), determinam que cada Estado Parte adote, no maior grau permitido por sua ordem jurídica interna, as medidas que sejam necessárias para autorizar o confisco do produto de delito qualificado de acordo com as Convenções ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto. Todo o oposto do decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Ademais, validar tal cláusula mediante o subterfúgio de uma “interpretação teleológica” significa avançar a passos largos na direção da arbitrariedade judicial, devido à impossibilidade de justificação racional da decisão que abrange nos termos “redução” e “mitigação” da pena um efeito extrapenal da condenação (confisco), previsto em norma imperativa, cogente, de Direito Público, e absolutamente indisponível pelo Poder Judiciário e os pactuantes do acordo de colaboração. Ademais, como já demonstrado, bem nenhum faz o argumento a fortiori nesse campo: não há lacuna a ser preenchida entre as possibilidades de vantagens previsíveis nos acordos de cooperação (CANOTILHO; BRANDÃO, 2017, p. 156-157), que formam o rol taxativo descrito na Lei n.º 12.850/13. Nesse sentido a lição de Pereira (2016, p. 151) ao concluir, em sua excelente análise sobre a matéria, que “a solução é um pouco mais complexa do que poderia sugerir um raciocínio embasado na lógica simplista de ‘quem pode o mais, pode o menos’, pois a relação entre sanções penais e civis é de qualidade, e não de quantidade”.

Por fim, comentando a decisão de validar a cláusula sob o fundamento de que se o art. 5º, inciso I, da Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013), prevê o direito do colaborador a “usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica”, liberar imóveis adquiridos com o produto do ilícito é vantajoso ao Estado por desonerá-lo de tal obrigação, assevera Vasconcellos (2018, p. 172), em tom crítico, que “há uma distinção profunda entre a legítima e legalmente regulada concessão de medidas protetivas (por meio das disposições da Lei 9.807/99) em comparação com uma incontrolável abertura a cláusulas discricionárias previstas ad hoc”, como as presentes no acordo em comento.

4.2 ACORDO DE COLABORAÇÃO DE JOSÉ SÉRGIO DE OLIVEIRA MACHADO - PETIÇÃO N.º 6.138, STF

No acordo de colaboração premiada de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, são numerosas as disposições ilegais, sendo a primeira delas contida na cláusula 5º, caput e parágrafo 1º, alínea a, que preveem um limite máximo de vinte anos de prisão a ser imposta ao colaborador em todos os processos criminais cujos objetos coincidam com os fatos revelados por meio da colaboração pactuada, mediante a suspensão dos “demais feitos e procedimentos criminais na fase em que se encontrem quando atingido esse limite” (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a).

Há de se tecer severas críticas à cláusula predita. Inicialmente, como avalia Jardim (2016) ao analisar cláusula de teor semelhante em acordo de colaboração também celebrado no âmbito da Operação Lava Jato, consigna-se que:

1) O acordo de cooperação premiada não pode produzir efeitos em outras investigações ou processos. O indiciado ou réu só pode ser beneficiado pela sua delação em face daqueles crimes que ajudou a apurar, vale dizer, naquele processo onde foi homologado o acordo;

2) Por isso, não pode ser homologado acordo de cooperação que estipule, para o futuro, um limite de penas. Isto não está previsto na lei que trata da organização criminosa, não podendo o órgão do Ministério Público e um criminoso "legislarem" e contrariarem normas de Direito Público;

3) O Código de Processo Penal não autoriza esta suspensão do processo. Não há previsão legal para paralisar um processo por que o réu já está condenado a esta ou aquela pena [...]

A adstrição das sanções premiais à investigação ou ao processo em que foi prestada a cooperação pelo imputado é de ordem lógico-jurídica, de modo que não seria razoável a irradiação de seus efeitos a processos em relação aos quais não houve efetiva colaboração.

