O que dizer desta teoria da dupla qualificação?
1.Em primeiro lugar, a teoria de AGO difere da de ROBERTSON na medida em que a segunda qualificação, ao invés da segunda qualificação de ROBERTSON (que vai chamar só as normas que tenham uma natureza jurídica idêntica à da situação em causa ― natureza familiar ― v.g.: não havendo nenhuma norma daquela natureza vai chamar, supletivamente, outra), não tem por função localizar a competência atribuída a uma lei em determinado capítulo ou sector do sistema, mas vai, tão somente, dirigida à pesquisa de normas que, na lei designada, regulam os tipos de situações em que se enquadre a situação concreta, ou seja, dentro do único ordenamento jurídico competente, vai chamar todo o tipo de normas para regular aquela situação (chamamento indiscricionado).
Trata-se, assim, de uma doutrina que se desinteressa da «natureza» que os preceitos estrangeiros aplicáveis assumem no sistema legislativo a que pertencem.
2.Questão da qualificação da competência.
a)Para AGO, este problema consiste em averiguar a que situações da vida quer a regra de conflitos referir-se mediante o emprego de determinada noção jurídica ― a questão resolve-se recorrendo a normas substanciais da «lex fori» que utilizam o mesmo conceito para delimitar a esfera de relações que pretendem disciplinar.
Esta posição articula-se com a concepção geral do DIP AGO entende as regras de conflitos como exclusivamente destinadas a definir e balizar o campo de aplicação dos sistemas jurídicos estrangeiros. O DIP seria uma disciplina jurídica especial instituída para aquelas relações que, por serem estranhas à vida interna do Estado, não seria adequado submeter ao ordenamento jurídico local.
Para nós, o DIP, é o conjunto de critérios normativos através dos quais se há-de apurar, em qualquer hipótese de conflitos ou concurso de leis, qual deverá ser aplicada.
É justo que o DIP coloque os diferentes sistemas jurídicos em pé de igualdade, ou seja, que a legislação estrangeira seja considerada competente sempre que, se ela fosse a «lex fori» e as mesma as circunstâncias ocorrentes, a «lex fori» se apresentasse como aplicável.
Contudo, tal solução só resultará possível se se renunciar à ideia que há que proceder inicialmente a uma qualificação da situação factual concreta, recorrendo, para tanto, ao sistema de regras materiais do ordenamento jurídico do foro.
b)A doutrina a que aderimos assegura, de imediato, a aplicação ao caso concreto de todos os preceitos da lei declarada competente que se relacionem, de modo essencial, pelo conteúdo, fins e conexões sistemáticas, com a matéria ou questão de direito em causa. Ou seja, a referência da norma de DIP a uma lei não abrange a totalidade das suas disposições, mas vai apenas dirigida às que possam subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.
c)Só a posição adoptada pela doutrina portuguesa e o Código Civil toma na devida conta o princípio da paridade de tratamento, pois só ela se mantém fiel à ideia de que os factores determinantes da aplicabilidade das leis estrangeiras deverão ser os mesmos que decidem da aplicação das nossas próprias leis. Toda a qualificação «lege fori», pois que privilegia esta lei, obrigando a subsumir ao seu sistema de regras materiais a questão de direito em causa à fim de chegar à identificação da regra de conflitos aplicável, lesa manifestamente o princípio da igualdade de tratamento.
3.1.4.6) Os problemas (+/-) de qualificação:
O nosso Código Civil não propõe aqui qualquer directiva. Por nós, pensamos que a solução dos mencionados problemas deve, normalmente, buscar-se no plano do próprio DIP Para tanto, tentar-se-á definir uma relação de hierarquia entre as qualificações conflituantes. E o critério norteador dessa hierarquização será, fundamentalmente, o dos fins a que as várias normas de conflitos vão apontadas.
Mas, se o critério geral é este, por vezes, a questão só poderá ser correctamente resolvida se nos colocarmos numa perspectiva diferente, uma perspectiva jurídico material. Haverá, então, que ter em conta as soluções oferecidas pelas próprias leis em presença, já para entre elas optar, já para as harmonizar entre si (adaptação), em termos de se tornar possível a sua aplicação combinada, já para aplicar uma única dentre elas, mas depois de convenientemente ajustada à nova situação que se apresenta.
