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Universalidade, tradição e dialética em Leo Strauss

Apontamentos sobre Direito natural e história e sua contribuição para os direitos humanos e a cidadania.

Agenda 08/10/2019 às 11:39

O artigo destaca ideias básicas do livro Direito natural e história, de Leo Strauss, com o objetivo de encontrar subsídios para aprofundar o debate sobre o problema da universalização dos direitos humanos e da cidadania.

 

Universalidade, tradição e dialética em Leo Strauss: apontamentos sobre Direito natural e história e sua contribuição para os direitos humanos e a cidadania.

Antônio Cavalcante da Costa Neto

 

RESUMO. O artigo destaca ideias básicas do livro Direito natural e história, de Leo Strauss, com o objetivo de encontrar subsídios para aprofundar o debate sobre o problema da universalização dos direitos humanos e da cidadania.

Palavras-chave: Leo Strauss, direito natural, universalidade, dialética, tradição, direitos humanos, cidadania.

ABSTRACT. The article detaches basic ideas of the book Natural Right and history, by Leo Strauss, with the objective of finding subsidies to deepen the debate on the problem of the universalization of the human rights and of the citizenship.

Keywords: Leo Strauss, natural right, universality, tradition, dialetics, human rights, citizenship.

 

Introdução

A doutrina dos direitos humanos carrega em si o desejo de universalidade.1 Há inclusive quem enxergue nos direitos humanos a culminância do processo de conscientização moral iniciado pelos gregos, que não ficou no plano teórico, pois obteve carta de cidadania com a Declaração Universal de 1948, complementada pelas subsequentes declarações das Nações Unidas.2 Logo, não é por acaso que a defesa dos direitos humanos seja bandeira de luta de diferentes pessoas, povos e organizações em todo o mundo, e sua garantia, índice e instrumento de cidadania. Por outro lado, não se pode esquecer que o conceito de direitos humanos tem como berço uma tradição cultural específica, é invenção do Ocidente, o que representa um problema para a universalização desse conceito e, ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de um diálogo intercultural, indispensável para a construção de uma cultura universal dos direitos humanos, o que não deixa de ser outro problema.

Da mesma forma que acontece com relação aos direitos humanos, não são poucos os problemas que surgem quando se discute cidadania, a começar pelas divergências sobre o seu conceito. Para ilustrar essa dificuldade, Leandro Karnal propõe uma situação hipotética. Se nos fosse dado reunir para um debate personagens históricos de diferentes épocas, a exemplo de Péricles, Montesquieu, Thomas Jefferson e Robespierre, o que poderíamos esperar de uma discussão entre eles a respeito desse tema? Embora sejam considerados defensores da cidadania, “possivelmente eles discordariam em itens fundamentais. Cada época produziu práticas e reflexões sobre cidadania muito distintas ─ e cidadania, como é lógico supor, é uma construção histórica específica da civilização ocidental” (KARNAL, apud PINSKY, 2008, p. 135-136).

Apesar disso, a exemplo do que também ocorre com os direitos humanos, persiste no mundo pós-moderno o desejo por uma cidadania globalizada,3 mesmo que isso aconteça progressivamente, conforme entendimento de Benito Aláez Corral. Para este, cidadania é uma instituição jurídica gradual. Desde as suas origens históricas, ela expressa determinado tipo de integração do indivíduo em distintas esferas de comunicação social, particularmente na política, independentemente de beneficiar somente uma minoria de pessoas submetidas ao ordenamento jurídico, mas que, atualmente, tende a incluir a maior parte delas, como resultado da progressiva autonomia e diferenciação do sistema jurídico (CORRAL, 2006, p. 195).

O objetivo deste trabalho é buscar no livro Direito natural e história, de Leo Strauss, subsídios para tratar dos problemas relacionados à universalização dos direitos humanos e globalização da cidadania com mais clareza e profundidade, considerando ainda o fato de que um dos grandes desafios da pós-modernidade, caracterizada por pluralismos de toda ordem, “consiste em saber como maximizar a interculturalidade sem subscrever o relativismo cultural e epistemológico” (SANTOS, 2008, p. 43). Tal propósito se justifica em virtude da íntima relação entre a concepção de direitos humanos – e por conseguinte, de cidadania4 ─ e a ideia de direito natural, considerando-se ainda que um dos grandes pensadores sobre a questão do direito natural é Leo Strauss, autor de notável projeção na filosofia política contemporânea, embora pouco explorado nos estudos de direitos humanos em nosso país.

A estrutura do trabalho compreende quatro itens. No primeiro, teremos algumas notas sobre a vida e obra de Leo Strauss. No segundo, serão destacadas as principais ideias do livro Direito Natural e História, seguindo a sequência dos capítulos daquela obra. No terceiro, serão apresentadas as principais contribuições do livro para o tema dos direitos humanos e cidadania. No quarto e último item, serão feitas algumas considerações finais, levando-se em conta o objetivo do trabalho e os problemas a ele relacionados, referidos nesta introdução.

Registre-se, ainda, que este trabalho foi apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para aprovação na disciplina Direito Internacional dos Direitos Humanos, ministrada pelo Professor Doutor Fredys Orlando Sorto. A disciplina foi estruturada como curso especial sobre cidadania e proteção internacional dos direitos humanos, e teve o livro de Leo Strauss como uma das referências básicas.

