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Serendipidade, bricolagem, consiliência:

métodos de trabalho e de investigação

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Agenda 10/12/2005 às 00:00

A Rede de Conhecimento é Serendípica [11]

            Sob essa perspectiva, o caminho de busca por novas formas de comunicação pode então ser designado de serendípico, e não elíptico. Serendipidade é o encontro de algo não procurado:

            O termo serendipidade não é derivado de alguma raiz antiga como a maioria das palavras. Foi criado em 1754, por Horace Walpole, o filho literato do primeiro-ministro britânico sir Robert Walpole, que serviu ao país durante longo tempo. A palavra foi inspirada em um livro persa de contos de fada, Three princes of Serendip, cujos heróis estavam ‘sempre fazendo descobertas acidentais de coisas pelas quais não estavam procurando’. Serendip era o nome popular da época para a ilha que hoje conhecemos como Sri Lanka. Walpole sugeriu que a palavra serendipidade fosse usada para designar a faculdade de fazer descobertas felizes acidentalmente, onde quer que elas acontecessem (Braben, 1996, p. 149).

            É o achado de algo inesperado, sem dúvida, mas que consta da ânsia (alma) de qualquer cientista. É a força do acaso, certamente, mas só perceptível pelo espírito preparado:

            Pasteur, que fez avanços em química, microbiologia e medicina, reconheceu isso e o expressou sucintamente: ‘No campo da observação, o acaso favorece apenas a mente preparada’. Mas, recentemente, o prêmio Nobel, Paul Flory, na ocasião do recebimento da medalha Priestley, a mais alta honra dada pela Sociedade Americana de Química, disse [...] Invenções significativas não são meros acidentes. A visão errônea [ de que elas o são] é amplamente aceita, de tal forma que a comunidade científica e técnica, infelizmente, tem feito pouco para dispersá-la. A casualidade geralmente tem a sua parte, não se pode negar, mas uma invenção é muito mais do que prega a crença popular de ser algo que surge subitamente do nada. Profundidade e amplitude de conhecimento são pré-requisitos virtuais. A menos que a mente esteja totalmente repleta de antemão, a fagulha proverbial do gênio, se ela se manifestar, provavelmente não encontrará nada para incendiar (Roberts, 1993, p.12).

            O objeto só é identificável e apreensível, portanto, pelo espírito dotado de projeto — etimologicamente, o que é capaz de jorrar de dentro e é fecundo. No começo do século, para usar um jargão da época, também o orador da democracia ou o advogado-político testava as defesas políticas depois de muito treinar a lógica do aprender a apreender:

            Se descuidar de trabalhar, de escrever para formar o estilo, de enriquecer a memória, de renovar e aumentar constantemente seu cabedal pela observação, pela reflexão, pela conversação e sobretudo pela leitura, logo estará condenado às repetições enfadonhas, à banalidade, e dentro de pouco tempo à esterilidade intelectual [...] Na improvisação, a fonte só brotará se, previamente, o orador soube acumular uma riqueza oculta de vocabulário, de imagens, de idéias, de conhecimentos apropriados, onde ele apenas terá de servir-se a mancheias quando chegar o momento. Na realidade, a improvisação não é mais que o resultado de um longo trabalho de acumulação [...] De fato, ele os inventa, mas somente no sentido etimológico do termo; ou seja, encontra-os ou os reencontra onde os havia depositado, às vezes muito tempo antes — por suas leituras, estudos, observações —, nos recônditos menos ou mais inconscientes de sua memória [...] Produz-se uma superatividade mental; uma espécie de lucidez interior, uma maior velocidade de pensamento comanda a escolha e a ordem lógica dos argumentos; a fala tanto se afirma como se amplifica, encontra entonações mais cativantes e mais exatas [...] As idéias arrebatam para a luta outras idéias, as imagens vêm emprestar-lhes mais vida, força e cor: o mecanismo intelectual da improvisação está em movimento (Robert, 1997, pp. 26-27).

            Em síntese, é a recompensa que alimenta: "Albert Einstein, ao escrever sobre a motivação dos grandes cientistas, disse que seus esforços contínuos não são inspirados por um plano ou objetivo estabelecido. ‘A inspiração vem de uma fome da alma" (Braben, 1996, p. 40).

            Daí que se pode falar de uma alma (aura?) enriquecida pela memória coletiva, ou simplesmente de uma inteligência coletiva. Não à toa, a rede de conhecimento ainda provoca arrepios na alma da humanidade. Com esse conjunto de meios/métodos é passível de haver conciliação com o mundo real/virtual, e trabalhar em conjunto é ser consiliente.