Em outra seara, mostra-se claramente ilegítima tal disposição não apenas em face da ilegalidade por ausência de cobertura legal, vício que acomete todas as cláusulas ora analisadas, mas também pela violação das premissas do processo penal brasileiro e da principiologia da ação penal. Ora, a previsão de suspensão das investigações e processos-crime em trâmite contra o colaborador quando do atingimento de sanções de certa monta constitui inequívoca violação aos princípios – ou regras, devido à sua estrutura normativa, para alguns (LOPES JR., 2017, p. 199) – da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, previstos nos arts. 24 e 42 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), respectivamente, afinal, o Ministério Público estará se comprometendo a deixar de oferecer a ação penal na presença de justa causa, e, estando em curso o processo, postular sua suspensão (e da prescrição) pelo período de dez anos – cláusula 6ª, caput e parágrafo 1º, do acordo sob estudo (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a) –, após o qual os feitos permanecem suspensos, mas voltarão a correr os prazos prescricionais, conduzindo à extinção da punibilidade.

Não fosse o bastante, tal cláusula ainda configura verdadeira burla aos pressupostos para o oferecimento dos acordos de imunidade, previstos no art. 4º, § 4º, da Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013), permitindo que o Ministério Público pactue o não oferecimento da denúncia quando o colaborador é chefe da organização criminosa e/ou não é o primeiro a prestar efetiva colaboração.

Compartilhando da mesma visão, Canotilho e Brandão lecionam (2017, p. 162-163):

É certo que a Lei 12.850/2013 prevê, no § 2o do seu art. 4o, a possibilidade de suspensão do prazo para oferecimento de denúncia ou do próprio processo. Só que o faz não para viabilizar a impunidade, por via processual, do réu colaborador, mas para favorecer a prestação da colaboração pretendida. De maneira que essas suspensões só são admitidas se e na medida em que estejam a ser cumpridas as medidas de colaboração pactuadas (“(...) até que sejam cumpridas as medidas de colaboração”). Não se permite, assim, uma suspensão incondicionada como aquela que consta dos Termos de Colaboração Premiada.

Percebe-se aqui um intuito defraudatório do regime que permita uma sobrestação do procedimento através da omissão de denúncia inscrito no § 4o do art. 4o da Lei 12.850/2013. Neste preceito, o legislador permite, na verdade, que o Ministério Público se abstenha de oferecer denúncia contra o colaborador. Mas isso só se ele não for o líder da organização criminosa e for o primeiro a prestar efectiva colaboração. Estamos, pois, perante um caso especial de derrogação do princípio da legalidade da promoção processual, cujo accionamento está naturalmente sujeito a estes apertados pressupostos.

Prevendo a lei um mecanismo processual próprio para subtrair o réu colaborador à acção penal, é evidente que não pode ele ser subvertido e contornado através da criação de mecanismos sem sustentação legal destinados a alcançar o resultado para o qual a lei previu uma via processual própria. Lograr-se-ia dessa forma chegar a esse mesmo resultado prescindindo da reunião dos pressupostos de validade estabelecidos pela lei para conceder tal vantagem. A fraude à lei aí perceptível revela à saciedade a violação do princípio constitucional da legalidade processual.

A isso acresce um também ele notório sacrifício do princípio da obrigatoriedade da promoção processual, dado que por esta via é posto um travão absolutamente genérico e imponderado à perseguição de crimes do colaborador entretanto apurados, por mais graves e socialmente prejudiciais que sejam. [grifo próprio]

Além da limitação das penas de prisão, a previsão dos denominados regimes fechado e semiaberto “diferenciados” é também alvo de acesos debates doutrinários. Referido benefício, previsto na cláusula 5ª, parágrafo 1º, alínea b, subalíneas b.I e b.II, do termo de delação de Sérgio Machado (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a), consiste no cumprimento da pena em domicílio, em flagrante violação da normativa prevista para os regimes fechado e semiaberto nos arts. 34 e 35, do Código Penal (BRASIL, 1940), e arts. 87 a 92, da Lei n.º 7.210/84 (BRASIL, 1984).