1.  Leo Strauss: notas biográficas e principais obras

Leo Strauss nasceu em Kirchhain (Alemanha), no ano de 1899. De origem judaica, iniciou o estudo primário em sua cidade. Em 1912 foi para o Ginásio Philippinum, em Marburg. Já naquela época dedicava-se à leitura de Schopenhauer e Nietzsche. Durante a Primeira Guerra Mundial serviu como intérprete na frente belga. Em 1919 ingressou na Universidade de Marburg e em 1921 foi para a Universidade de Hamburgo, onde obteve o grau de doutor com a tese sobre Epistemologia na Doutrina Filosófica de Friedrich Heinrich Jacobi, tendo como orientador Ernst Cassirer. Em 1922 fez pós-doutorado em Freiburg. Naquela Universidade, pode assistir a conferências de Husserl e de Heidegger. No mesmo ano passou a integrar a Academia de Judaísmo, em Berlim. Nessa época, escreveu o primeiro livro, sobre a crítica da religião de Espinosa. Anos mais tarde, em Paris, desenvolveu pesquisas sobre as filosofias árabes e judaicas medievais. Em 1933, na capital francesa, casou-se com Marie Bersohn. No início de 1934, Strauss e a família (Marie e o enteado Thomas) foram morar em Londres, onde Strauss estudou os manuscritos de Thomas Hobbes até 1937, quando viajou para os Estados Unidos, onde se estabeleceu na vida acadêmica. Marie e Strauss, que não tiveram filhos, adotaram uma sobrinha de Strauss, Jenny, que ficara órfã. Estudioso da Filosofia Política Clássica, Strauss passou a maior parte de sua carreira como professor de Ciência Política na Universidade de Chicago. Intelectual brilhante, conviveu com grandes nomes de sua época, a exemplo de Carl Schmitt, Walter Benjamim, Heidegger e Gadamer, entre outros, tendo se correspondido de forma assídua com alguns deles. Faleceu em 1973, em Annapolis, nos Estados Unidos.

Entre suas principais obras ─ a maioria publicada nos Estados Unidos ─, podem ser destacadas: o pioneiro Spinoza’s critique of Religion (1930), em que articula o conflito entre razão e Revelação, e explora o tratamento científico, comparativo e textual da Bíblia feito por Espinosa; Persecution and the Art of Writing (1952), ensaios sobre o problema da relação entre Filosofia e Política, a partir da tese de que muitos filósofos reagem contra a ameaça de perseguição disfarçando suas ideias mais controversas e heterodoxas; Thoughts on Machiavelli (1958), em que destaca a intrepidez do pensamento do fundador da filosofia política moderna; On tyranny (1961), clássica releitura do diálogo Hierão, de Xenofonte; e The City and Man (1964), reunião de ensaios sobre a Política de Aristóteles, a República de Platão e as Guerras do Peloponeso de Tucídides, nos quais tenta usar a filosofia política clássica como meio de libertar a filosofia política moderna da dominação ideológica.

2. Direito natural e história: universalidade, tradição e dialética em Leo Strauss

Costuma-se caracterizar o pensamento de Strauss como universalista e conservador. Sobre a primeira característica, chegou a ser feito um estudo relacionando a obra de Strauss à do cineasta Mel Gibson, no qual se procura demonstrar a similitude entre ambos no que diz respeito à perspectiva jurídica universalista.5 Por outro lado, o aspecto conservador do seu pensamento não raro é mostrado como exemplo de posicionamento político reacionário, o que parece ser, em grande parte, fruto do desconhecimento da obra de Strauss, na qual se destaca Direito natural e história. Publicado em 1953, o livro é a reunião e o desenvolvimento de seis conferências que aquele autor fez na Universidade de Chigago, em outubro de 1949.

2.1. Narrativas da epígrafe

Na epígrafe do livro temos duas pequenas narrativas,6 que são retiradas da Bíblia (2Sm, 12, 1-4 e 1Rs 21, 1-3). Strauss, porém, não apresenta as referências desses textos bíblicos, tampouco faz remissão às histórias nas páginas seguintes, o que certamente não se deve atribuir a esquecimento ou descuido. A impressão que se tem é que ele deixa ao leitor a possibilidade de estabelecer relações entre aquelas narrativas e o conteúdo do livro. Com isso, aquelas histórias, aparentemente enigmáticas, tornam-se um instigante convite à reflexão. Na primeira história é possível vislumbrar o aspecto da universalidade. A indignação contra o comportamento do homem rico parece ser uma exigência do que é justo por natureza. Na segunda, o traço marcante é o apelo à tradição, da qual Nabot não abre mão, haja vista que se trata da herança de seus pais.

    1. 2.2.  Introdução do livro

Na introdução, Leo Strauss assevera que nos dias atuais a necessidade do direito natural não é menor do que foi durante milênios. Sua rejeição implicaria reduzir todo o direito ao direito positivo, esvaziando a discussão sobre leis ou decisões injustas. Mas se a necessidade de buscar o que é justo por natureza é tão evidente, o que leva à recusa dessa busca na contemporaneidade, e quais as implicações dessa rejeição? Nos seis capítulos que compõem o livro, o autor trata dessa e de outras indagações correlatas. Entretanto, em lugar de responder de forma direta a questões sobre direito natural e história, ele prefere examiná-las dialeticamente.

 

    1. 2.3. Direito natural e a abordagem histórica

No primeiro capítulo, Strauss demonstra a irrelevância de argumentos sustentados pela abordagem histórica para negar o direito natural, entre os quais o de que a existência de diferentes noções de justiça torna impossível o direito natural. Contrapondo-se a essa ideia, o autor afirma que o consentimento de todo o gênero humano não é condição indispensável para que o direito natural possa existir, pois a descoberta deste pressupõe o cultivo da razão, não sendo viável, por exemplo, esperar-se um conhecimento real desse direito entre povos primitivos. Além disso, observa que a constatação de que há várias concepções de justiça não é novidade alguma, e muito menos descoberta da modernidade, por ser algo óbvio e “o óbvio não tem de ser descoberto” (STRAUSS, 2009, p. 16).

Não bastasse refutar a tese historicista, Strauss identifica alguns elementos contraditórios da escola histórica. Esta, surgida como reação à Revolução Francesa, condenava a ruptura com o passado e defendia a preservação da ordem tradicional. Contudo, isso poderia ter sido feito sem se antagonizar com o direito natural pré-moderno, pois este não se opunha necessariamente à ordem estabelecida. Mas não foi o que aconteceu. Aos olhos dos fundadores da escola histórica, o direito natural parecia ameaçador, pois o reconhecimento de princípios universais levaria as pessoas a julgar a ordem estabelecida à luz desses princípios, pondo em dúvida a justiça dessa ordem. Por isso, a escola histórica optou por mergulhar na intramundaneidade. Tal opção, porém, fez da escola histórica um novo tipo de positivismo, caracterizado pela ausência da relativa segurança do empirismo das ciências naturais, e pela ideia de que o processo histórico carece de sentido. Com isso, o historicismo culminava em niilismo, e “a tentativa de fazer com que o homem estivesse absolutamente em casa neste mundo acabava por convertê-lo num perfeito estrangeiro.” (STRAUSS, 2009, p. 19).

