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Sistemas de Processo Penal

e o modelo adotado pela Constituição de 1988

Agenda 13/10/2019 às 13:58

O texto tem por objetivo a exposição dos três sistemas penais: acusatório, inquisitivo e misto para em seguida examinar de maneira crítica qual o modelo adotado pela Constituição Federal de 1988 e a sua irradiação no ordenamento jurídico.

Sistemas de Processo Penal

                                                           por Marcelo Murillo de Passos                                                                                                                especialista em Direito Penal e Direito Processo Penal

                                                                         

 

Palavras chaves: Processo Penal. Constituição Federal. Código de Processo Penal. Sistema Inquisitivo. Sistema Acusatório. Sistema Misto. Gestão da Prova pelo Poder Judiciário. Imparcialidade do Juízo.

 

A doutrina tradicional não tem dado importância ao tema. Sem se entender adequadamente os sistemas processuais não dá para entender corretamente o funcionamento do processo penal.

 

O Sistema Acusatório e Inquisitivo (análise crítica)

 

                                    Os sistemas processuais acusatório e inquisitivo apresentam-se como duas formas históricas de tipos de atuação de jurisdições penais. O sistema inquisitivo é a antípoda do sistema acusatório.

                                    O sistema acusatório é cronologicamente anterior ao sistema inquisitivo, e nasceu na Grécia antiga. Deu-se o nome de acusatório porque o processo inicia-se por meio de uma acusação circunstanciada do fato imputado ao réu.  O sistema inquisitivo surgiu vários séculos depois em Roma, na época em que se passou a admitir a acusação pública na persecução penal (cognitio extraordinem).

                                    O sistema inquisitivo consolidou-se na Europa continental a partir do Direito Canônico, secularizando-se no século XII e XIII na Europa medieval por meio do trabalho dos juristas da Universidade de Bolonha, assim como pelos intelectuais da escola de Paris num momento de recuperação do Direito romano Justiniano e através da forte influência da Igreja católica.

                                    Por possuir características autoritárias o sistema inquisitivo foi um dos sustentáculos das Coroas reais absolutistas europeias do século XVI, principalmente da França, sob o leitmotiv de que proteção dos interesses públicos não podia ficar na mão da iniciativa privada do ofendido. As reformas contra o sistema inquisitivo exsurgiram com o advento das revoluções burguesas do século XVIII de inspiração iluminista. O sistema acusatório propagou-se da Europa para as Américas a partir do século XIX.

                                    No plano político, os processos penais que adotam o sistema acusatório baseiam-se numa concepção democrática da jurisdição (G. Stefani et G. Levasseur, Droit Pénal Général et Procédure Pénale, II, 1975, p. 44). O sistema inquisitivo, por sua vez, baseia-se num modelo incardinado dentro de um sistema hierarquizado de poder político centralizado, leviatânico, que busca um resultado condenatório (Estado policialesco). Portanto, para se saber qual é o regime político adotado por um país basta examinar o seu estatuto processual penal dadas as suas consequências práticas no exercício diário da jurisdição.

                                    Como tem destacado Giovanni Tranchina (Diritto Processuale Penale, I, 2001, pp. 37-38), os regimes autoritários, porque não se conformam com uma política de liberdades públicas, encontram no sistema inquisitivo um poderoso instrumento de dominação popular. E conclui, que o desaparecimento das garantias fundamentais processuais, que o rito inquisitorial ignora, favorece indubitavelmente a realização de toda arbitrariedade e constitui um instrumento eficacíssimo de perseguições. Ao contrário, as regras mais elementares do processo acusatório não foram “inventadas” pelo legislador ou pelo legislativo, mas se tratam de uma conquista na marcha secular dos povos, muitas vezes resultado de uma luta sangrenta, cujo desprezo representa um verdadeiro retrocesso civilizatório.

                                    A tendência da processualística moderna dos países democráticos é a de retirar do juiz criminal os poderes tipicamente inquisitivos, tendo como meta o sistema acusatório.