Como se sabe, a prisão domiciliar só existe no sistema jurídico-criminal brasileiro como medida cautelar substitutiva da prisão preventiva, deferível nas hipóteses taxativas dos arts. 318 e 318-A, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), e para os condenados em definitivo que estejam em regime aberto, nos casos também taxativamente insertos no art. 117 da Lei n.º 7.210/84 (BRASIL, 1984). A previsão convencional de concessão de cumprimento domiciliar de pena ao condenado nos regimes fechado e semiaberto configura derrogação de normas de Direito Público e de caráter cogente, tratando-se de “sistema completamente ilegal, em total violação às disposições normativas do ordenamento brasileiro” (CAPEZ apud VASCONCELLOS, 2018, p. 170). Ao versar sobre a matéria, Jardim (2016, p. 3) afirma em tom peremptório que “[não] devem ser homologadas ‘delações premiadas’ que prevejam cumprimento de penas altas em regimes não permitidos pela lei penal ou de execução penal, prisão domiciliar para penas de dez anos”.

Não fosse o bastante, os Apensos 1 e 2 do Termo de Colaboração (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a), ao detalhar as regras impostas ao colaborador em tais regimes, preveem vantagens sem paralelo mesmo na legislação acerca da prisão domiciliar, como datas previstas de saída da residência, hipóteses de saída emergenciais e lista de visitantes autorizados. Criticando a teratologia das cláusulas em questão, aduz Bottino que (2016):

Negociações sobre substituição de prisão cautelar por prisão domiciliar com tornozeleira, invenção de regimes de cumprimento de pena que não existem […] constituem medidas claramente ilegais e que aumentam enormemente os riscos de que tais colaborações contenham elementos falsos (ou parcialmente verdadeiros).

Embora cláusula de tal cariz possua guarida na jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, é salutar que se ressalte a percuciente conquanto minoritária posição externada pelo Min. Ricardo Lewandowski, que negou-lhe homologação na Petição n.º 7.265/Distrito Federal (BRASIL, 2017) porquanto:

[…] validar tal aspecto do acordo, corresponderia a permitir ao Ministério Público atuar como legislador. Em outras palavras, seria permitir que o órgão acusador pudesse estabelecer, antecipadamente, ao acusado, sanções criminais não previstas em nosso ordenamento jurídico, ademais de caráter híbrido. [...]

Outra previsão de inserção injustificável no acordo em comento é a da cláusula 10ª (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a), em que o Ministério Público assume o compromisso de, nas ações de improbidade administrativa que propuser em face do colaborador ou suas empresas em razão dos fatos abrangidos no acordo, postular que a sentença produza efeitos meramente declaratórios (caput); se preditas ações forem ajuizadas por outros legitimados, o Ministério Público se compromete a pleitear, enquanto fiscal da lei, que a sentença produza efeitos meramente declaratórios (parágrafo 1º); por fim, tendo as ações sido propostas por outros legitimados, o órgão ministerial também assume a obrigação de “empreender gestões” junto à parte autora para que reconheça os valores estipulados no acordo de colaboração como satisfativos de sua pretensão (parágrafo 3º).

Os vícios contidos na cláusula são claros: além da sabida violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei, uma vez que a legislação sobre cooperação premiada não conhece benefícios dessa estirpe – extensíveis a esfera diversa da criminal e a pessoas, inclusive jurídicas, diversas do colaborador –, também há lesão a um dos princípios fundamentais do Direito Público, qual seja o da indisponibilidade do interesse (neste caso, o patrimônio) público. Este último encontra reflexo no art. 17, § 1º, da Lei n.º 8.429/92 (BRASIL, 1992), que veda expressamente a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa, reforçando seu caráter indisponível, infelizmente ignorado na patológica prática negocial instaurada nos processos da Operação Lava Jato. Nesse sentido, leciona BITTAR (2016):

Além da inexistência de previsão legal para a oferta de um prêmio não previsto na legislação sobre a delação premiada no Brasil[11], há outros motivos determinantes para repelir a aplicação de benefícios ao indivíduo que figure como colaborador na esfera penal, em face dos desdobramentos decorrentes dos atos de improbidade administrativa, “pois importaria na disposição dos mecanismos de proteção do patrimônio público moral e material e esvaziamento por completo da ação”[12].

Há doutrina que defenda que, não obstante a ausência de previsão na Lei n.º 12.850/13, “a aplicação dos efeitos do acordo de colaboração premiada na área da improbidade é uma decorrência do princípio constitucional da moralidade administrativa, que impõe que o Estado agirá com lealdade”, o que se daria pelo respeito às expectativas do administrado, evitando comportamentos contraditórios do Estado (non venire contra factum proprium) (FONSECA, 2017 apud VASCONCELLOS, 2018, p. 174).