2.4. O direito natural e a distinção entre fatos e valores

No segundo capítulo, Leo Strauss nos faz ver que atualmente repudia-se o direito natural não apenas com base no argumento de que todo pensamento humano é histórico, mas também porque muitos cientistas sociais consideram que existe uma multiplicidade de princípios de justiça que se opõem entre si, sem que se possa demonstrar a superioridade de nenhum deles. Este seria o ponto de vista de Max Weber.

Para Strauss, Weber se afastou da escola histórica em razão da ideia de ciência empírica predominante no tempo deste, segundo a qual tanto a ciência natural quanto a social seriam igualmente válidas para pessoas com visões de mundo distintas. Weber sustentava que a heterogeneidade dos fatos e dos valores exige o caráter eticamente neutro da ciência social, justificada na oposição entre ser e dever ser, entre fato e valor. Para aquele autor, não existe sistema de valores, e sim uma diversidade de valores de mesmo nível e eventualmente colidentes, sem que o conflito entre eles possa ser solucionado racionalmente. A ciência ou a filosofia social, no entender de Weber, “não pode fazer mais do que clarificar esse conflito e todas as suas implicações; a solução tem de ser entregue à decisão livre, não racional, de cada indivíduo” (STRAUSS, 2009, p. 39).

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Strauss entende que essa tese também leva ao niilismo, e acrescenta que, à maneira de Weber, muitos cientistas sociais parecem considerar o niilismo um mal menor, sendo o preço a pagar para se ter uma ciência social realmente científica. Ressalta, porém, que ante a possibilidade de escolher entre a cegueira frente aos fenômenos ou recorrer aos juízos de valor na linguagem científica, Weber agiu com acerto ao optar pela segunda alternativa. A proibição do emprego de juízos de valor na ciência social levaria, por exemplo, a uma descrição estritamente objetiva dos atos praticados num campo de concentração, mas não permitiria que se falasse em crueldade. Nesse caso, a rejeição dos juízos de valor poria em risco a objetividade histórica, por impedir que se chame as coisas pelo devido nome, comprometendo assim a objetividade de interpretação.

Sobre o pensamento moderno, Strauss afirma que este, nascido no século XVII, representa uma ruptura com a filosofia clássica. As ciências da natureza (e não mais a filosofia) passaram a ser vistas como o instrumento apropriado para a compreensão natural do mundo natural. Entretanto, no século XIX, restou evidenciada a necessidade de se estabelecer uma distinção entre a chamada compreensão “científica” (o mundo da ciência) e a compreensão “natural” (o mundo em que se vive). E para compreender o mundo natural, pré-científico e pré-filosófico, o caminho mais adequado, segundo Strauss, é buscar a informação proporcionada pela filosofia clássica sobre suas origens, especialmente se essa informação for complementada com a consideração das proposições mais elementares da Bíblia. Desse modo, torna-se possível conhecer a gênese da ideia de direito natural.

    1. 2.5.  A origem da ideia de direito natural

Para compreender o problema do direito natural, o ponto de partida não deve ser o da compreensão “científica” das coisas políticas, mas o da sua compreensão “natural”, ou seja, de como essas coisas se dão na vida política cotidiana que, em todas as suas configurações, direciona-se para o problema do direito natural. Este é o tema básico do terceiro capítulo.

A ideia de direito natural é ignorada antes de se levar em conta a ideia de natureza. Para se chegar à descoberta da natureza, a primeira grande distinção filosófica foi entre natureza (physis) e convenção (nomos). Tal distinção apresenta-se como condição para o surgimento da ideia de direito natural, condição necessária, mas não suficiente, haja vista que o direito como um todo poderia ser pura convenção. Portanto, a questão primordial da filosofia política é esta: existe mesmo direito natural?

Para a filosofia pré-socrática a resposta a essa indagação é negativa, uma vez que até então predominava o ponto de vista convencionalista, expresso de forma lapidar neste excerto de Heráclito: “Para Deus todas as coisas são belas [nobres] e boas e justas, mas os homens supõem que algumas coisas são justas e outras são injustas” (STRAUSS, 2009, p. 81).

Um dos argumentos básicos do convencionalismo, utilizado para negar o direito natural, é que essas coisas justas variam de sociedade para sociedade. A despeito de reconhecer que esse argumento tem gozado de certa vitalidade ao longo do tempo, Strauss procura demonstrar sua inconsistência intrínseca, afirmando que do mesmo modo que a variedade de concepções que as pessoas têm do universo não é prova de que o universo não existe ou que não pode ser explicado, assim também a diversidade de ideias sobre a justiça não é evidência de que o direito natural não existe ou que não pode ser conhecido. Contudo, a defesa da possibilidade de existência do direito natural não deve servir como pretexto para aqueles que, identificando esse direito com suas próprias concepções de justiça, reivindicam o status de universalidade para valores particulares ou para preconceitos de uma determinada sociedade.

    1. 2.6.  O direito natural clássico

Sócrates, “o primeiro a fazer a filosofia descer dos céus e a forçá-la a investigar a vida e os usos, as coisas boas e más” (STRAUSS, 2009, p. 105), inaugura a doutrina clássica do direito natural, desenvolvida por Platão e Aristóteles, e que chega a Tomás de Aquino. É dessa doutrina que trata o quarto capítulo do livro.

