RESUMO
Este artigo tem o propósito de discutir questões pertinentes à institucionalização da democracia participativa no Brasil, através da análise da participação popular no controle das ações governamentais. Neste contexto de gestão pública participativa, o papel dos conselhos gestores como instrumentos dialógicos de controle popular da Administração Pública permite aos cidadãos muito mais que a sua integração na co-gestão administrativa, pois admite que os mesmos possam identificar e contribuir na eleição de políticas públicas que favoreçam a realidade da própria comunidade a qual pertençam.
Palavras-chave: democracia participativa; participação popular; conselhos gestores; políticas públicas.
A abertura do novo viés democrático contemporâneo percebido pelo Estado brasileiro suscita algumas considerações referentes à atual conjuntura assumida pelos cidadãos no que se tem chamado de co-gestão da Administração Pública, tendo em vista que a institucionalização de instrumentos e procedimentos que permitam a vocalização da participação popular são cada vez mais indispensáveis para o fomento do processo de democracia participativa nos moldes constitucionais.
Por essas razões é que se levanta a necessidade do entendimento da dinâmica de novos institutos que vêem sendo injetados para a construção de uma Administração Pública dialógica, em busca de resultados efetivos ao atendimento do interesse público, cuja nova identidade democrática impulsiona a abertura do discurso entre os cidadãos/administrados na busca do bem comum, proposta a qual se remete os denominados conselhos gestores.
Analisar o papel que esses conselhos buscam assumir importa, inicialmente, na anuência de que funcionem como mecanismos de participação popular na esfera da Administração Pública, haja vista o esforço de se promover a efetivação da democracia participativa no Brasil e o reconhecimento do desafio do cidadão ativo em sua missão de co-responsabilidade pela gestão pública, corroborando na assunção de novas políticas sociais.
Isso significa uma verdadeira ruptura em relação ao postulado historicamente subjugado aos cidadãos no que tange à sua perpetuada posição passiva outrora assumida por conta da imposição de regimes políticos antidemocráticos e repressores de qualquer forma de manifestação da opinião pública no âmbito de reivindicações perante o Poder Público, tal como se verifica nos tempos de governos autoritaristas do século passado, principalmente a ditadura militar estabelecida no pós-golpe de 1964. [01] Indubitavelmente, o grande giro da democracia brasileira lograda pela Constituição da República de 1988 foi a possibilidade de integração da sociedade civil no processo de discussão política, sobretudo na legitimação de fóruns para a eleição de políticas públicas prioritárias à gestão pública, o que antes, durante o apogeu do Estado centralizador e autoritário, tamanha abertura seria insustentável. [02]
Diante dessa problemática, o presente artigo tem por objetivo analisar o papel dos conselhos gestores – canais de vocalização democrática – sob a perspectiva do controle popular sobre as políticas públicas no âmbito da gestão local. Para isso, é fundamental entender em que intensidade tais conselhos funcionam como instrumentos de participação popular efetiva na Administração Pública e em que medida isso realmente tem contribuído para a democracia participativa, enfatizando a natureza deliberativa e consultiva dos mesmos e os reflexos que isso representa na construção de políticas públicas.
Sendo assim, o trabalho é iniciado com uma abordagem crítica sobre as discussões que têm girado em torno da democracia participativa, buscando a sua adequação para o contexto democrático brasileiro e os efeitos que isso pode gerar na dinâmica da Administração Pública. Também serão apresentados os elementos necessários à compreensão da dinâmica desses novos institutos que funcionam como canais democráticos de participação, cuja finalidade é promover o controle político e social da Administração Pública, interferindo no mecanismo da gestão pública e na esfera da discricionariedade administrativa.
1. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO SUSTENTO À SOBERANIA POPULAR
Através da "Constituição Cidadã" de 1988 tem-se permitido a introdução de mecanismos de integração do povo no processo de construção e de manutenção do Estado brasileiro [03]. Gradativamente, ocorre o alargamento da abertura da participação dos cidadãos em torno das discussões acerca da gestão pública, como forma de efetivação da soberania popular. Cada cidadão deve assumir parcelas do contexto do poder do Estado para que haja a circulação desse mesmo poder, identificando-se, assim, com a concepção de poder político difundida na teoria discursiva de Jürgen Habermas (1997, p. 169-240). Essa teoria se finaliza na idéia de que uma democracia deve fomentar procedimentos para a abertura do discurso entre os indivíduos, de maneira tal que o que for deliberado através do consenso produzido pela força do melhor argumento seja uma decisão legitimada e aceita perante os seus signatários (a própria comunidade afetada a que diz respeito).
