Antes considerado apenas como disciplina que estudava as normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua ação (MELLO, 1999), o Direito Administrativo se desenvolve na medida em que o Estado passa a ter o dever de assegurar a proteção dos direitos individuais, não somente na relação entre particulares, mas também entre estes e o próprio Estado.
Habermas (1996) explicita que um dos objetos de sua teoria procedimental da democracia é demonstrar a cooriginalidade dos direitos individuais fundamentais e da soberania popular. O autogoverno, de um lado, serve para proteger os direitos individuais; de outro, os mesmos direitos fornecem as condições necessárias para o exercício da soberania popular. Uma vez aceitos dessa maneira, sustenta Habermas, "então se pode entender como a soberania popular e os direitos humanos andam lado a lado e logo perceber a cooriginalidade das autonomias cívica e privada" (HABERMAS, 1996, p. 127).
Pode-se dizer, assim, que há entre direitos fundamentais e democracia uma relação de interdependência ou reciprocidade. Da conjugação desses dois elementos é que surge o Estado Democrático de Direito, estruturado como conjunto de instituições jurídico-políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana. (BNENBOJM, 2014, 51-52)
É o que a moderna doutrina chama de Administração Pública Dialógica, que enseja uma releitura na atuação estatal visando o interesse público, promovendo uma interação dinâmica entre gestor público e administrados e afastando uma expressão monológica do Poder Público, sempre buscando a preservação da pluralidade de interesses constantes em uma sociedade.
O indivíduo emerge de sua posição de coadjuvante para se tornar um protagonista no atual Estado Democrático de Direito, vez que diante de hodierna discussão sobre os direitos fundamentais, muda o papel tradicional da Administração Pública, que agora se apresenta direcionada para o respeito à dignidade da pessoa humana, e se tornar um verdadeiro espaço para o desenvolvimento das potencialidades sociais (BAPTISTA, 2003).
Como brilhantemente é alertado por Bombardelli(1996, p. 192-193):
Cada vez mais frequentemente, assim, defende-se a necessidade de colocar os aparatos administrativos em uma nova dimensão que lhes ponha a serviço da pessoa humana e lhes dirija no sentido da colaboração com os indivíduos para o desenvolvimento de suas potencialidade e capacidade de contribuir seja para o seu bem individual, seja para o da sociedade. Para a administração torna-se importante travar relações frequentes com os cidadãos, com os grupos e com as empresas, relações essas que não mais sejam caracterizadas pela ótima do conflito, da mesma forma que as disposições normativas expressas devem conduzir ao seu aparelhamento [da administração] de modo permanente, para o diálogo com todos os sujeitos envolvidos no seu agir, através de figuras organizativas de tipo absolutamente novo (...).
Ainda, de acordo com Canotilho (1993, p.52), "que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade", demonstrando que o objetivo do constitucionalismo moderno não é somente limitar o poder estatal, mas fazer com que Administração Pública declare e garante direitos fundamentais.
Assim, percebemos claramente que uma das novas funções primordiais da Administração Pública é o respeito e a concretização dos direitos fundamentais dos administrados, possibilitando, consequentemente, uma atuação mais competente. Nesse sentido, adentrando no mérito dos princípios que regem à Administração Pública, notamos que alguns destes foram dispostos em consonância com os objetivos supra mencionados.
De início, para melhor compreender os Princípios da Administração Pública é necessário entender a definição básica de princípios, que servem de base para nortear e embasar todo o ordenamento jurídico e é tão bem exposto por Reale (1986, p. 60), ao afirmar que:
Princípios são, pois verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições, que apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários.
Portanto, princípios são proposições que servem de base para toda estrutura de uma ciência, no Direito Administrativo não é diferente, temos os princípios que servem de alicerce para este ramo do direito público.
Primeiramente, fazendo um exame da eficiência na Administração Pública, ressaltamos sua atual grande valoração, vez que cada vez mais é menos interessante, para a sociedade a manutenção de uma estrutura de governo ineficiente, principalmente diante do contexto vivido no Brasil, onde muitos serviços públicos não funcionam corretamente. O mestre Meirelles (2004, p. 102) fala na eficiência como um dos deveres daAdministração Pública, definindo-o:
o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.
Sobre o mesmo princípio, adverte Di Pietro (2014, p. 84):
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode serconsiderado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual seespera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhoresresultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar aAdministração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhoresresultados na prestação do serviço público.
Portanto, em apertada síntese, trata-se do princípio que busca garantir a concretização dos anseios da sociedade, na medida que condiciona à atuação estatal à alcançar, de modo legal, resultados positivos e satisfatórios.
Noutro ponto, insurge a hodierna discussão sobre o princípio da boa administração, que, apesar de muitos associarem como sinônimo do princípio da eficiência, se diferencia em diversos aspectos.
Apesar de seu reconhecimento encontrar alguns desafios, principalmente no que tange a delimitação do núcleo essencial deste, no âmbito do direito comunitário europeu, a boa administração encontrou acolhida expressa no artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia[1]. Trazendo para o ordenamento jurídico brasileiro, há autores que também defendam a existência de um direito fundamental à boa administração, traduzindo um direito de cidadania.
Diria que a Constituição de 1988, muito antes da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, consagrou um direito fundamental à boa administração. Todos nós sabemos onde esse direito está, principalmente (não exclusivamente), ancorado: no artigo 1º, III, que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e no artigo 37, onde estão elencados os princípios diretivos da administração pública. Com efeito, uma boa administração só pode ser uma administração que promova a dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, devendo, para tanto, ser uma administração pautada pela probidade e moralidade, impessoalidade, eficiência e proporcionalidade. A nossa Constituição, como se percebe, foi mais adiante. Além de implicitamente consagrar o direito fundamental à boa administração, ela já previu expressamente os critérios, diretrizes, princípios que norteiam e permitem a concretização dessa idéia de boa administração. Então, diria que a nossa Constituição, na verdade, já antes da Carta da União Européia, pelo menos no âmbito formal, talvez tenha ido até mesmo além da própria União Européia. (SARLET, 2010, p. 496)
No mesmo sentido:
A boa administração, portanto, não é uma finalidade disponível, que possa ser eventualmente atingida pelo Poder Público: é um dever constitucional de quem quer que se proponha a gerir, de livre e espontânea vontade, interesses públicos. Por isso mesmo, em contrapartida, a boa administração corresponde a um direito cívico do administrado – implícito na cidadania. (Moreira Neto, 2009, p. 119)
É importante ressaltar, contudo, que a análise do que deve ser a boa administração não deve se restringir apenas ao campo de pesquisa jurídico, vez que diversas outras áreas possuem interesse na delimitação do tema.
Dessa forma, o direito à boa administração se reveste na função administrativa de concretização dos direitos fundamentais, servindo como cerne para a realização de políticas públicas e todas outras atividades constitucionalmente previstas, englobando o conceito de governança.
REFERÊNCIAS
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[1] Artigo 41º - Direito a uma boa administração:
1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.
2. Este direito compreende, nomeadamente: – o direito de qualquer pesssoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente, o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, – a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.
3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros.
4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua. <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf> Disponível em: Acesso em 16 de maio de 2016.