A “viragem socrática” não se funda na desconsideração das coisas divinas ou naturais, e sim numa nova abordagem à compreensão de todas as coisas: “Sócrates afastou-se dos seus predecessores ao identificar a ciência do todo, ou de tudo o que é, com a compreensão do que ‘é cada um dos seres” (idem, p. 107).

Para a compreensão do que é cada um dos seres, o caminho escolhido por Sócrates foi o da dialética, a arte da conversação ou do debate amigável:

O debate amigável que conduz à verdade torna-se possível ou necessário pelo facto de as opiniões acerca do que as coisas são, ou as opiniões do que alguns grupos muito importantes de coisas são, serem contraditórias. Ao se reconhecer as contradições, é-se forçado a ir além das opiniões rumo a uma concepção coerente das coisas em questão. Essa concepção coerente torna visível a verdade relativa das opiniões contraditórias; a concepção coerente acaba por se revelar como a concepção englobante ou total. Assim, as opiniões são vistas como fragmentos da verdade, fragmentos manchados da verdade pura. Por outras palavras, as opiniões acabam por ser solicitadas pela verdade auto-subsistente, e a ascensão à verdade acaba por ser orientada pela verdade auto-subsistente que cada homem nunca deixa de pressentir (idem, p. 109).

Nessa perspectiva, compreende-se que a diversidade de opiniões acerca da justiça não apenas se harmoniza com a existência do direito natural; é condição para essa existência. A dificuldade é descobrir em que consiste o direito natural.

Em Platão, a ideia de lei natural relaciona-se à concepção de um Estado original perfeito. Este não pode se circunscrever aos limites da cidade, pois a “moral cívica” implica, por um lado, amor aos concidadãos e, por outro, ódio aos inimigos da cidade. Nesse caso, somente algumas regras básicas, aplicáveis em tempo de paz, poderiam almejar a universalidade. A saída, então, seria transformar a cidade num “Estado mundial.” No entanto, nenhuma pessoa ou grupo de pessoas pode governar a humanidade de forma justa. Por isso, o “Estado mundial” platônico, na verdade, é o reflexo do cosmos governado por Deus, a única cidade verdadeira, absolutamente conforme à natureza por ser plenamente justa, já que é governada pela Sabedoria. Daí a idéia de que os indivíduos só podem se tornar cidadãos ou homens livres se forem sábios, pois a sua obediência à lei que ordena a cidade natural coincide com a prudência, que é fruto da sabedoria.

Decorre também dessa concepção a ideia de que se a Deus cabe o governo do cosmos, o governo da cidade cabe ao filósofo. Este, porém, tem consciência de que a vida na cidade não corresponde à vida ideal, pois o ser humano é um ser a meio caminho, entre as bestas e os deuses. Então, para que sejam compatíveis com as exigências da cidade, as exigências da sabedoria precisam ser diluídas, e por igual razão, o direito natural precisa ser diluído em um direito convencional.

Aristóteles, por sua vez, não vê necessidade de tal diluição. Para ele, não há assimetria fundamental entre o direito natural e as necessidades da sociedade política, pois o ser humano é por natureza um animal político. Contudo, não nega a tensão entre as exigências da filosofia e as da cidade; apenas deixa implícito que as fases intermediárias no processo do pleno desenvolvimento da filosofia, mesmo que não sejam totalmente consistentes, têm consistência bastante para os efeitos práticos. Se a vida humana, por ser meramente humana, só se desenvolve na penumbra, o direito natural e a justiça também podem permanecer na penumbra, em vez de ser retirados diretamente da caverna para a incandescência do sol, como propusera Platão.

Destaca-se ainda no pensamento aristotélico a ideia do direito natural mutável. Tal concepção, de acordo com Tomás de Aquino, deveria ser compreendida com restrição. Para este, os axiomas fundamentais do direito natural são universalmente válidos e imutáveis; já as regras específicas, deduzidas desses axiomas, são mutáveis. Existem, porém, outras compreensões da ideia aristotélica de mutabilidade do direito natural. A interpretação medieval alternativa ou averroísta, que, segundo Strauss seria melhor designada como perspectiva dos falâsifa (aristotélicos islâmicos) e dos aristotélicos judaicos, defende que o direito natural aristotélico era na verdade “o direito natural positivo”, um direito quase-natural, instituído convencionalmente, embora distinto do direito positivo por se fundamentar em convenções reconhecidas universalmente. Strauss, todavia, sugere a hipótese de que Aristóteles, quando se referia à mutabilidade do direito natural, tinha em mente sobretudo decisões concretas e não proposições gerais, pois em qualquer conflito humano há sempre a possibilidade de uma decisão baseada no exame exaustivo de todas as circunstâncias que o envolvem, uma “decisão reclamada pela situação. O direito natural consiste nessas decisões. Entendido desse modo, o direito natural é obviamente mutável” (STRAUSS, 2009, p. 138).

Já na doutrina de Tomás de Aquino não subsistem dúvidas a respeito da harmonia fundamental entre o direito natural e a sociedade civil, tampouco quanto à imutabilidade das proposições fundamentais da lei natural, pois os princípios da lei moral, especialmente da maneira como foram formulados na “Segunda Tábua do Decálogo” não permitem exceções, a não ser na hipótese de uma intervenção divina. O problema, porém, reside nessa invocação ao divino para legitimar o direito natural, pois a doutrina tomista da lei natural termina se entrelaçando com os domínios da teologia, e, segundo Strauss, foi em parte, como resposta à incorporação da lei natural pela teologia, que surgiu a concepção moderna de lei natural.

    1. 2.7 O direito natural moderno

O quinto capítulo se atém aos pensamentos de Hobbes e Locke. Este, segundo Strauss, foi o mais famoso e influente entre todos os teóricos do direito natural na modernidade, embora seja para Hobbes que tenhamos de voltar nossa atenção, se pretendemos compreender o caráter específico do direito natural moderno.

      1. 2.7.1. Hobbes

A filosofia de Thomas Hobbes representa uma ruptura em relação ao pensamento tradicional. Contudo, além da ruptura, Strauss identifica nessa filosofia uma combinação de duas tradições opostas, o platonismo e o epicurismo. Essa combinação dá em resultado o hedonismo político, arranjo genuinamente moderno do idealismo político com uma visão materialista e ateísta do todo.