A máxima da soberania popular é perfeitamente consubstanciada nas determinações arroladas no art. 1º, Parágrafo único, da CR/88, que remete a máxima de que "[...] todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente [...]"(BRASIL, 2004). Destaca-se, portanto, que a concepção de ascensão do poder do povo é marca característica de nossa recente democracia [04], que constitucionalmente deve ser expressada por uma via dúplice: o exercício decorrente da representação e aquele praticado de maneira direta pelo próprio povo.
Esse modelo de democracia e a democracia representativa admitem a possibilidade de duas formas de combinação: "coexistência e complementaridade" (SANTOS, 2002, p. 75). Canotilho (1992) aponta tal tendência de democracia como uma crítica à teoria pluralista da democracia (processo de formação da vontade democrática por grupos definidos), funcionando como alternativa ao impasse do sistema político representativo, insuficiente para garantir a efetivação do Estado Democrático de Direito.
Tal viés democrático já vem sendo discutido como o fortalecimento da então denominada democracia participativa (SOARES, 1997), pautada em direitos participativos e princípios democráticos (HABERMAS, 1997), tendo ciência de que na democracia semidireta (referendo e plebiscito) foi quando se revelou as primeiras manifestações dessa tendência democrática (SILVA, 1992).
Com fulcro nessa percepção, verifica-se que a manifestação da participação do povo tem sido o ponto chave para que se possa observar o fomento da democracia moderna, afirmando, de tal forma, a materialização da proposta de soberania popular (art. 14 da CR/88) e de cidadania (art. 1º, inc. II, da CR/88), fundamentos do Estado Democrático de Direito. Por isso é que para a efetivação do princípio democrático são basilares os direitos fundamentais, incluindo-se aqui o direito de participação (CANOTILHO, 1992).
É certo que gradualmente a visão do Estado e suas relações com os indivíduos foi sendo modificada até que se chegasse à possibilidade jurídico-institucional de fortalecimento dos direitos e garantias individuais, culminando com a eclosão dos direitos sociais e, por conseguinte, difusos, até que se firmasse a idéia de participação e iniciativa popular como força expressiva de interesses do homem, enquanto cidadão ativo que assume a concepção de co-responsável pela gestão do Estado. Por óbvio, isso decorreu de um progressivo processo de conquistas, percorrendo todo o trajeto delineado pelos momentos vividos pelo Estado [05] e pela trajetória de amadurecimento dos direitos (OLIVEIRA, 2002).
Se em momentos históricos anteriores o Estado já assumiu deliberadamente as responsabilidades de seus consortes sobre os interesses maiores, gerenciando seu poder centralizador, com a assunção da CR/88 passa a transladar uma nova postura perante os seus sujeitos, onde se pode perceber uma co-responsabilidade necessária entre o próprio Estado e os próprios cidadãos (BARACHO JÚNIOR, 2000).
Não obstante permaneçam consolidados os seus três elementos constitutivos – território, povo e soberania, sendo o primeiro desses o único com características mais estáticas – o Estado de Direito, com aberturas legitimamente democráticas, não abre mão de sua soberania ao estabilizar um patamar de maior equilíbrio em sua relação com o povo. E é justamente isso o que representa a participação popular, o exercício do poder direto e vinculatório por meio do povo, componente e ao mesmo tempo destinatário do próprio Estado.
Todavia, tal participação, em suas variantes, concede ao povo, no âmbito da esfera pública, a faculdade de articular sua soberania, de maneira cada vez mais concreta, através de diversos instrumentos. Sob o enfoque da Administração Pública, é verificável o florescimento de novas tendências e instrumentos de inserção popular, tais como o orçamento participativo, as audiências públicas e, como fenômeno cada vez mais crescente nas esferas administrativas, os conselhos gestores.