A Rede de Conhecimento é Consiliente?

            Sim, se pelo termo consiliente [12] entendermos um sentido aproximativo de saltando junto [13], um salto qualitativamente coletivo como requer a rede. De certa maneira, ou de forma mais natural: "Os saltos criativos necessários para revelar alguma faceta nova do comportamento da natureza podem ser de tirar o fôlego e, certamente, conhecemos pouquíssimo a respeito da maneira como treinar nossas mentes para saltar de forma ordenada, por assim dizer" (Braben, 1996, p. 88).

            Não deixa de ser a busca pela inteligência coletiva ou projeto de inteligência coletiva, de que fala Lévy. Mas seu conteúdo depende do que tivermos feito antes, ou seja, o improviso e a criação genial e germinal da rede dependem de nosso próprio estoque individual de ações e de interações:

            Não se trata de milenarismo. Contento-me em apontar uma alternativa. Ou superamos um novo limite, uma nova etapa da hominização, inventando algum atributo do humano tão essencial quanto a linguagem, mas em escala superior, ou continuamos a nos ‘comunicar’ por meio da mídia e a pensar em instituições separadas umas das outras, que organizam, além disso, o sufocamento e a divisão das inteligências. No segundo caso, só teríamos de enfrentar os problemas da subsistência e do poder. Mas, se nos engajássemos na via da inteligência coletiva, progressivamente inventaríamos as técnicas, os sistemas de signos, as formas de organização social e de regulação que nos permitiriam pensar em conjunto, concentrar nossas forças intelectuais e espirituais, multiplicar nossas imaginações e experiências, negociar em tempo real e em todas as escalas as soluções práticas aos complexos problemas que estão diante de nós (Lévy, 1998, pp. 16-17).

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            Cremos, assim, que nessa passagem se encontra a súmula da superação democrática e dialética da ciência, da tecnologia, da arte e da política, proposta na idéia da rede e que nos absorve enquanto indivíduos dotados de ação, emoção e capazes de formular projetos individuais e coletivos. Mas engana-se redondamente quem pensa que o trabalho não é árduo e que consome as melhores energias do pesquisador.


A Paciência Científica

            A finalização na aplicação do método da serendipidade exige que tenhamos muita paciência. Na fase final de sua elaboração, o trabalho deve ficar em repouso, imerso, para que depois o autor processe uma leitura fina, muito severa, abrasiva, ácida mesmo, justamente para que os demais leitores/críticos não encontrem ali munição para alimentar considerações realmente destrutivas.

            Esta imersão também é necessária à maturação, essa maturidade necessária à condensação da substância do texto. É preciso finalizar com um tipo de lipoaspiração do excesso de bagagem ou de juízo de valor que pouco agrega nutrientes à demonstração e à discussão do tema. Deve-se, por exemplo, subtrair o excesso de adjetivos, buscando-se no verbo a demonstração da maleabilidade e do movimento do objeto – por isso as metáforas (como vias de transporte dos sentidos) são sempre bem-vindas: como é o caso do próximo item.

            A espera pode provocar certa ansiedade, mas essa fase é fundamental. Porém nem tempo demais, a fim de que tudo pareça estranho ou envelhecido demais, nem tempo de menos, quando ainda não se é capaz de ver os próprios erros. Ao mesmo tempo em que se relaxa da imersão no tema, esse distanciamento retira-nos dessa bitola que foi ver o objeto por tanto tempo. O distanciamento do texto retira a bitola que nos leva a buscar em tudo o que se fez ou leu um nexo causal com o(s) tema(s) abordado(s).

            Esta ansiedade de vermos o trabalho pronto, de vermos esgotados os argumentos de sua construção, pode agora ser recompensada com a abertura de nova frente de trabalho (como processo contínuo de investigação) ou aproveitar um pouco do descanso dos justos. De qualquer modo, é importante que a pesquisa descanse, longe dos olhos, porque só assim, longe dos olhos dos pais, é que a pesquisa irá crescer em maturidade – é como vivenciar relativamente o sentimento de orfandade.

            De modo simples, esse conjunto de ação e de repouso que descrevemos, talvez se aproxime do que Bachelard denomina de paciência científica (a não-pressa em inquirir e debater com o tema), procurando-se na dúvida constante o caminho seguro para o crescimento do espírito científico.