Na filosofia de Hobbes, a morte toma o lugar do telos. Em outras palavras, o medo da morte manifesta de maneira mais intensa o desejo natural primordial, que é o desejo de preservação de si mesmo. Tal desejo torna-se o fundamento da justiça e da moral. Por conseguinte, o fato moral fundamental deixa de ser um dever para ser um direito. Nisso consiste, em linhas gerais, a “viragem” hobbesiana:

 

Como o facto moral fundamental e absoluto é um direito, e não um dever, a função da sociedade civil, bem como os seus limites, têm de ser definidos em termos do direito natural do homem, e não em termos do seu dever natural. O Estado tem a função, não de gerar ou promover a vida virtuosa, mas de salvaguardar o direito natural de cada um. E o poder do Estado encontra seu limite nesse direito natural e em mais nenhum outro facto moral (STRAUSS, 2009, p. 157).

      1. 2.7.2. Locke

À semelhança de Hobbes, o fundamento da lei natural na doutrina de Locke também é um direito. No caso deste, é o desejo de felicidade, introduzido pela própria natureza no ser humano. Entretanto, como felicidade pressupõe a vida, o desejo de vida, na hipótese de conflito, tem primazia sobre o de felicidade. Por isso, o primeiro e mais forte desejo semeado por Deus na natureza do ser humano não poderia ser outro que não o da preservação de si mesmo. Esse desejo, mesmo posto naturalmente no ser humano, só pode ser descoberto pela razão, pois cabe a esta, aplicada à lei natural, descobrir o que é melhor para a existência humana. É, portanto, pela razão que o ser humano aprende lições importantes sobre o direito natural:

A razão ensina que “quem é senhor de si mesmo e da sua vida tem também um direito aos meios de a preservar”. A razão mais ensina que, como todos os homens são iguais em relação ao desejo, e por conseguinte ao direito de preservação de si, são também iguais no que é essencial, não obstante todas as outras desigualdades naturais (STRAUSS, 2009, p. 195).

No estado de natureza, cada um, como reitor de sua própria vida e dos meios para preservá-la, pode fazer tudo o que julgar proveitoso. Todavia, a razão ensina que não se pode preservar ou desfrutar a vida se não houver paz. Por isso, o mandamento da razão é que ninguém deve fazer mal a outrem, e, se o fizer, terá renunciado à razão, devendo submeter-se à devida punição.

Também é característica marcante do pensamento de Locke a doutrina da propriedade. Esta é vista como essencial para a preservação da vida e para a felicidade. A propriedade, então, aparece como instituição da lei natural, e o direito à propriedade, como corolário do direito fundamental à preservação de si mesmo, não decorrendo do pacto social. Por isso o fim da sociedade civil é a preservação da propriedade. O direito à propriedade, porém, tem de ser limitado, sob pena de tornar-se incompatível com a paz e com a preservação da humanidade. Além disso, o único título à propriedade que está de acordo com o direito natural é o trabalho. Por meio deste, cada pessoa pode apropriar-se do que útil e acumular coisas duráveis.

    1. 2.8. A crise do direito natural moderno

No último capítulo do livro, Leo Strauss discorre sobre a crise do direito natural moderno, a partir da análise das ideias de Rousseau e Burke. Segundo Strauss, Rousseau não foi o primeiro a perceber o equívoco do projeto moderno e a buscar refúgio no pensamento clássico. Entretanto, seu retorno à antiguidade representou um avanço da modernidade. Quanto a Burke, Strauss destaca a praticidade de sua obra.

      1. 2.8.1. Rousseau

O ataque de Rousseau à modernidade, de acordo com Strauss, foi feito, por um lado, em nome da cidade e da virtude, e por outro, em nome da natureza. Na modernidade, o Estado afigura-se como um organismo artificial, surgido convencionalmente como solução para corrigir as falhas do estado de natureza. Desse modo, para quem se dispusesse a fazer a crítica do Estado moderno, a questão básica era indagar se o estado de natureza era preferível à sociedade civil. No caso de Rousseau, este optou pelo regresso ao estado de natureza, em oposição à cidade clássica.

Segundo Rosseau, o homem é bom por natureza. Tal assertiva pode ser vista como uma crítica à tese de Hobbes, embora seu ponto de partida coincida com o pensamento hobbesiano. Da mesma forma que Hobbes, Rousseau afirmava que o homem é naturalmente associal. Porém, dessa premissa tira conclusão oposta à de Hobbes. Pois se o orgulho e o amor próprio pressupõem a sociedade, o homem natural não poderia ser orgulhoso ou vaidoso. E como os vícios têm suas raízes no orgulho e na vaidade, o homem natural só poderia ser bom. Mas não é só. O mesmo raciocínio que leva a afirmar que os vícios são alheios ao homem natural conduz à conclusão de que o homem natural também era privado da razão (e consequentemente, da liberdade), pois a razão é contemporânea da linguagem, e esta pressupõe a sociedade. Logo, sendo pré-social, o homem natural é pré-racional. Sendo pré-racional, o homem natural não tem capacidade de adquirir qualquer conhecimento da lei natural, que é a lei da razão. Em outras palavras, “o homem é por natureza bom porque é por natureza esse ser sub-humano que é capaz de se tornar bom ou mau” (STRAUSS, 2009, p. 231).

Ao concluir que a natureza humana é adquirida, Rousseau fez com que o direito natural moderno atingisse sua fase crítica, pois se o estado natural é sub-humano, não faz sentido procurar nele a norma natural para o ser humano. Mas ao mesmo tempo, a concepção de Rousseau, diferente das doutrinas de Hobbes e Locke, não apresenta o estado de natureza como um padrão negativo. Para aqueles, o estado de natureza era marcado por uma contradição imanente, que exigia sua superação pela sociedade civil. Rousseau, ao contrário, sustentava que a sociedade civil é que se caracterizava por uma inerente incompatibilidade, diferente do estado de natureza, no qual o homem era feliz por ser radicalmente independente. Isso explica a alternativa de retorno ao estado da natureza, bem como a ideia de que a “vida boa” é a mais próxima possível desse estado. Nessa linha de raciocínio, a sociedade democrática apresenta-se como a sociedade livre mais próxima da igualdade do estado natural. Na democracia é possível ao indivíduo até mesmo retirar-se voluntariamente da sociedade civil, viver “nas suas franjas”, ser vizinho da felicidade.