Tais conselhos funcionam no Brasil vocacionados a se valerem como instrumentos democráticos de participação popular, revelando à primeira vista, a aparência do desenvolvimento de "uma nova cultura vinculada tanto à dimensão dos direitos sociais inscritos na Constituição de 1988 como à participação de uma pluralidade de atores sociais com presença na cena pública, na perspectiva de uma democracia participativa." (SANTOS JÚNIOR, 2003, p. 1).
1.1 A instrumentalização de uma democracia administrativa
Não há que se falar em democracia direta ou participativa sem se reconhecer eficácia na soberania popular, a qual deve gerar o poder de participação. Essa forma de pensamento envolve discussões sobre uma nova interpretação da relação do poder que o Estado detém sobre os cidadãos.
A visão de democracia na Administração Pública importa no atendimento mais próximo da vontade dos administrados e no reconhecimento do que eles entendem como parâmetro de bem comum. Deve permitir, através de espaços de comunicação, que a participação popular seja manifestada diretamente sobre as decisões da gestão pública. Baracho Júnior salienta que "a idéia de "democracia administrativa" surge como uma alternativa a este quadro de prevalência do poder estatal sobre os direitos de indivíduos e interesses da sociedade civil." (BARACHO JÚNIOR, 2000, p. 164).
Ingo Plöger, na apresentação feita à obra "Política e Governo", de Karl Deutsh, destaca que o poder importaria na possibilidade de um agente político modificar a probabilidade de que certos resultados se efetivem. Além disso, afirma:
"O peso do poder ou da influência do agente de mudar a probabilidade de certos resultados sobre determinado processo é a medida da capacidade de esse agente mudar a probabilidade de ocorrência de determinados resultados no processo político." (
Já que política importa na tomada de decisões pela via de meio públicos, preocupando-se, fundamentalmente, com o governo (DEUTSCH, 1983, p. 23), sob o ponto de vista democrático moderno, é essencial que hajam mecanismos para que a participação popular possa viabilizar o "poder soberano do povo".
É preciso, portanto, garantir aos indivíduos uma co-gestão ou co-responsabilidade repartida com os poderes institucionais do Estado em dirigir e auto-administrar o processo de controle e autocontrole da comunidade que integram.
No tocante a isso, significa uma verdadeira ruptura de pensamento histórico nacional, que, ao contrário, jamais privilegiou a realização de práticas e mecanismos de sustentação de uma cidadania participativa.
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, ratificando essa crítica, contribui através do seguinte comentário:
"O subdesenvolvimento econômico, a condição de país de Terceiro Mundo, a exclusão social de ¾ (três quartos) da população, somados a uma tradição/cultura política repressora e autoritária de todas as nuances da sociedade, podem explicar uma cidadania de baixa intensidade no Brasil."(CRUZ, 2004, p. 264)
Como proposta dessa necessidade de materialização da democracia participativa os conselhos gestores se despontam como instrumentos democráticos que entrelaçam a comunicação entre o Poder Público e o poder popular. Sua composição paritária integrada por cidadãos (e a sociedade civil em geral) e a esfera de poder governamental indica uma possibilidade de mudança de postulado referente ao processo de governo da res pública.
Contudo, tem-se considerado essa oportunidade como um reflexo da denominada "cidadania política", que significa "o direito de todos participarem do poder público" (ANASTASIA, 2002, p. 57), cuja eficácia desse "processo de empoderamento" de um poder tão difuso como se revela o próprio poder popular, depende de procedimentos específicos de instrumentalização que possam "monitorar e avaliar suas metas e resultados voltados ao interesse coletivo" (OAKLEY; CLAYTON, 2003, p. 27).
Essa tendência tomada pelos conselhos gestores parece aproximar-se do princípio da participação popular na gestão pública e no controle popular da Administração Pública, tal como vem destacando Maria Sylvia Zanella di Pietro (2004, p. 541).