                                    Diz Lorena Bachmaier Winter (Proceso Penal y Sistemas Acusatorios, 2008, p. 14) que "o termo inquisitivo referido ao processo judicial tem adquirido um significado plenamente pejorativo até ao ponto de que a qualificação de qualquer atuação processual como inquisitiva imediatamente se identifica com processos medievais e práticas abusivas; ou, em todo caso, com vulneração das garantias fundamentais do acusado. Tanto é assim, que se tem afirmado que não faz sentido falar em processo inquisitivo, ao carecer desse princípio fundamental de todo processo judicial que é a imparcialidade. Se o conceito inquisitivo combine todo o mal, o termo acusatório, por sua vez, como reflexo, se erige em símbolo de todo o bem e se identifica com os valores da justiça, da igualdade e assim que o chamado princípio acusatório seja invocado como garantia de todas as atuações do processo e o ideal a ser alcançado na busca da justiça penal no século XXI".

                                    Falar-se em processo inquisitivo, aliás, é uma contradição terminológica em matéria processual. Ontologicamente, processo é uma relação colegiada dialética, com sujeitos processuais distintos e com funções distintas (conditio sine qua non). Conforme a fórmula de Bulgaro (jurista italiano do século XII): judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei. No “processo” inquisitivo por inexistir partes contrapostas não existe contradição; não existe sujeitos processuais, mas apenas o investigado/acusado como objeto da investigação frente a um inquisidor.

                                    Para fins didáticos, através da tabela simplificada abaixo, baseada em Pedro Aragoneses Alonso (Instituciones de Derecho Procesal Penal, 1984, pp. 41-42), podemos reunir as principais características de um e de outro sistema:        

 

 

ACUSATÓRIO

 

 

INQUISITIVO

 

JURISDIÇÃO

 

Assembleia popular ou jurado popular.

 

 

Juízes profissionais ou permanentes.

 

 

RELAÇÃO DOS SUJEITOS

 

Igualdade de partes frente a juiz imparcial. O juiz não pode iniciar o processo (ne procedat judex ex officio). Réu é sujeito de direitos.

 

 

Juiz que investiga, preside, acusa, defende e julga. Réu é objeto do processo.

 

 

ACUSAÇÃO

 

Delitos públicos: ação popular.

Delitos privados: prejudicado ou ofendido.

 

 

Não existe distinção, a acusação é exercida pelo juiz, ex-officio. A denúncia é secreta.

 

 

 

PROCEDIMENTO

 

 

Oral, público, imediato, contraditório e concentrado.

 

 

Escrito, secreto, mediato, e não contraditório, difuso.

 

 

PROVA

 

 

A prova é introduzida pelas partes (não pelo juiz). Todavia, na valoração da prova rege o princípio da livre convicção.

 

 

O juiz é livre para investigar os fatos. Todavia, a valoração da prova é prova é tarifada.

 

 

 

SENTENÇA

 

 

Produz eficácia de coisa julgada (busca da verdade formal). Possui uma só instância.

 

 

Não existe coisa julgada (busca da verdade real). Possui duas instâncias.

 

 

MEDIDAS CAUTELARES

 

 

Liberdade do acusado como regra geral (presunção de inocência).

 

 

Estado de prisão do acusado (presunção de culpabilidade).

                                               

                                    Pela tradição inquisitiva, a prisão preventiva do acusado é um expediente usualmente utilizado pelo magistrado para facilitar-se o acesso à prova e à pessoa do preso para coação (cf. Giovanni Tranchina, Diritto Processuale Penale, 2001, p. 37).