A posição em questão não apenas ignora os óbices legais supramencionados, mas também carece de fundamento na medida em que não há incoerência ou contradição em uma diretriz estatal que admita concessões na esfera penal, desde que amparadas em lei, e, simultaneamente, consinta na persecução em juízo da reparação do erário através das ações de improbidade administrativa, que possuem caráter punitivo, mas inquestionavelmente cível. Enxergar nessa situação uma suposta violação aos princípios de lealdade e boa-fé que devem orientar a Administração Pública é desconhecer a essência da moralidade administrativa que a Carta Magna buscou preservar em seu art. 37 (BRASIL, 1988), especialmente porque, não havendo previsão legal, não estivesse dito benefício sendo concedido nos acordos de colaboração premiada pactuados no âmbito da Operação Lava Jato, os potenciais colaboradores não poderiam legitimamente nutrir a expectativa de auferir vantagens de tal natureza em caso de cooperação.

Por fim, importa discorrer brevemente sobre as disposições da cláusula 5ª, parágrafo 4º (CONSULTOR JURÍDICO, 2016a), do acordo em questão, em que o Ministério Público compromete-se a não oferecer denúncia nem de nenhum modo propor ação penal por fatos abrangidos pelo acordo em desfavor de quaisquer dos familiares do colaborador nele nomeados, e, em contrapartida, tais familiares forneceriam elementos de prova em sua posse, a serem apresentados pelo colaborador ao Ministério Público (alíneas a e b). Ademais, a rescisão do acordo por culpa do colaborador, independentemente de culpa dos familiares, ocasiona a rescisão das estipulações a estes relativas, porque acessórias (alínea g). É o instituto do “acordo acessório” (GOMES; SILVA, 2015 apud VASCONCELLOS, 2018, p. 175).

Primeiramente, tal cláusula é questionável devido à transcendência dos efeitos do acordo de cooperação a terceiros, ainda que familiares do colaborador. A colaboração premiada possui requisitos de admissibilidade e de validade, estudados sobretudo em sede doutrinária, relacionados, respectivamente, à proporcionalidade da medida e à sua voluntariedade, inteligência e adequação (VASCONCELLOS, 2018, p. 129-161), sendo que tais pressupostos não podem ser ignorados pelo Ministério Público mediante cláusula que proporcione imunidade penal – o mais vantajoso e excepcional dos benefícios – a pessoa diversa do colaborador, o que exigiria colaboração efetiva desta e novo acordo de colaboração premiada.

Outra circunstância de especial gravidade é o elo existente entre o acordo “principal”, celebrado com o colaborador, e o “acessório”, representado pela cláusula que estende seus efeitos a terceiros, mas também seu destino, em caso de rescisão do primeiro. O acordo de colaboração é personalíssimo (ZILLI, 2017, p. 5), e, firmado acordo acessório, afigura-se ilegítimo seu rompimento por força da rescisão do principal, mormente se a colaboração do prejudicado houver sido efetiva. Nesse caso, inclusive, não seria absurdo invocar o princípio da moralidade como impeditivo da solução adotada nesse termo de colaboração, pois verdadeiramente frustrante das legítimas expectativas geradas pelos terceiros beneficiários. Sobre o assunto e no mesmo sentido, o escólio de Vasconcellos (2018, p. 176):

Deve-se ressaltar, ainda, a ilegitimidade da vinculação entre os termos de colaboração premiada em uma lógica de “principal” e “acessório”. Cada acordo deve ser independente, com obrigações e benefícios especificamente determinados, que não podem depender de outros negócios.44 Portanto, as cláusulas que impõem a rescisão dos pactos acessórios em razão da rescisão do principal são inadmissíveis e devem ser anuladas.