No âmbito administrativo, se por um lado isso pode gerar interferência nos limites do poder discricionário do administrador público, por outro permite se fazer uma releitura do papel dos administrados – agora co-responsáveis pelas ações do próprio Estado. Ao revés, não se limitando à prerrogativa de direção e governo a partir da idéia dessa divisão de trabalho entre Estado e seus consortes, eis que o papel dos cidadãos nesses conselhos também pode se inclinar para a verificação da transparência na gestão pública. No caso, seu viés fiscalizador da probidade administrativa revelaria a sua função de controle prévio da Administração Pública, não obstante a importância do Poder Judiciário, através de sua prestação de controle jurisdicional.
É inegável que, seja num sentido ou em outro (fiscalizar, controlar, legitimar ou co-atuar), os cidadãos-administrados podem contar com o instituto dos conselhos como instrumento de aferição da democracia participativa.
1.2 Participação popular no controle das ações governamentais
A participação popular no controle das atuações do Estado decorre de um processo que, num primeiro instante, envolve o "poder comunicativo" do povo atuando na criação legislativa. Concretizada a atuação estatal, embasada no Estado de Direito, onde se tem por sustentáculo o princípio da legalidade, o complexo mecanismo participativo popular se levanta como forma de se reprimir condutas atentatórias contra tal princípio. É dessa maneira que "emerge a participação por controle" (SOARES, 1997, p. 75).
A finalidade do controle popular da Administração Pública é constatar se as ações desta estão se pautando em bases legais e atendendo ao interesse coletivo, na busca pelo bem comum.
Augustin Gordillo menciona a existência de uma administração paralela, que comporta, concomitantemente, procedimentos, competências e organização formais e informais, o governo instituído e o governo paralelo e, além disso, a existência de uma dupla moral, os quais subsistem tanto na vida pública, como na privada. Entretanto, cita que "[...] é só por meio da participação popular no controle da Administração Pública que será possível superar a existência dessa administração paralela e, em conseqüência, da moral paralela" (DI PIETRO, 2004, p. 80).
Maria Sylvia Zanella di Pietro refuta, na perspectiva de controle popular, o amadurecimento de mais um princípio de teor democrático: o princípio da participação do administrado na Administração Pública, "[...] dentro de um objetivo maior de descentralizar as formas de sua atuação e de ampliar os instrumentos de controle" (2004, p. 542).
Reconhecendo-se a participação popular como um direito fundamental do exercício da soberania, é de suma importância que o controle popular seja operacionalizado por instrumentos como os conselhos gestores, órgãos colegiados que funcionam como mecanismos de controle da Administração Pública e de cooperação na gestão pública.
Como muitos direitos que só se concretizam através da instituição de formas e mecanismos que possam instrumentalizá-los, garantindo a sua efetivação, os conselhos gestores são essenciais para que o direito de participação popular atinja o seu objetivo de controle da gestão administrativa.
Essa forma de participação do povo através das discussões com o Poder Público acerca da veracidade e viabilidade do mérito administrativo nas decisões discricionárias (como, por exemplo, a eleição e formatação de políticas públicas), é que tornam possíveis a co-gestão pública executada pelo Poder Executivo com a colaboração dos administrados, concretizando a Administração Pública dialógica. Certamente, esse papel vai muito além do controle político e social da gestão administrativa, revelando novos tempos na órbita do Direito Administrativo.
2. INSTRUMENTOS DE CONTROLE POPULAR
2.1 O papel dos conselhos gestores
Em virtude do grande impulso provocado pelas disposições da Constituição democrática de 1988, o processo de amadurecimento da democracia ora em expansão na sociedade brasileira tende a favorecer a atuação de órgãos de natureza "plurirepresentativa" e de atuação popular mais direta (LYRA, 1996, p. 17). Tais órgãos assumem o gozo da capacidade de determinar, conduzir ou fiscalizar as políticas públicas eleitas e as demais ações tomadas pela Administração Pública, a qual passa a ter um viés participativo que aproxima o público do privado.
Os conselhos gestores permitem a participação da sociedade civil nas discussões sobre o planejamento e na gestão das diversas políticas estatais responsáveis pela promoção de direitos fundamentais centrados em diferentes segmentos: saúde, educação, cultura, assistência social, habitação, dentre outros. Essa descentralização administrativa passa a ser vista como resultado da implantação do modelo democrático participativo. Tais "órgãos administrativos" permitem um co-gerenciamento do patrimônio público e o encaminhamento de ações destinadas ao atendimento do interesse coletivo.