                                    Conforme Hélio Tornaghi (Instituições de Processo Penal, I, 1977, pp. 310-311), existem elementos não-essenciais do sistema acusatório que, por conseguinte, sua ausência ou mistura com elementos do processo inquisitivo não o desconfigura. São formas secundárias (ou não essenciais) do sistema acusatório o sigilo e a escritura, a publicidade e a oralidade, porque cuidam de procedimento e não propriamente de processo. Na atualidade, sem comprometer o modelo acusatório as funções de acusar e julgar são exercidas por órgãos públicos oficiais (profissionais permanentes) e o processo adota a forma escrita. Também por vezes pode ser decretado o sigilo do processo e a prisão preventiva do acusado.

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                                    Joaquim Canuto Mendes de Almeida (Processo Penal, 1975, pp. 120 e 122) aponta que a principal diferença do sistema inquisitivo para o sistema acusatório consiste no deslocamento das atividades persecutórias (no que se inclui a atividade probatória) do juiz para concentrá-los nas mãos da acusação (MP e ofendido). Canuto, todavia, discorda do sistema acusatório dito na sua pureza, porque, na sua percepção, aferrado em Vincenzo Manzini, tal sistema puro compromete a função da justiça criminal provocado na confusão das formas do processo civil diante dos interesses tutelados. Dessa forma, diz Canuto: “O poder inquisitório do juiz é amplo ainda quando às partes é dado requerer a instauração do procedimento, definitivo ou preliminar. Permanece quando lhes é possível instruir o juízo por meio das alegações e produção dos meios de prova. Restringe-se, quando o juiz é obrigado a atender a tais pedidos de produção de provas por outro motivo que não seja a demonstração da existência do crime e da autoria; ou quando o juiz é obrigado a instaurar procedimento sempre que requerido pelo autor. Diminui, ainda mais, quando o juiz não pode ter iniciativa para proceder; e anula-se, definitivamente, se o juiz não pode senão julgar segundo o alegado e provado pelas partes. Este é o tipo processual acusatório puro”. Entende Canuto, por conseguinte, que “o poder inquisitório do juiz criminal é sempre uma consequência do caráter público da ação penal”.

                                    Nota-se que os nossos tribunais têm sido relutantes em anular decisões judiciais inquisitivas tomadas no curso do processo penal com base no Código de Processo Penal, mas que violam frontalmente o sistema processo penal constitucional. Nelas deixam entrever que o Poder Judiciário entende que com a transferência dos poderes inquisitórios para a Acusação, a Magistratura perde poderes para o Ministério Público, o que segundo essa ótica enfraquece o Poder Judiciário.

                                    Como justificativa dos amplos poderes dos juízes tem-se dito que se o magistrado apresentar-se inerte no processo penal como figura de cera (diga-se, despido dos poderes inquisitivos), a sociedade civil ficará enfraquecida no “combate à criminalidade”, ou melhor, refém dela.

                                    Porém, trata-se de um argumento puramente político que não se sustenta à luz da Constituição Federal, porque ela armou o Ministério Público e a Polícia Civil na tarefa de combate à criminalidade justamente para tirar do juiz os amplos poderes a fim de não perder a sua imparcialidade no processo criminal na busca da prova e determinação de diligências de ofício, tal como um inquisidor. Veja que o Ministério Público possui amplos poderes investigatórios, como titular exclusivo da ação penal, salvo a cláusula de reserva de jurisdição para quebrar direitos fundamentais dos investigados ou acusados. Na Constituição, aos membros do Ministério Público são conferidas as mesmas garantias da Magistratura (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos subsídios) para não perderem a sua independência funcional e poderem atuar livremente na persecução penal, como parte acusadora (CF, art. 95, I, II, III e art. 128, § 5.º, I, a, b, c). Ao Poder Judiciário a Constituição reservou uma função mais nobre, de fazer-se a justiça: condenando os culpados e absolvendo os inocentes, observado o devido processo penal. Por isso, para a processualística moderna o processo penal acusatório é sinônimo de processo justo, porque conduzido por um juiz imparcial. Nesse modelo o juiz não atua com fins de favorecer os atos de investigação, mas para que seja preservado os direitos fundamentais do acusado no processo (juiz de garantias). E o processo existe para isso. A forma, por conseguinte, revela-se como garantia, e a ausência dela a gera nulidade processual, dada a gravidade que é para alguém sofrer uma das penas mais drásticas do ordenamento jurídico: a pena privativa de liberdade. José Miguel Zugaldía Espinar (Fundamentos de Derecho Penal, 1993, p. 27 e 35) oferece-nos um exemplo prático esclarecedor dessa situação: “imaginemos que alguém tenha sido condenado a uma pena privativa de liberdade. Desde este momento o indivíduo aparece perante aos olhos da opinião pública como um delinquente; perde seu emprego e seu salário, tendo que separar-se da sua mulher e filhos; durante todo o dia terá que submeter-se ao duro regime disciplinar do cárcere; fica privado inclusive dos divertimentos mais corriqueiros (a reunião com os amigos num bar, um programa de televisão, viajar etc.)... inclusive – quem irá contratar com um ex-presidiário? – a pena privativa de liberdade se prolongará como uma sombra para o condenado durante o resto de sua vida”. Portanto, dada a gravidade da pena criminal para uma pessoa, “a atividade judiciária no processo penal deve ser sempre e perfeitamente regrada pelas normas jurídicas para que seja segura, previsível e perfeitamente controlável em todas as suas etapas”. Portanto, a forma é segurança jurídica, é garantia.