Porém, a principal crítica que se faz a essas cláusulas tem por fundamento o extraordinário instrumento de pressão que a possibilidade de sua previsão fornece ao Ministério Público para coagir o imputado à colaboração. Não se faz necessário aprofundado exercício de raciocínio para concluir que, entre colaborar e evitar a persecução penal contra seus familiares, e não fazê-lo, mas sujeitá-los a um processo-crime e todas as suas agruras, com as graves repercussões familiares, sociais e econômicas que lhe são inerentes e a potencial privação da liberdade ao final, a opção será pela colaboração, o que acarreta a invalidade do acordo devido à ausência de voluntariedade na pactuação, um dos pontos mais sensíveis do mecanismo negocial e requisito legalmente reconhecido do acordo – no art. 4º, caput e § 7º, da Lei n.º 12.850/13 (BRASIL, 2013) –, e assim também considerado e enfatizado pela Corte Suprema no Habeas Corpus n.º 127.483/Paraná (BRASIL, 2015, p. 32).

4.3 ACORDO DE COLABORAÇÃO DE DELCÍDIO DO AMARAL GOMEZ - PETIÇÃO N.º 5.952, STF

No acordo de colaboração de Delcídio do Amaral (CONSULTOR JURÍDICO, 2016b), ex-Senador da República pelo Partido dos Trabalhadores, cumpre examinar a cláusula 13ª, acometida de patentes ilegalidades ao dispor que a prisão cautelar em cumprimento pelo colaborador antes do fechamento do acordo seria substituída por condições “equivalentes ao regime semiaberto domiciliar” (supradescrita criação do Ministério Público), que seriam cumpridas no período de um ano e seis meses a partir da homologação do acordo. Não obstante o recolhimento domiciliar, permitiu-se o exercício de atividade parlamentar ou, em sua perda, de atividade privada previamente comunicada (inciso 1), além de permissão para viajar para cidades determinadas em dois fins de semana mensais (inciso 8). Cumprido esse período, ajustou-se ainda a submissão a regime aberto domiciliar pelo período de um ano (cláusula 14ª).

São numerosos os vícios contidos nessas cláusulas, e que, novamente, ultrapassam a mera violação da legalidade. O primeiro aspecto a ser analisado é a evidente finalidade de imposição antecipada e imediata de pena, numa verdadeira obliteração das garantias processuais penais do acusado e dos valores constitucionais mais caros ao Estado Democrático de Direito, a exemplo da presunção de inocência, do devido processo legal e do juiz natural. Não fosse a pronta aplicação da pena o objetivo da cláusula, não ter-se-ia fixado o prazo de duração – que inexiste em lei para a prisão cautelar, com exceção da temporária – do que foi eufemisticamente denominado “condições equivalentes ao regime semiaberto domiciliar”. Transparece, ademais, a intenção do Ministério Público em converter-se em acusador e julgador, em absoluto desrespeito ao sistema acusatório constitucional, mediante a decretação de uma pena a partir da homologação do acordo e sem condenação judicial. Neste ponto, são valiosas as críticas de Canotilho e Brandão (2017, p. 159):

14.1. Acordos de colaboração premiada dotados de cláusulas estipuladoras de que o cumprimento de pena privativa da liberdade se inicia a partir da assinatura do acordo de colaboração premiada e que “o colaborador cumprirá imediatamente após a assinatura do presente acordo a pena privativa de liberdade em regime fechado”46 são clamorosamente ilegais e inconstitucionais.

O início de uma pena criminal, ainda para mais por simples e directa determinação do Ministério Público, sem que haja uma sentença judicial que a decrete configura uma autêntica aplicação de pena sine judictio e sine judex. Nada que, obviamente, se possa aceitar num Estado de direito. A jusestadualidade que deve caracterizar a República Federativa do Brasil e comandar a acção de todos os seus órgãos não consente que um réu sofra a execução de uma pena criminal sem um prévio e devido processo penal (art. 5o, LIV, da Constituição). Tal como não consente, por mor da reserva absoluta de jurisdição dos tribunais em matéria de aplicação e execução de penas criminais, que uma decisão dessa natureza seja tomada por um órgão externo ao poder judicial47, como é o Ministério Público (art. 5o, XXXV e LIII, da Constituição).