            Com o tempo, aprende-se a ruminar sem que os outros percebam — e ruminar essa verdade em construção é sempre um processo inquietante e prazeroso, como verdadeiro prato que não esfria. Desse modo, sempre teremos uma pesquisa quente e convidativa: aqui, comer não é gula, nem pecado, e nem há prato requentado.

            Como não se retira uma idéia original (produtiva e criativa) a fórceps, a pesquisa é feita em paz (não há angústia, só ansiedade), com o sujeito de bem com o objeto. Por isso, a idéia da força é substancialmente substituída pela força das idéias (parafraseando Florestan Fernandes): não vigora o argumento da força, mas sim a força argumentativa. Isto, é óbvio, é como saborear a força da verdade, e também é o que inebria ainda mais quem já se sente tão possuído por esse estranho e irresistível desejo do objeto.

            Entretanto, mesmo sendo um trabalho que estimula um desejo que nos arrebata, ao mesmo tempo, é lento e no melhor estilo pinga-gotas. Portanto, é esse trabalho de conta-gotas que deverá minar muito mais rapidamente as ditas verdades estabelecidas, até mesmo porque, quando ruir, será uma queda estrondosa. O que também evita o dissabor de que outra verdade retumbante seja apreciada em seu lugar — simplesmente porque o trabalho de formiguinha deveria evitar as tais verdades retumbantes, extasiantes, absolutas, os tais métodos totalizantes, assim como as verdades políticas totalitárias.

            Esta é uma maneira de se fazer pesquisa limpa, bonita, fácil de ser acessada, sempre com muitos links, e sem que seja superficial. Porque, mais uma vez, podemos dizer que a beleza da ciência não precisa estar submersa na carranca do pesquisador ou, o que é pior, na inacessibilidade do texto em si: todos já ouviram dizer que fulano sabe muito, mas para si mesmo, pois não consegue transmitir seus pensamentos. Ora, esta confusão tanto está na fala, quanto no texto impresso.

            A serendipidade, portanto, ajuda a prevenir-se de idéias nebulosas e ainda oferece códigos de acesso irrestrito aos leitores. Com a serendipidade, realmente, a chave de acesso está em cada um dos leitores/autores e, se juntarmos a experiência com a bricolagem, veremos claramente que ler é atuar sobre o mundo real/virtual. Ler é justamente abrir os códigos de ferro, democratizar e distribuir as chaves de acesso, desmistificar o posto e o comando do establishment (como donos do conhecimento estabelecido).

            A combinação entre serendipidade, bricolagem e consiliência funciona como um método em que se estimula a revelação e o inusitado, portanto, em que se aproveita com satisfação o dia e a vida de pesquisador (Carpe diem). Mas o método da revelação só é possível se o pesquisador tem liberdade – o próximo item deverá ser analisado sob a ótica da liberdade de pesquisa e de expressão.

            No próximo item veremos uma análise metafórica que ilustra a ação livre da serendipidade, como um exemplo de ação livre de pesquisa — como um ensaio teórico.


O Gato de Dois Rabos

            Estudar e entender um dos casos mais típicos de esquizofrenia cívico-jurídica nos dias de hoje exigiria analisar a sociedade de consumo, o consumismo de massas, ou a Sociedade do Espetáculo, como a definia Guy Debord (1997).

            Uma olhada rápida pelo dia-a-dia do consumo nos revela coisas interessantes, como é o caso do gato de dois rabos: vamos usar essa metáfora para comparar/opor o consumidor ao consumista. Na verdade, ambos (consumidor e consumista) formam um belo par dessa pós ou ultramodernidade que também nos choca ou extasia em determinadas situações ou diante de certas análises.

            Pode-se dizer que o consumidor-consumista aglutina as duas faces da mesma moeda, porém, como veremos, com valores desiguais para as duas, isto é, literalmente, trata-se de uma moeda com dois valores diferentes estampados em cada cara-metade. Isto já levaria a pensar que não existiria muita Justiça na definição dada por uma moeda com dois valores. Também é óbvio que o consumista vale muito mais do que o consumidor, simplesmente porque este tem uma consciência mais barata e fácil de se achar ou de se comprar.

            Como dizíamos, poderíamos falar de um gato de duas cabeças, mas isto lembraria a engenharia genética e os bichos estranhos que se podem gerar com a ciência/sem-consciência. Assim, o gato de dois rabos é mais apropriado para nossa análise jurídico-econômica.