                                    Neste ponto, coerentemente com o sistema constitucional (art. 129, I), Franco Cordero (Procedura Penale, 1977, p. 28) destaca que, justamente, para que fosse garantida a imparcialidade, "a figura do Ministério Público de hoje surgiu historicamente da necessidade de superar a tradição inquisitorial e, especialmente, o conceito monista do juiz-promotor; acusar, todavia, é um ato legalmente obrigatório e indisponível. Mas o resultado difere substancialmente da práxis inquisitorial, porque a criação de uma parte artificial (o MP) garante ao processo o necessário ritmo dialético. Significa muito ter repudiado o conceito de órgão bifronte (juiz-acusador), que consciente ou inconscientemente define a priori o tema da decisão, busca ele mesmo a prova que irá confirmar a sua hipótese, e decide depois".

                                    Entre nós, seguindo o pensamento desenvolvido por Cordero sobre os temas da “hipótese do primado" (prejulgamento) e a sua coirmãs siamesas: “gestão da prova pelo juiz criminal” e “quadros paranoicos” foram brilhantemente discutidos em profundidade por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e por Aury Celso Lopes Júnior, demonstrando o anacronismo do poder inquisitivo conferido aos juízes criminais no processo penal e a consequente perda da imparcialidade da jurisdição penal.

                                    Como assevera Giulio Illuminati (in: Proceso Penal y Sistemas Acusatórios, 2008, pp. 152 e 156) "para garantia da imparcialidade do juízo há necessidade da separação entre a instrução e juízo, por esse motivo, é essencial que a busca das provas para sustentar a acusação seja atribuída ao Ministério Público. Do contrário, ser veria afetada sua objetividade para emitir um juízo. A separação das funções há de acrescentar-se em todas as fases do processo, como um elemento estrutural imprescindível do sistema acusatório. Com coerência com um sistema baseado no enfrentamento das partes ante um juiz imparcial, a iniciativa probatória corresponde às partes, que serão as que assinalem as provas a praticar, solicitem sua admissão e finalmente procedam diretamente na sua prática, mediante o exame cruzado (exame incrociato). Em todo caso, o Ministério Público assume a obrigação de investigar os fatos com o fim de exercitar a ação penal e de solicitar a admissão das provas, porque tem atribuída a si a carga de provar a culpabilidade do imputado. A defesa, por sua vez, tem a faculdade de buscar e apresentar as provas de descarga. O juiz, portanto, não assume em primeira pessoa a responsabilidade de identificar e trazer os elementos de prova necessários para fundamentar a sentença: ao manter-se alheio da busca do material probatório e desconhecer as diligências de investigação, consegue preservar a denominada virgin mind e evitar a formação de um juízo preconstituído".