O facto de a doutrina propugnada sobre a qualificação poder engendrar dificuldades do tipo das referidas, não há razão para condená-la. Só uma posição de rígida sujeição à «lex fori», como a defendida por AGO, poderia eliminar estes problemas, porém, esta tese é absolutamente inaceitável. Por outro lado, é certo que a produção de situações destas está longe de ser uma consequência exclusiva do método de qualificação adoptado.
3.1.4.7) A questão do conflito de qualificações:
3.1.4.7.1) Conflitos positivos de qualificação:
3.1.4.7.1.1) Conflito entre a «qualificação forma» e a «qualificação substância»:
Este tipo de conflitos resolve-se sem dificuldade de maior e, justamente, pela atribuição de primazia à «qualificação substância» e à norma de conflitos relativa aos requisitos de fundo do acto jurídico.
3.1.4.7.1.2) Conflito entre a «qualificação real» e a «qualificação pessoal»:
Aqui, a qualificação pessoal terá que ceder. Mas por quê?
A qualificação pessoal terá que ceder perante a qualificação real, pois a ligação da coisa ao Estado territorial é muito mais forte do que a do indivíduo ao Estado nacional: este não tem nenhum poder efectivo sobre coisas situadas em território estrangeiro, e a efectividade de tais decisões dos seus tribunais em relação a tais coisas depende da cooperação que lhes queiram prezar as autoridades do Estado territorial.
E, deste modo, teremos o aproveitamento do chamado princípio da maior proximidade para resolver uma das formas mais típicas do conflito de qualificações. Por ele se resolverão, em muitos casos, as dificuldades suscitadas pela diferente caracterização do direito do Estado a assenhorar-se, em certos termos, das heranças abertas por óbito de particulares.
3.1.4.7.1.3) Conflito entre a qualificação «regime matrimonial» e «sucessório»:
Neste tipo de caso não há, em regra, uma relação de contradição ou de mútua exclusão entre dois preceitos materiais ou duas séries de preceitos materiais procedentes de ordenamentos jurídicos diferentes; e as dificuldades que se apresentam resolver-se-ão considerando que os 2 (dois) estatutos são de aplicação sucessiva: aplica-se primeiro o estatuto matrimonial e, depois, o estatuto sucessório do supérstite. À lei da sucessão só pertencerá a devolução dos bens que constituam a herança.
3.1.4.7.2) Conflitos negativos:
Aqui, só se levanta um verdadeiro problema quando exista uma autêntica lacuna de regulamentação segundo o ponto de vista da «lex fori», isto é, quando a não aplicação das duas leis, em princípio, aplicáveis, produza um resultado insatisfatório.
Outro ponto é que, muitas vezes, o conflito é, tão só, aparente, pois aos preceitos em causa de uma das leis interessadas pode vir a caber a qualificação correspondente àquela que põe em movimento a norma de DIP que designa esta lei como aplicável.
3.1.4.8) Passos lógicos do processo de qualificação:
Que questões são englobadas pelo processo de qualificação?
O processo de qualificação engloba a questão da interpretação do conceito-quadro ; seu objecto é a determinação do âmbito do conceito-quadro.
Como vai ser esta interpretação?
De acordo com a «lex formalis foris» (lei formal do foro); vamos interpretar esse conceito-quadro teleologicamente, de acordo com os princípios que orientam o sistema conflitual do foro; de acordo com o fim e sentido das normas conflituais do foro. Vai ser também uma interpretação autónoma das normas materiais do foro.
E isto para quê?
Para evitar situações claudicantes (v.g.: a adopção não era admitida entre nós; se interpretássemos o conceito-quadro de acordo com as nossas normas materiais, víamos que nós, nem mesmo conhecíamos este instituto).
Mas, na interpretação do conceito-quadro temos que abranger também os outros ordenamentos jurídicos.
No artigo 15º do Cód. Civ. não há qualquer referência a esta matéria, pois pressupõe que este é um passo lógico.