            Nosso gato de dois rabos, realmente, será emblemático, figurando como uma metáfora mais ilustrativa do cidadão consumidor-consumista: esse que talvez seja o último sinônimo para o cidadão burguês, assim como já foram o eleitor e o contribuinte no passado do século XX.

            O gato tem dois rabos porque o cidadão-consumidor tem cada dia mais consciência das metas e das tarefas exemplares que deve externar, peticionado contra o fabricante e/ou sistema financeiro que teima em lhe aplicar o 171 capitalista [14]. Nesse mundo globalizado pelo consumo desenfreado, o povo está ficando craque em Direito do Consumidor porque conhece de cor e salteado o discurso da livre concorrência do mercado, com suas regras de prazo, qualidade e preço.

            Mas esse mesmo sujeito, que também deveria ter consciência social e ambiental, é nulo ou chulo quando se trata do consumo da vida. O cidadão-consumista, ao contrário do seu antípoda (cidadão-consumidor), é um zero à esquerda quando se trata de definir e decidir acerca da limitação dos níveis de consumo — os níveis que levaram a Terra ao ponto de exaustão ambiental em que nos encontramos. Nosso conhecimento social sobre Direito Ambiental é absolutamente insignificante.

            Da mesma forma como há uma saturação social (consome-se e vive-se em guetos, como condomínios e shoppings), há uma liquidação das reservas naturais e isso ameaça a sobrevida de todos. Mas, como indicado, aí neste ponto o cidadão-consumidor revela-se portador de uma consciência limitada, agindo apenas como cidadão-consumista do planeta. Essa sua consciência embotada de cidadão-consumista é mais óbvio do que lógico, exige cada vez mais a ampliação dos níveis (já insuportáveis) de consumo.

            A dita consciência do cidadão-consumidor não passa, portanto, de vontade incontida de consumir mais, para refestelar-se cada vez mais nesta festa elitista. O cidadão-consumidor teria consciência de um direito que se dizia difuso/coletivo, mas que no fundo, acabamos de verificar, acabou por se definir como direito egocêntrico porque sequer somos capazes de relacionar o tal Direito do Consumidor com o Direito Ambiental. Não há consciência ambiental e, portanto, menos ainda um direito à vida global: simplesmente porque o consumidor-individualista não permite.

            A consciência jurídica do cidadão-consumidor-egocêntrico está hipostasiada no rótulo e na data de validade que acompanha cada gênero e coisa. Afinal, o Direito Ambiental refere-se ao presente-futuro e o Direito do Consumidor é efêmero como o próprio consumo. O consumo e a satisfação das vontades fabricadas são descartados tão logo nos vemos livres da embalagem e do lixo que lhe acompanha no pós-consumo. Aliás, o lixo de cada um é tomado como encargo social, mas no sentido de que o melhor cidadão-consumidor é aquele que mais consome.

            Ironicamente, quanto mais elevada a consciência do cidadão-consumidor — especialmente quando em prol de níveis maiores de consumo e de melhor qualidade —, mais grave e aguda se mostra a imersão na ilusão provocada pelo consumismo. Infelizmente, a consciência do consumidor — no tocante a que pode consumir mais e melhor — é o que mais arruína a vida global no Planeta, pois acelera a depreciação ambiental.

            Consumimos no atacado, o que a Terra repõe no varejo. Seguindo esse ritmo, críticos do ciberespaço estão cada vez mais plugados e por sua vez consomem ainda mais apetrechos espaciais, nesta que é a compulsão pelo consumo do virtual. No mundo real/virtual, consome-se literalmente toda a vida, e daí vem a compulsão em adiar a morte, retardar a velhice – porque o tempo também é consumido: time is money.

            Tudo é consumido, as pessoas no sex shopping são apenas objetos eróticos de consumo, da mesma forma que os objetos exóticos [15]. O operador da bolsa de valores vê o mundo real/virtual ao sabor dos caprichos dos investidores: meio mundo pode quebrar desde que a bolha de consumo se mantenha. Assim, para se manter no mundo real/virtual do consumo, entre ricos e pobres, ninguém se salva — por exemplo, muitos desesperados vendem o próprio rim para alguns poucos receptadores de almas. Do mesmo modo, é muito fácil perceber que nunca houve tanta obesidade e crime famélico, como agora.

            Para inverter a relação espaço/tempo do consumo, é óbvio, deveríamos diminuir os níveis de consumo (por volta das medições dos anos 60-70 [16]), mas isto equivale a interferir no valor de uso agregado às coisas e desse modo também haveria reação no valor de troca. Em suma, esta rota de alteração do consumo, altera profundamente o eixo capitalista.