A competência de cada conselho gestor reserva a tais órgãos a prerrogativa de intervir na promoção, defesa e divulgação dos direitos e interesses coletivos voltados às suas áreas específicas de atuação, de acordo com os moldes previstos na legislação que os constituiu. Assim, os assuntos discutidos como pauta de agenda de um conselho devem ser todos direcionados ou interligados à sua pertinência temática, conforme o setor público objeto de seu funcionamento, não obstante a possibilidade de entrelace com outros conselhos no caso de discussões de políticas plurisetoriais.
Diferente da postura assumida pelo modelo democrático de representação que prima pela institucionalização apenas de poderes do Estado, observada na proposta de exercício indireto do poder através da eleição direta de representantes e administradores públicos que falem em nome da vontade coletiva do povo que os elegeu (o que ocorre com os poderes Legislativo e Executivo), a representatividade vivenciada pela sociedade civil nos conselhos revela uma outra perspectiva. Ela comporta uma forma mais direta de participação popular e exercício do poder do povo através da delegação de atribuições aos interessados que passam a figurar como conselheiros nesses órgãos. Estes trabalham com bem mais autonomia, na medida em que essa representação comporta uma forma de delegação diferenciada de poder, tendência revelada pela democracia participativa. Significa que o poder difuso que sai do povo é materializado e fundido por meio de diversificados segmentos da sociedade civil, tais como associações de moradores ou associações não governamentais diversas, entidades classistas e profissionais, podendo negociar com o Poder Público as prioridades sociais mais relevantes, controlando as ações executivas.
O problema de paridade nos conselhos comporta sérias divergências. Rubens Pinto Lyra destaca que alguns Procuradores da República sustentam a idéia de que, em todos os colegiados que prevêem a participação da comunidade através de organizações representativas, essa participação necessitaria garantir a tais organizações uma presença paritária, sem o governo ter direito ao voto de Minerva ou ao poder de homologação (LYRA, 1996, p. 29).
Na defesa desses argumentos, os quais nos filiamos, deve-se considerar que a participação popular nos órgãos de governo significaria uma simples postura figurativa, no caso de se admitir a hegemonia do Poder Executivo.
A importância da paridade está para se garantir o peso nas decisões dentro dos próprios conselhos, permitindo uma coexistência de titularidade entre o Executivo e a soberania popular, através de sua participação mais direta. Isso é essencial para a efetivação da democracia participativa, ou, melhor especificando, na perspectiva de co-gestão pública, para se garantir a democracia administrativa através do controle popular.
Somente gozando de autonomia garantida pela paridade é que esse processo de controle popular viabiliza a efetivação da transparência nos atos da Administração Pública, à medida que contribui para a materialização de princípios constitucionais administrativos arrolados no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, principalmente no que tange aos princípios da moralidade e da eficiência. Raquel Raichelis comenta que "[...] o debate sobre os conselhos é de grande importância para a consolidação de espaços públicos efetivamente democráticos e participativos."(SOUTO; PAZ, 2003, p. 21).
A conclusão de efeitos mais imediatos dos conselhos depende, além da questão da paridade, da própria natureza com que os mesmos se revestem, de acordo com o que a lei instituidora estabelece como sua finalidade e o caráter no qual são dotados. Uma vez adotada a concepção de órgãos colegiados administrativos híbridos (em virtude da participação entre o público e o privado), quanto mais autonomia dispuserem para deliberar sobre o setor da gestão pública de sua competência, maior será a sua eficácia, enquanto canais de instrumentalização de poder popular.
No entanto, são conhecidas duas as formas de sua natureza: a deliberativa (que atribui aos conselheiros poder direto e vinculador de suas decisões graças à força coercível da lei que assim determina, influenciando na discricionariedade do administrador público), ou a consultiva. No que diz respeito a esta última natureza, apesar de suas decisões não vincularem diretamente a Administração Pública, ainda assim exercitam o controle popular político sobre o governo, informando a opinião pública acerca dos bastidores da própria governança, se as suas resoluções são efetivamente consultadas, e até que nível são acatadas. Também são de extrema validade para o processo de democracia administrativa, tendo em vista que sua criação por lei, apesar de não lhes assegurar necessariamente a vinculação de suas orientações (ao contrário do que se observa nos conselhos deliberativos), permite vislumbrar certo grau de obrigatoriedade, pois, afinal, a lei deve ser cumprida, sob pena de interjeições do Ministério Público e do Poder Judiciário, caso este seja provocado.