Resolução de um caso de qualificação:
1º passo: Tratando-se de um caso de qualificação, o primeiro passo a tomar é definir a qualificação;
2º passo: o passo inicial da resolução do caso propriamente dito está na aplicação do princípio da não transactividade para, assim, recortar o âmbito das leis potencialmente aplicáveis ao caso «sub judice». Este passo é muito importante para se provar a desnecessidade da qualificação primária da doutrina tradicional defendida por ROBERT AGO e por ROBERTSON e destinada a determinação do ordenamento jurídico definitivamente competente. Por outro lado, a aplicação do princípio da não transactividade mostra que a regra de conflitos não deve ser considerada como um «prius» metodológico, pois, por esta via, se prova que o DIP não se resume a uma mera soma de regras de conflitos;
3º passo: mobilização das regras de conflitos em causa ― ver quais as questões que regulam e quais as leis que chamam (devemos apreciar a estrutura da regra de conflitos, ou seja, devemos averiguar se se trata de uma regra de conflitos de conexão simples, de conexão múltipla subsidiária, alternativa, cumulativa). Este exercício corresponde à interpretação do conceito-quadro das regras de conflitos, interpretação esta que deve ser feita de acordo com a «lex formalis fori» ― interpretação autónoma e teleológica. Trata-se de um passo imprescindível para a resolução da questão da qualificação no seu todo, muito embora, não esteja mencionada no artigo 15º do Código Civil;
4º passo: falar sobre a interpretação da «lex materialis fori»;
5º passo: segundo momento ― objecto da qualificação (cfr. o artigo 15º do Código Civil), ou seja, devemos dizer em que consiste este momento. Assim: qual é a natureza da norma material em causa?
Nota: ver se há duas questões diferentes dentro do mesmo caso para, assim, as tratá-las em separado.
6º passo: subsumir as normas ao conceito-quadro de uma das regras de conflitos, dando a conclusão ao caso.
Nota: se a lei é declarada aplicável a título de estatuto real, não fará sentido admitir a inclusão, no âmbito da competência dessa lei, de preceitos situados fora dessa categoria. O chamamento que a regra de conflitos faz é sempre circunscrito e funcional, ou seja, não chama todas as normas.
7º passo: ver se, no caso de não se aplicar a nossa lei, se há algum mecanismo que possa, no entanto, levar à sua aplicação (v.g.: normas de aplicação necessária e imediata ― NANI ―; cláusula de excepção de ordem pública internacional).
4) Casos práticos:
Caso 1
A, português, residente na Irlanda, morreu em Lisboa solteiro. B, irlandesa, invocando a circunstância de viver há mais de 2 (dois) anos com A, inicialmente em Portugal e, depois, na Irlanda, como se fossem casados, invoca o disposto no art. 2020º do CC. «Quid iuris» sabendo que o direito irlandês não reconhece quaisquer direitos à união de facto. Mobilize as seguintes regras de conflitos: arts. 52º, 53º, e 72º do CC.
Resposta:
Estamos aqui perante uma questão de aplicação / realização da regra de conflitos. O passo inicial nesta matéria está na utilização do princípio da não transactividade (o que demonstra que o DIP não é um mero somatório de regras de conflitos ― as regras de conflitos não são o «prius» metodológico em torno do qual o DIP gravita), princípio este que recorta âmbito dos ordenamentos jurídicos potencialmente aplicáveis.
Os ordenamentos jurídicos em contacto nesta situação são:
Lei portuguesa |
lei da nacionalidade de A; |
lei da residência comum ao início da união de facto | |
«lex fori». | |
Lei irlandesa |
Lei da residência comum à data do óbito |
Este primeiro passo arreda e prova a desnecessidade de recorrer à qualificação primária utilizada pela doutrina tradicional para designar o ordenamento jurídico definitivamente competente (AGO; ROBERTSON). Atendemos, mais especificamente à regra de conflitos que somos chamados a mobilizar para resolver esta questão jurídica.
- Temos o artigo 72º do Cód. Civ. que rege as relações sucessórias e chama a lei nacional do «de cujus» ao tempo da sua morte (lei portuguesa).