                                    As características essenciais do processo acusatório, arroladas por Giovanni Tranchina (Diritto Processuale Penale, I, 2001, pp. 35-36), portanto, confirmam as teses acima elencadas sobre a gestão da prova, que são: "apuração do ilícito deixado à livre iniciativa da parte contraposta, e, portanto, a presença de um acusador que trabalha em pé de igualdade e com iguais direitos com relação ao acusado, partindo do princípio de que a tese e a antítese devem ser compostas na síntese da decisão proferida pelo juiz situado em equidistância absoluta de uma parte e de outra. Exclusão de qualquer poder de iniciativa do juiz no que se refere à aquisição das provas, com consequente ônus probatório da acusação. Publicidade, como forma de controle pela opinião pública, e oralidade do processo. Estado de inocência do acusado até a sentença irrevogável e seu consequente estado de liberdade durante o julgamento. No sistema inquisitório, a imposição de restrições e de limitações à defesa, como ausência da contraposição de partes, e, portanto, da impossibilidade da comparação dialética, entre as duas partes fundamentais, o acusador e o acusado, em confronto dos quais, de resto, já com a simples formulação da acusação provoca um julgamento antecipado de culpabilidade (prejulgamento)".

                                    Dado que processo inquisitivo, processo não é, a solução para que ele fosse introduzido no processo penal brasileiro veio com o sistema misto, de modelo italiano (v. O Carnaval Processual Brasileiro, infra).

 

Sistema Misto (análise crítica)

 

                                    Historicamente, o sistema misto (ou bifronte) foi inaugurado na legislação napoleônica (Code d’Instruction Criminelle, de 1808), e na sua pureza não era híbrido, ou seja, ao mesmo tempo inquisitório e acusatório, mas é chamado de bifronte porque está dividido em duas partes: (1) a primeira, inquisitória (chamada de fase preparatória), que se inicia com a notitia criminis e instrução secreta inquisitiva presidida pelo juiz da instrução, que se encontra com amplos poderes e que conta com a colaboração da polícia judiciária na colheita de provas e no cumprimento dos mandados judiciais, e a outra (2) acusatória, que se inicia com o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público ou pelo querelante perante um juiz criminal imparcial com todas as garantias do processo (igualdade de partes, liberdade probatória, juiz imparcial, audiência bilateral, contraditório e ampla defesa).

                                    Na expressão de G. Stefani e G. Levasseur (Op. cit. pp. 62-63), "os redatores do Code d’Instruction Criminelle tiveram que escolher entre o sistema acusatório do Direito intermediário e o sistema inquisitorial do Antigo Regime (que, no entanto, não pretendiam ressuscitar certos excessos, tais como por exemplo a tortura ou das audiências sigilosas). A solução adotada foi o de mesclar, no sentido de que o Código Napoleônico aplicou o sistema inquisitorial na fase do processo penal que precede à audiência de julgamento, e o sistema acusatório em audiência". 

                                    As críticas ao sistema misto são as mais ferrenhas. Lorena Bachmaier Winter (Proceso Penal y Sistemas Acusatorios, 2008, pp. 25-26) afirma que "o juiz de instrução seria o herdeiro direto do juiz inquisidor, com a mesma função – a obtenção de provas para o esclarecimento dos fatos – porém com métodos diversos, uma vez abolida a prática da tortura e introduzidas os métodos de investigação forense. Nesses países, a figura do juiz da instrução trata-se de uma instituição que tem desaparecido ou reduzido o seu campo de competências".

                                    No Brasil inexiste o juiz de instrução, porque a investigação preliminar desenvolve-se dentro do inquérito policial presidido pela autoridade policial (delegado de polícia) e regido pelo princípio da legalidade. Repudiou em 1941 o Ministro Francisco Campos a instituição do juizado de instrução justificando na exposição de motivos do Código de Processo Penal (item IV), conforme citado por Walter P. Acosta (O Processo Penal, 1995, pp. 24-25), "que seria impraticável em nosso país, dada a extensão do território e as dificuldades de locomoção, o que só poderia ser evitado quebrando-se a unidade do sistema, isto é, adotando-se para as capitais e sedes de comarca em geral o juízo de instrução, ou instrução única, e o atual sistema de inquérito para as áreas do interior".