      1. 2.8.2. Burke

O pensamento de Burke caracteriza-se pela praticidade. Burke não produziu nenhuma obra teórica sobre os princípios da política, mas apenas declarações relativas ao direito natural em exposições com finalidades práticas específicas. Em suas exposições ad hominem, Burke admitia que no estado de natureza os homens “não-convencionados” têm direitos naturais como a autodefesa, governar a si mesmo e até um direito a todas as coisas. Todavia, ter direito a todas as coisas significa, em última análise, carecer de todas as coisas, o que leva Strauss a comentar que, de acordo com o pensamento de Burke, o estado de natureza é o estado de nossa natureza “nua e trêmula”, intocada pelas virtudes, é a barbárie originária. Por isso, esse estado natural, do qual decorreriam os “plenos direitos dos homens” não pode produzir o modelo da civilização. Por conseguinte, é a sociedade civil, e não “o estado de rude natureza’, que constitui o verdadeiro estado de natureza” (STRAUSS, 2009, p. 252).

Sobre a sociedade civil, Burke concorda que o seu fim é garantir os direitos do homem, de modo especial o direito de buscar a felicidade. No entanto, como esta só se alcança pela virtude (ou por restrições que as virtudes impõem às paixões), a submissão à razão, ao governo e à lei, que são restrições aos seres humanos, devem integrar o rol dos seus direitos, tanto quanto suas liberdades.

 

  1. 3. Direito natural e história: contribuições para os direitos humanos e cidadania

 

No início do trabalho foi dito que seriam buscadas no livro Direito natural e história, contribuições para o debate sobre direitos humanos e cidadania. Feitos os apontamentos do livro, resta-nos apontar as contribuições. Estas, em linhas gerais, relacionam-se a três aspectos relevantes da obra: o desejo de universalidade, o apelo à tradição e a abertura à dialética.

3.1. O desejo de universalidade

O desejo de universalidade articula toda a reflexão de Leo Strauss em Direito natural e história. Ao demonstrar as incongruências do historicismo e refutar a negação do direito natural pelo convencionalismo, Strauss abre caminho para que se discuta a possibilidade de existência de um direito natural universal ou universalizável. É importante destacar, porém, que essa discussão, para ser fecunda, deve ser feita com honestidade intelectual, a exemplo do que foi feito por Leo Strauss. Este, como vimos, põe em xeque o argumento convencionalista de que o direito natural não existe ou não pode ser conhecido em razão da variabilidade das concepções de justiça. Essa variabilidade, como demonstra Strauss, não elimina e, sim, pressupõe, a possibilidade da existência de coisas justas, e por conseguinte, do direito natural. No entanto, a postura de Strauss não é simplesmente apologética com relação a esse ponto de vista. Longe disso, ele cuida em deixar claro que a defesa da existência do direito natural jamais deve servir como subterfúgio para imposição de preconceitos ou de simulacro para pretensa universalização de valores que só beneficiem determinada sociedade.

A busca de um direito que não sucumba aos relativismos, ou se dissolva no niilismo, também é importante para o debate sobre direitos humanos e cidadania. Sabemos que direitos humanos e cidadania, como os conhecemos, são frutos do Ocidente ─ a propósito, a própria ideia de Ocidente e Oriente é invenção do Ocidente. No entanto, ao formular a doutrina dos direitos humanos e positivá-los numa Declaração com vistas à sua proteção internacional, “a tradição ocidental tocou em algo universal.” (Eberhard apud BALDI, 2004, p. 161).

Do mesmo modo, quando se fala em busca de uma cidadania planetária, está em jogo o anseio de universalização de direitos básicos a todas as pessoas, independente de diferenças sociais e culturais, o que deve ser parte do que costumamos chamar de globalização, em seu sentido mais amplo. É óbvio que, na prática, as dificuldades são imensas para a concretização desses desígnios. A globalização, como nos alerta Milton Santos, pode ser tida como a culminância do processo de internacionalização do mundo capitalista, tendo o seu lado perverso escondido pela máquina ideológica que procura pintá-la como uma fábula. No entanto, como observa o mesmo autor, não é nenhum devaneio pensar na construção de outro mundo, por meio de uma globalização mais humana, marcada não pela imposição do pensamento único, mas pela busca da consciência universal. Para tanto é preciso reorientar as bases materiais para essa construção, que já existem e que são, “entre outras, a unicidade da técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta” (SANTOS, 2000, p. 20). Nessa outra globalização, o projeto de universalização de direitos humanos e cidadania tem mais chance de ser aos poucos concretizado.

3.2 . O apelo à tradição

Outro aspecto relevante do livro Direito natural e história é o apelo à tradição. Para que se possa compreender a gênese da ideia de direito natural, Strauss nos propõe um retorno ao período anterior ao aparecimento da ciência e da própria filosofia. Para tanto, sugere uma escuta atenta aos ecos desse período presentes nas formulações da filosofia clássica e nas narrativas bíblicas. Trata-se de uma postura original, adjetivo que denota primeiramente não aquilo que é inédito, mas o que é relativo a origem.

Nesse retorno às origens avulta o papel da tradição, que se apresenta como algo de valor inestimável nas reflexões de Strauss, não sendo por acaso que a história de Nabot seja recontada na epígrafe do livro. O Jezraelita se recusa a vender sua vinha ao rei Acab não por teimosia ou especulação imobiliária, mas por ter consciência de que aquele patrimônio representa a tradição dos seus pais, e não mercadoria negociável, por maior que seja o preço ofertado.