- O artigo 52º do Cód. Civ. rege o estatuto pessoal e patrimonial primário matrimonial e chama, na falta de nacionalidade comum, a lei irlandesa. Trata-se de uma regra de conflitos de conexão múltipla subsidiária, pois só no caso de não se preencher a primeira conexão é que se irá aplicar a segunda; é também uma regra de conflitos de conexão móvel, pois o que releva é sempre a lei da residência comum actual ― e esta pode mudar a qualquer altura).
- O artigo 53º do Cód. Civ., por fim, regula o regime patrimonial secundário e chama a lei da nacionalidade comum e, na falta desta, a lei da residência comum ao tempo do casamento (contudo, no nosso caso, não há casamento, mas uma simples união de facto) ― chama a lei portuguesa. Trata-se de uma regra de conflitos de conexão múltipla subsidiária fixa (concretiza-se num determinado tempo).
Este exercício de interpretação do conceito-quadro das regras de conflitos, isto é, de determinação do seu âmbito normativo (que questões jurídicas é que ele engloba) designado por critérios de qualificação é um passo imprescindível para a resolução de qualquer questão de qualificação no seu todo, muito embora não decorra especificamente do disposto no artigo 15º do Cód. Civ. (e não consta, pois o legislador entendeu que era um passo lógico do processo de qualificação):
- ZITELMANN ? questões jurídicas;
- SAVIGNY → meras relações jurídicas; e
- AGO → situações de facto.
Esta interpretação deve ser autónoma e teleológica de acordo com o critério «lex formalis foris», isto é, de acordo com as específicas valorações e finalidades subjacentes ao direito de conflitos, de modo a permitir a absorção de institutos jurídicos análogos aos do direito material do foro (cfr., o artigo 30º do Cód. Civ.), de forma a englobar, neste caso particular, as relações para-familiares (união de facto).
Não temos nenhuma norma para a união de facto, sendo assim, temos que subsumir esta questão a uma outra norma (familiar).
No nosso caso, se interpretarmos o conceito quadro do artigo 52º como apenas se referindo às normas materiais especiais sobre o casamento, estaríamos a fazer uma interpretação «legis materialis foris», nunca poderíamos englobar neste conceito-quadro a união de facto (cônjuges). Igualmente ilógico revelar-se-ia o recurso à «lex causae» para interpretar o conceito-quadro da regra de conflitos, uma vez que só após o exercício da qualificação é que se chega ao ordenamento jurídico competente.
Profundamente interligado com este problema e, logicamente, deste indissociável, coloca-se-nos o problema do objecto da qualificação (cfr. o artigo 15º do Cód. Civ.) que consiste na subsunção de normas materiais do ordenamento jurídico competente de acordo com o conteúdo e função que assumem as mesmas no conceito-quadro da regra de conflitos que as chama. Este chamamento é um chamamento discriminado (diferentemente do que sustenta AGO), só se subsumindo as normas materiais que dêem resposta à tarefa normativo-problemática enunciada no conceito-quadro.
Será então que o art. 2020º do CC. tem uma natureza sucessória ou familiar?
Quanto a nós, defendemos que tem natureza familiar. Parece não ter natureza sucessória, já que B não é chamado a herdar, pois não se integra em nenhuma classe sucessória. É certo que o direito a alimentos tem efeitos sucessórios, mas é uma questão meramente reflexa. O essencial é a configuração do próprio direito a alimentos que decorre da prévia existência de uma relação familiar ou para-familiar.
Esta norma do artigo 2020º do Cód. Civ. subsumir-se-á ao artigo 52º ou ao art. 72º do Cód. Civ.?
Este direito a alimentos é visionado não como um direito patrimonial e, muito menos, como um direito patrimonial dependente de um específico regime de bens que nem sequer existe, mas como um direito de natureza pessoal que encontra o seu fundamento no direito à assistência entre as pessoas que fazem parte dessa união. Logo, subsume-se ao conceito-quadro do artigo 52º do Cód. Civ. e, como este artigo chama a lei irlandesa para intervir na regulamentação de questão jurídica em causa, o artigo 2020º do nosso Código Civil não pode ser mobilizado para resolver esta questão. Como o ordenamento jurídico irlandês (chamado por força do artigo 52º do Cód. Civ.) não conhece este instituto, o juiz português, com base nesse facto, nunca poderia deferir o direito a alimentos.