Ademais, questionável a própria existência de cautelaridade para a manutenção de referida medida, devido à incompatibilidade entre a atitude cooperativa do imputado e a presença de uma situação que configure o perigo em seu estado de liberdade (periculum libertatis), fundamento da prisão preventiva e das demais medidas cautelares pessoais (LOPES JR., 2017, p. 582). Nesse sentido, Mendes e Barbosa (2016 apud VASCONCELLOS, 2018, p. 153), com precisão, afirmam “ser incompatível o expediente da prisão provisória (temporária e preventiva) e a obtenção da ‘colaboração’ em acordos de investigados/as ou réus/rés com liberdade cerceada”.

Por fim, não se pode deixar de aludir à cláusula 22ª, alínea a (CONSULTOR JURÍDICO, 2016b), em que foi estipulado que, “no caso de o colaborador ser condenado ao pagamento da pena de multa a que se refere o art. 58 do Código Penal, esta será limitada ao mínimo legal”. A ilegalidade em tal cláusula reside em que a fixação da pena de multa submete-se à cláusula de reserva de jurisdição, conforme os arts. 59 e 60 do Código Penal (BRASIL, 1940), de maneira que a obrigatoriedade convencional de que ela seja aplicada no mínimo legal subtrai ao magistrado o poder de realização da dosimetria tendo por parâmetros os critérios legais, o que viola, ademais, o princípio do juiz natural. Exatamente por esta razão a negativa de homologação de cláusula semelhante pelo Ministro Ricardo Lewandowski na Petição n.º 7.265/Distrito Federal (BRASIL, 2017, p. 24), justificada nos seguintes termos:

Quanto à fixação de multa, consigno que, às partes, apenas é lícito sugerir valor que, a princípio, lhes pareça adequado para a reparação das ofensas perpetradas, competindo exclusivamente ao magistrado responsável pela condução do feito apreciar se o montante estimado é suficiente para a indenização dos danos causados pela infração, considerados os prejuízos sofridos pelo ofendido, a teor do art. 387, IV, do Código de Processo Penal.

Em tal ponto, novamente há de se invocar a autoridade de Canotilho e Brandão (2017, p. 157-158), que, comentando sobre dita espécie de cláusula, afirma tratar-se de convenção sem embasamento legal, ferindo o princípio da jurisdicionalidade, em razão da apropriação da função jurisdicional pelo órgão ministerial, e o princípio da culpa, porque a culpabilidade torna-se irrelevante para a determinação da quantidade de pena.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A expansão dos espaços de consenso no Direito Penal brasileiro tem sido uma tendência desde a Constituição da República de 1988, com a paulatina introdução de mecanismos negociais destinados à facilitação e aceleração da resposta do Estado ao delito. A maior evidência de referido movimento, além da recente Resolução 181/2017 do CNMP, que introduziu os acordos de não persecução penal, é o art. 283 do Projeto do Novo Código de Processo Penal (PL 8045/2010), em trâmite no Congresso Nacional, que prevê a possibilidade de plea bargain para delitos com penas privativas de liberdade não superiores a oito anos.

Não obstante, a utilização dos mecanismos de consenso pelos órgãos de persecução criminal de modo arbitrário não afigura-se legítima. No que toca à concessão de benefícios extralegais nos acordos de colaboração premiada, percebeu-se que, em face do panorama constitucional e infraconstitucional brasileiro atual, a prática forense avalizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal apresenta incompatibilidade com as garantias processuais penais fundamentais do imputado – máxime o princípio da legalidade, da reserva legal e da separação de poderes – e com a regulamentação da Lei de Organizações Criminosas.

Ainda que a Lei n.º 12.850/13 tenha representado um claro avanço em direção à segurança jurídica exigida para o colaborador processual, mediante a formalização de acordo escrito com os órgãos de persecução criminal, são igualmente manifestas as lacunas da atual legislação em diversos aspectos fundamentais do acordo. Especialmente quanto aos benefícios extralegais, já existe proposição legislativa destinada a regulamentar em caráter exclusivo o instituto da colaboração premiada, contendo dispositivo em que se veda expressamente a concessão de benefícios nela não previstos.

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Sobre o autor
Vinicius Basso

Acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Campus Toledo.

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