No âmbito dos direitos humanos esse apelo é de inegável relevância. Muito se fala, nos dias atuais, sobre a necessidade de se estabelecer um diálogo intercultural sobre direitos humanos, com base na mútua compreensão de tradições culturais distintas. No entanto, não pode existir tal compreensão sem que aqueles que se propõem ao diálogo conheçam a fundo sua própria cultura e as relações desta com outras tradições. Além disso, importa lembrar que tradição é transmissão viva de valores culturais, dos quais não se deve abrir mão sem que haja razão suficiente para isso, sob pena de se perder a própria identidade. Mas não é só. A quebra da tradição pode ensejar consequências desastrosas. Foi o que aconteceu com a tradição ocidental sobre o valor da pessoa humana, “que se viu rompida com a irrupção do fenômeno totalitário” (LAFER, 2006, p. 118), tornando necessária a reconstrução dos direitos humanos.

O conhecimento da tradição também é fundamental para a compreensão das origens da cidadania. Uma parte dessa tradição pode ser encontrada nas narrativas bíblicas, uma das fontes invocadas por Strauss. Nesse sentido, Jaime Pinsky aponta o monoteísmo ético dos profetas sociais bíblicos como sendo, provavelmente, a “primeira expressão documentada e politicamente relevante (até por suas conseqüências históricas) do que poderíamos chamar de pré-história da cidadania.” (PINSKY, 2008, p. 17).

O monoteísmo ético, como observa Pinsky, é elemento fundamental não apenas para o judaísmo, mas também para grandes religiões como o cristianismo e o islamismo. Entre suas características está a mensagem profética de denúncia dos problemas sociais com vistas à construção de uma sociedade mais justa. Tal característica, a bem da verdade, não era exclusividade dos hebreus. José Luis Sicre informa que “a descoberta de numerosos textos orientais ─ egípcios, mesopotâmicos, hititas e ugaríticos ─ demonstrou que a preocupação com a justiça foi constante entre os povos do Antigo Oriente” (SICRE, 2002, p. 357). No entanto, não se pode olvidar a força da argumentação, que ressoa ainda nos dias de hoje, de discursos de profetas como Isaías, Amós e Jeremias, entre outros, relacionados a temas como administração da justiça, distribuição da riqueza e pagamento de salário.7

 

3.3.  A abertura à dialética

Outra grande contribuição de Direito natural e história reside na forma como o livro foi construído. Em vez de valer-se de argumentos apologéticos, Strauss optou pelo caminho nada retilíneo da dialética. Por isso, como observa Antonio Morgado, na introdução da obra, “sua leitura deve acompanhar as mudanças de cadência, as ascensões e as descidas, as escarpas vertiginosas e os vales seguros.” (STRAUSS, 2009, p. VI). Essa opção revela não apenas a grande erudição do autor, como torna a obra mais instigante e enriquecedora.

A dialética, como arte do debate, permite aos interlocutores reconhecer suas próprias contradições e a relatividade de seus “fragmentos de verdade”. Ao mesmo tempo, faz com que se avance para um conhecimento mais seguro das coisas, permitindo um entendimento mais confiável entre os interlocutores sobre o modo de lidar com elas. Da mesma forma, se há um caminho para a construção de uma cultura universal dos direitos humanos e de uma cidadania planetária, certamente não há de ser o da apologética e sim do diálogo. E mesmo que se diga que o paradigma da teoria e da práxis dos direitos humanos exige que se passe do “diálogo dialético” para o “dialógico” e para a “hermenêutica diatópica,”8 não se deve esquecer, como foi enfatizado por Strauss, que a genuína dialética consiste não apenas num debate, mas num debate amigável.

Para ser realmente amigável, o debate pressupõe respeito, apreço mútuo e solidariedade entre os interlocutores, afinal, amizade é igualdade, e amigo, um “outro eu.” Sendo assim, a genuína dialética não pode limitar-se ao plano teórico, mas deve compreender aspectos práticos. Nesse sentido, é importante frisar que Direito natural e história é não só uma obra de filosofia, mas de filosofia política, na qual a busca pelo direito natural aparece como uma necessidade para o mundo de hoje, tanto quanto era há milênios, haja vista que a vida política cotidiana, em todas as suas formas, continua a apontar para o “intrinsecamente justo” enquanto problema inevitável.

Quando se fala em direitos humanos e cidadania, a meta também é consenso sobre o justo e, principalmente, a realização da justiça. Não de uma justiça distante e inacessível, mas de uma justiça que seja a medida das relações humanas, tão necessária para a vida quanto o pão de cada dia. Houvesse mesmo essa justiça e:

...nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. (SARAMAGO, p. 4).

4. Considerações finais

A busca pela justiça é elemento fundamental na discussão sobre direitos humanos e cidadania. Essa discussão, como é de se esperar quando se trata de tema tão complexo, provoca divergências e apresenta desafios. Entre estes, destaca-se a resistência do relativismo cultural à concepção de universalidade dos direitos humanos, além do impacto da globalização econômica, que não corresponde ao desejo de construção de uma “cidadania planetária.”

Estes, entre outros, são problemas e desafios a ser enfrentados na discussão da universalização dos direitos humanos e globalização da cidadania. Obviamente, as respostas não serão encontradas na leitura de um livro. No entanto, em Direito natural e história podemos encontrar subsídios para tratar desses temas com mais clareza e profundidade.

Direito natural e história, como discurso tecido de forma dialética, no qual o autor procura perscrutar o justo por natureza, toca numa questão central dos direitos humanos e da cidadania, que é a questão da justiça. Todas as nossas ações do dia-a-dia, especialmente quando se tratam de decisões que devemos tomar, relacionam-se ao problema da justiça, que pode ser vista como a síntese de toda ética, e deve ser a medida fundamental das relações humanas.