                                    Contudo, o inquérito policial não é verdadeiro processo (mas procedimento), tampouco uma constitui fase preliminar do processo penal, por essa razão: (1) havendo materialidade delitiva e autoria conhecidas o inquérito policial é dispensável para a instauração da ação penal (oferecimento da denúncia); e (2) as ilegalidades, irregularidades ou defeitos praticados no curso do inquérito policial não contaminam o processo penal posteriormente instaurado. Nesse sentir:

INQUÉRITO. DISPENSABILIDADE. “Não é essencial ao oferecimento da denúncia a instauração de inquérito policial, desde que a peça acusatória esteja sustentada por documentos suficientes à caracterização da materialidade do crime e de indícios suficientes de autoria” (STF, RTJ 76/141).

“HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE IRREGULARIDADE EM INQUÉRITO POLICIAL. PRETENDIDO RECONHECIMENTO DE NULIDADE PROCESSUAL (...) Eventuais vícios concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subsequente processo penal condenatório. As nulidades processuais concernem, tão somente, aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória. Precedentes (...)” (STF, HC 73.271/SP, 1.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 4 de out. de 1996, p. 37.100).  

                                    No Direito brasileiro o processo penal inicia-se com o recebimento da denúncia ofertada Ministério Público ou da queixa-crime oferecida pelo querelante (STF, RHC 89.721/RO, DJ 16 de fev. de 2007 e STJ, HC 9.843/MT, DJ 17 de abril de 2000). Por essa razão devem ser expurgadas todas as formas do sistema inquisitivo ou autoritário por parte do juiz previstas no Código de Processo Penal no curso da ação penal (dentro do processo penal).

                                    Diante desse racionamento jurídico, o sistema misto à brasileira (processo, mas de natureza híbrida) consistente na combinação das formas acusatórias e inquisitivas dentro do processo penal é chamado pela doutrina de “monstro de duas cabeças”, dada a sua desconformidade com o modelo traçado pela Constituição Federal.

                                                           

O carnaval processual brasileiro

 

                                    O processo penal infraconstitucional adota o sistema acusatório, ou apenas aparentemente..., porque é híbrido ao conferir amplos poderes inquisitórios ao juiz no curso do processo penal.

                                    Tudo isso tem uma explicação histórica, de modelo político fascista.

                                    O nosso Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941), de natureza repressiva, tem no seu DNA o Código Rocco (Codice di Procedura Penale, de 1930), cujo apelido refere-se ao Ministro da Justiça italiana de Il Duce, Alfredo Rocco. Em diversas passagens da exposição de motivos do Código de Processo Penal o Ministro da Justiça Francisco Campos confirma essa paternidade ao fazer-lhe referência expressa e ao tecer encômios ao Código Rocco.

                                    O nosso Código tal como o Codice Rocco nasceu em época ditatorial, em que foi conferido amplos poderes investigatórios aos juízes criminais, coisa que não ocorreria num processo de modelo acusatório. O nosso modelo infraconstitucional adotado pelo nosso Código de Processo Penal é, portanto, acusatório... travestido.

                                    São alguns exemplos desses amplos poderes conferidos pelo nosso Código aos juízes do crime, em desrespeito à Constituição: o poder de requisitar a abertura de inquérito policial (CPP, art. 5.º, II), de determinar de ofício a prisão preventiva do acusado (CPP, art. 311), de determinar a realização de diligências probatórias (CPP, art. 156), de inquirir diretamente as testemunhas (CPP, art. 209), de condenar o acusado mesmo no caso de pedido de absolvição feito pela acusação (CPP, 385), de recorrer de ofício (CPP, 574 e 746) etc.; e até o advento da Constituição de 1988, no caso das contravenções penais, o juiz podia iniciar o processo penal de ofício por meio de portaria (CPP, art. 26). Verifica-se que o nosso modelo de processo penal foi configurado como um instrumento de polícia (de repressão), em nome de uma busca de uma pretensa verdade real, ao sabor dos regimes totalitários europeus da década de 30.