            Uma sociedade plural exigiria, realmente, rever o capitalismo, mas sem o doce engano das ideologias pré-capitalistas (encantamento do mundo) ou anti-industriais (ao melhor estilo unabomber [17]). Podemos rever o fluxo e a velocidade de produção/transmissão tecnológica, na sociedade de consumo, mas não relegar a industrialização e a urbanização, ou a civilização nos moldes ocidentais.

            Podemos pensar um valor de uso comum, mas não regenerar nossa dependência tecno-científica. Afinal, do Homo habilis ao Homo sapiens, o homem-tecnológico é o relato do que fizemos de nós mesmos, é no que nos tornamos: seres artificiais que moldam o mundo a seu modo. Nessa corrida contra o natural (para sobreviver em meio hostil ou porque não suporta ser inacabado), o homem do neolítico afirmou nossos principais extensores técnicos e sociais. Aliás, como se vê muito bem no filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço (Stanley Kubrick - 1968). De lá para cá, do monolito às primeiras ferramentas toscas, iniciamos e não paramos mais nossa era de glaciação de consumo da natureza.

            Com isso ainda vemos quão abrangente é o potencial de dano trazido pelo cidadão-consumidor aos dias atuais. A sua satisfação é equivalente à depreciação do mundo real/virtual, a ilusão de sua satisfação ao consumir é a sombra do espetáculo que destrói o planeta: "O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral" (Debord, 1997, p. 33). Mas que triste espetáculo...

            Então, vemos que os detritos do cidadão-consumista são o escárnio do cidadão-consumidor. A ironia de tudo mostra que os dois rabos do gato estão fazendo cócegas agora mesmo, pois a satisfação termina no exato instante do consumo e assim só nos resta lançarmo-nos em busca de mais felicidade, ou melhor, de mais consumo. Por esta razão, também podemos dizer que o livre arbítrio está obsediado pela mercadoria, pois tal qual a posse e a propriedade, a mercadoria e seu valor de uso estão entranhados. A ansiedade leva às compras e esta retorna tão logo se compre...

            O cinismo da coisa toda, no entanto, é imaginar que a satisfação almejada individualmente termine nas sacolas de compras e que isto seja um belo exemplar do direito individual homogêneo: a ser vangloriado, defendido heroicamente. Isto é, reduzir os níveis de consumo (como propõe por tabela o Protocolo de Kyoto) acabaria gerando insatisfação na classe média pensante e votante, e isto contraria o sagrado direito à felicidade, como vemos expresso na Carta Americana de 1787. Sob esse aspecto, de fato, são antípodas a felicidade dos EUA e a fraternidade francesa de 1789.

            O cínico-realista, enfim, diria que assinar o Protocolo da Redução Global da Produção e do Consumo (Kyoto) equivaleria a reduzir a satisfação do consumista/egoísta — logo, diante da Constituição de 1787, o Protocolo de Kyoto é inconstitucional, e por isso o mundo não deve reconhecê-lo. Pensando bem, talvez o gato tenha mais do que dois rabos...

            Vejamos outros possíveis rabos desse gatuno que nos espreita: como no filme Mad Max (direção de George Miller – 1979), os detritos passarão a ser artigos de luxo e, portanto, de sobrevivência. Mas, como em Blade Runner (Ridley Scott - 1982), iremos nascer envelhecidos ou com a validade quase expirando. O que permite que vejamos o consumo como um direito individual homogêneo, mas de consciência heterogênea. Afinal, como em Gattaca (Andrew Niccol - 1997), as mercadorias são quase clones ou replicantes que valem mais do que nós mesmos.

            Nos vários casos analisados sob a égide do consumismo, vimos que a serendipidade se apresenta como um método de autocrítica. Ponha-se o leitor em meu lugar e imagine como foi produzir este item, como se fosse um anti-manifesto, ou seja, um manifesto contra si mesmo. E ainda que a serendipidade seja um manifesto contra o método autocrático do establishment, é difícil admitir que todos nós fazemos parte desse pensamento maquínico-consumista.

            Por fim, ainda quanto ao método da serendipidade, com todas as limitações vemos que ver/pesquisar é externar uma vontade livremente.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Serendipidade, bricolagem, consiliência:: métodos de trabalho e de investigação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 890, 10 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7692. Acesso em: 5 nov. 2024.

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