A natureza deliberativa de um conselho gestor concede-lhe a prerrogativa de sustentar um papel ainda mais eficaz no auxílio do Poder Legislativo, em sua função de controle da Administração Pública, do que um conselho de caráter meramente consultivo, não obstante as pressões que esse pode gerar e a sua importância.
Reforça-se, ademais, que a imperatividade resguardada pela força da lei nos conselhos gestores deliberativos produz o resultado de se vincular as suas decisões discutidas e consumadas, qualificando, em tese, os seus resultados. Assim é que se identificam como instrumentos de controle tanto do ponto de vista político, como social. Neste caso, esse controle se dá através da exigência em se sobrepor a vontade coletiva através do esclarecimento de como se concretiza o interesse público, buscando por meio de discussões sobre como atingir a eficiência na gestão administrativa, um situação de bem-estar à sociedade. Significa que esse controle social traz consigo uma conotação mais pragmática daquilo que deve compor a agenda administrativa, ou seja, no âmbito das discussões dos conselhos, devem ser levantadas as pautas que produzirão resultados que convergem ao encontro do interesse social de fato. Já no que tange ao controle político, a contribuição que a participação popular nesses conselhos promove dá-se no sentido de se atuar no campo da fiscalização, buscando a probidade na gestão pública, atendendo-se ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CR/88). Em níveis diferenciados de resultados alcançados, essas não deixam de ser a proposta de ambos os conselhos – deliberativos ou consultivos.
Em setores essenciais como a saúde e a educação, a existência de conselhos de natureza deliberativa demonstra a oportunidade e também o dever da sociedade civil em decidir, junto com o Poder Público, a gestão dessas áreas, elegendo quais são as prioridades que devem ser atendidas. Além disso, fiscalizam e exigem transparência no manuseio das despesas públicas e, por fim, sugerem a escolha de políticas públicas que atendam realmente ao interesse público de determinada comunidade.
Não obstante a efetividade maior que conselhos de natureza deliberativa dispõem, conclui-se que não se pode olvidar que os conselhos de caráter consultivo também se revestem de prerrogativas importantes para a democracia participativa. Esses instrumentos, somados a outros mecanismos de participação e controle, compõem o que se identifica como o sistema do checks and balances (freios e contrapesos) popular.
2.2 Controle popular das políticas públicas
A realização efetiva do regime democrático carece de certas prestações que materializem direitos fundamentais como os direitos à educação, à saúde e à assistência social, todos esses erigidos como direitos que devem ser coordenados por autonomias constitucionais. Tais variações integram o infindável universo das políticas públicas.
A noção de políticas públicas deve ser utilizada neste instante amparada no pressuposto do Direito Público e sua necessária co-relação com o interesse coletivo. As políticas públicas carecem ser melhor compreendidas para que assim não se confundam com simples tendências de poder político dominante e provocador do fenômeno da contra-circulação do próprio poder.
Precisam partir do pressuposto de que constituem missão dos órgãos políticos e questão essencialmente política, porém respaldadas nas necessidades públicas, traduzindo-se num produto final das aspirações de uma sociedade organizada.
De um modo geral, tais políticas são instrumentos de ação dos governos, os quais têm a determinação de governar utilizando-se do poder coativo do Estado a serviço da coesão social.
Por isso, as políticas públicas significam o poder de escolha do Governo em buscar e realizar ações voltadas ao atendimento da coesão social, resumida através das chamadas necessidades públicas. Acrescenta Maria Paula Dallari Bucci que:
"Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são metas coletivas conscientes e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato."(BUCCI, 2002, p. 241-242)
A contenção efetiva da discricionariedade (conjunto de barreiras em torno da esfera de direitos dos particulares) depende de decisões concretas sobre a ação da Administração Pública e de um controle material que os princípios clássicos da burocracia administrativa demonstraram ser insuficientes para prover. Uma vez definidos esses mesmos contornos, o Direito Administrativo teria seu âmbito de ação redefinido, no espaço que pondera entre as proposições legais e a execução das políticas.