Obviamente, para que se alcance a justiça nas relações humanas há muito ainda a ser feito, e nada pode ser feito sem um debate amigável entre diversos fragmentos de verdade, procedimento utilizado por Strauss em seu livro. Nessa conversa, não se exige necessariamente consenso, mas é fundamental que haja partilha. Somente pelo compartilhamento é possível aprendermos uns com os outros, o que contribui para diminuir não só a ignorância, mas a soberba de cada um. A conversa amigável entre fragmentos de verdade em busca de uma verdade maior, a exemplo da busca de construção dos direitos humanos e da cidadania, é sempre uma obra inacabada, pautada pelo respeito ao diferente e voltada para a incessante descoberta.

5. Referências

ALCÁZAR, Antonio Hortelano. Moral alternativa: manual de teologia moral.. São Paulo: Paulus, 2000.

ARNAUD, André-Jean (dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

BALDI, César Augusto (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

CORRAL, Benito Aláez. Nacionalidad, ciudadanía y democracia: a quién pertenece la Constitución? Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2006.

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Trad. Irene A. Paternor – São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba. Lecciones de derechos fundamentales. Colab. de Rafael de Asís Roig e Maria Del Carmen Barranco Avilés. Madrid, Dykinson, 2004.

MCBRYDE, David. Leo Strauss by David Mcbryde. Disponível em: <http://cato1.tripod.com/strauss-bio.htm>. Acesso em: 11/08/2009.

NATALI, João Batista. Mito sobre Leo Strauss “é delírio”, afirma sua filha: entrevista de Jenny Strauss Clay. Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br/folha/mundo/utl94u59186.shtml>. Acesso em: 11/08/2009.

OLIVEIRA, Cléver Cardoso T. Leo Strauss e Mel Gibson: perspectivas universalistas nos séculos XX e XXI. Disponível em: <http://usp.br/anagrama/oliveira_straussgibson.pdf>. Acesso em: 11/08/2009.

PINSKY, Jaime e Carla BasSanezi (orgs.). História da cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SARAMAGO, José. Este mundo da injustiça globalizada. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br.> Acesso em: 11/08/2009.

SICRE, José Luis. Profetismo em Israel: o profeta: os profetas: a mensagem. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

STRAUSS, Leo. Direito natural e história. Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2009.
 

1 O termo universalidade, neste caso, compreende ao mesmo tempo os três significados apontados por Gregorio Peces-Barba Martinez (2004, p. 191-195): universalidade racional, temporal e espacial, ou seja, universalidade no âmbito da razão, da história, da cultura e do cosmopolitismo. Percebe-se esse desejo de universalidade na própria conceituação de direitos humanos, tidos como “o conjunto de princípios e de normas fundamentadas no reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos e que visam assegurar o seu respeito universal e efetivo.” (ARNAUD, 1999, p. 271)

2 Cf. ALCÁZAR, 2000, p. 9.

3 Sobre esse desejo, é sintomática a epígrafe do livro História da Cidadania (PINSK, 2008, p.7), em que se lê: “Por uma cidadania planetária.”

4 A imbricação entre direitos humanos e cidadania é tamanha que Celso Lafer, comentando o pensamento de Hannah Arendt, assim se posiciona: “O que ela [Hannah Arendt] afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais ─ seu estatuto político ─ vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante.” (LAFER, 2006, p. 151).

5 OLIVEIRA, Cléver Cardoso T. Leo Strauss e Mel Gibson: perspectivas universalistas nos séculos XX e XXI.

6 Havia dois homens numa cidade; um era rico, e o outro era pobre. O homem rico tinha muitíssimas manadas e rebanhos. Mas o homem pobre não tinha mais nada além de uma ovelhinha, que comprara e criara: e a ovelhinha cresceu com ele e com os seus filhos: comia da sua carne e bebia da sua taça, e dormia no seu colo, e era para ele como uma filha. Depois chegou um viajante para visitar o homem rico, e este não quis tomar nenhuma das suas ovelhas nem das suas vacas para servir o viajante que o visitava; mas apoderou-se da ovelhinha do homem pobre e preparou-a para o homem que o visitava.

Nabot, o Jezraelita possuía uma vinha em Jezrael, perto do palácio de Acab, rei da Samaria. Acab falou a Nabot, dizendo, Entrega-me a tua vinha, que vou transformá-la em pomar, porque está perto da minha casa; e dar-te-ei uma vinha melhor, ou, se preferires, pagarei o seu valor em dinheiro. E Nabot disse a Acab, O Senhor proíbe-me de te dar a herança dos meus pais.

 

7 A respeito dessas questões, Jaime Pinsky (2008, p. 22-23) fala da admirável atualidade do discurso de Isaías (Is 1,15-17), no qual o profeta alerta para o respeito ao direito e assistência ao excluído, especialmente ao órfão e à viúva. Também se refere a um discurso de Amós (Am 5,11-14), como sendo uma das passagens mais fortes da Escritura, na qual se exige do povo escolhido “um comportamento ético, um verdadeiro respeito cidadão avant la lettre por parte dos membros do povo hebreu” (Idem, p. 24). José Luis Sicre, por sua vez, aponta alguns problemas concretos denunciados pelos profetas, entre os quais está a questão do salário. Esta, segundo o autor, “ é tratada expressamente por Jeremias, quando acusa o rei Joaquim de construir para si um palácio sem pagar os trabalhadores (Jr 22,13-19). Malaquias denuncia os proprietários que fraudam o salário diário de quem trabalha para eles (3,5)” (SICRE, 2002, p. 371)

8 Christoph Eberhard trata especificamente dessa questão, no ensaio Direitos humanos e diálogo intercultural, uma perspectiva antropológica (in BALDI: 2004, p.175-179).

Sobre o autor
Antônio Cavalcante da Costa Neto

Juiz da Vara do Trabalho de Guarabira (PB). Professor da UEPB. Mestre em Direito pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba). Autor dos livros "Direito, Mito e Metáfora: os lírios não nascem da lei" (Editora LTr), Bem-vindo ao direito do trabalho (Papel e Virtual) O sentido da vida (Publit Soluções Editoriais) e Lazer, direitos humanos e cidadania (Ed. Dialética).

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