A preocupação de se determinar e, mais a fundo, redefinir o interesse público por intermédio da escolha consciente dos cidadãos participantes, num processo de convergência de suas vontades (reconhecendo-se também a legitimidade do papel do legislador e do administrador público, constituindo uma verdadeira e constante circulação do poder), atingiria com eficácia as metas coletivas e primordiais, assim como os mecanismos de seu alcance.
O grande desafio do Estado brasileiro e de cada um de seus entes federados é justamente saber coordenar devidamente a execução das políticas públicas, sobretudo na perspectiva do Estado Democrático de Direito. Ao reverso, o que se tem assistido é que existe uma complexidade de leis e normas meramente declaratórias ou mesmo retóricas que não encontram nenhuma (ou quase nenhuma) eficácia, já que o seu poder coativo se dispersa no espaço intraestatal entre os momentos de decisão e de execução. O resultado são políticas públicas inoperantes.
Além do mais, justificado em uma discricionariedade equivocada e, por vezes, propositalmente mal interpretada, o administrador público acaba se desvirtuando de sua função de construir, em parceria entre as esferas pública e privada, as políticas necessárias a um maior número de destinatários.
Por causa disso é que se faz fundamental a participação popular na gestão administrativa, com dados e argumentos fornecidos pela própria sociedade civil, para se descobrir o que representa, de fato, a vontade coletiva da comunidade, fornecendo substrato para que o administrador, no campo de sua discricionariedade administrativa (democrática), possa eleger o que seja realmente prioritário e congruente para viabilizar as políticas públicas ou mesmo instituí-las. E nada mais justo que integrar os próprios destinatários dessas políticas no processo de sua escolha, modo e formação, atuando como co-autores e controladores políticos e sociais.
Nesta ênfase, os poderes do Estado, ao lado da força popular da qual se reveste a sociedade civil, entrariam complementando um processo participativo surgido a partir da vontade coletiva gradualmente edificada e consolidada, explicitada em espaços de discussão – os conselhos gestores de políticas públicas. A verdadeira escolha política, então, não deveria ser vista como aquela pertinente ao Legislativo ou ao Executivo, mas à esfera privada, ou seja, à vontade coletiva soberana.
A discussão de todas essas questões, inclusive abarcando a temática orçamentária, deve ser trazida para a tônica dos Conselhos de Políticas Públicas, pois além de controlarem a Administração Pública, legitimam a democratização de suas ações. Esses conselhos são fundamentais para que a comunidade possa identificar e expressar quais são seus reais interesses e quais as políticas identificadoras do bem comum, através da prestação de serviços públicos.
Entretanto, ao defender a indispensabilidade de limitações do poder popular nas decisões de governo (sobretudo aquelas que afetem o erário), justificando a necessidade de representação majoritária do Executivo nos Conselhos de Políticas Públicas ou, no caso de colegiado paritário, do voto de Minerva, para que o Chefe do Executivo não perca o seu "poder de governar", Rubens Pinto Lyra acrescenta que a falta desses elementos geraria distorções na esfera pública administrativa:
"A ocorrência dessa hipótese poderia gerar, como subproduto, a substituição da legitimidade derivada do sufrágio universal pela da de organizações com base social limitada, idôneas para exercerem influência e poder de pressão no seio do Estado e para conferirem transparência à gestão pública. Mas não para governarem em lugar do Governo. Se tal acontecesse, estaríamos em presença da ressurreição do vanguardismo: uma minoria de "iluminados" representantes da sociedade civil, escolhidos por uns poucos, governaria em lugar dos mandatários eleitos pelo voto da maioria da população. Ou então, prevalecendo o desacordo, a ausência do voto de Minerva poderia conduzir ao virtual engessamento da administração."
Não se trata de hipótese de substituição da legitimidade advinda do sufrágio universal. Na verdade, a autonomia de um Conselho de Políticas Públicas faz-se mister para que, através da sistemática integrativa da democracia participativa na qual este se vale de instrumento, possa-se efetivar a soberania popular, por meio da participação direta (art. 1º, Parágrafo único, da CR/88).