                                    Como dito, tal sistema misto à brasileira do Código de Processo Penal entrou em franca oposição com os ditames da Constituição Federal de 1988, cujo programa de processo penal foi erigido sob o sistema acusatório, no qual é reconhecida a fragilidade do réu frente ao Estado como uma forma de expressão da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), e regido pelas seguintes regras: estado de inocência do acusado (cidadão) até decisão condenatória irrecorrível (art. 5.º, LVII), igualdade material de partes (art. 5.º, caput), acusação formulada como regra pelo Ministério Público (art. 129, I), legalidade (art. 5.º, II), juízo imparcial (art. 5.º XVII e Pacto de S. José, art. 14.1), vedação de tribunal de exceção (criado post factum) (art. 5.º XXXVII e LIII), direito ao silêncio e não autoincriminação (art. 5.º, LXIII c.c. LVII), contraditório (art. 5.º, LV), ampla defesa (art. 5.º, LV), defesa técnica (arts. 133 e 134), duplo grau de jurisdição - "meios e recursos a ela inerentes" (art. 5.º, LV), inadmissibilidade de provas ilícitas no processo (art. 5.º, LVI), fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IC), publicidade dos atos (art. 5.º LX e XXXIII), liberdade do indiciado ou réu como regra (art. 5.º, LXI, LXV, LXVI e LXIX). Ou seja, o processo penal passa a ser admitido como um instrumento de garantias aos acusados. E para isso que existe.

                                    Esse a contradição é ainda mais gritante no que tange à gestão da prova pelo juiz, com todas as ponderações feitas nos parágrafos acimas, a quem as remetemos o leitor ao tópico para não se tornar demasiadamente ser repetitivo.

                                    Todavia, dada a supremacia da Constituição quando se utiliza o Código de Processo Penal inquisitivo, dá-se uma inversão de valores, uma subversão da ordem constitucional, que fica muito bem exemplificada por meio da figura de linguagem chula ou vulgar, da “cauda abanando o cachorro” ou ainda “da banana comendo o macaco” e quejandos.

                                    Diversas decisões tomadas pelas instâncias ordinárias na Operação Lava-jato, de cunho inquisitivo, estão sendo objeto de revisão no STF porque não foi observado o modelo de processo imposto pelo nosso sistema constitucional. Por óbvio, que o juiz diretor do processo em conflitos processuais deve resolver as questões optando por seguir regras do modelo acusatório constitucional, expurgando as regras inquisitivas do processo. A mais recente decisão diz respeito à situação do acusado-delatado e a ordem da apresentação dos seus memoriais frente à regra do contraditório e a ampla defesa, porque, no sistema acusatório, a defesa tradicionalmente manifesta-se inexoravelmente após a acusação.

                                    Conhecer o sistema constitucional de processo penal é importante para cumprir o modelo de processo estabelecido pela Constituição Federal de 1988, no Estado brasileiro Democrático de Direito, porque é esse sistema que rege o todo o processo penal. Como diz Paulo Queiroz (Direito Penal, 2010, pp. 45 e 85) toda juridicidade (licitude e ilicitude) nasce e morre na Constituição Federal, que é alfa e ômega de todo ordenamento jurídico. Destarte, conhecer o pensamento sistemático é primordial, porque: a) facilita o exame do caso concreto, b) confere aplicação uniforme e segura do Direito (evita decisões contraditórias sobre o mesmo assunto ou a chamada “loteria” jurídica dos tribunais); c) simplifica e confere melhor manejabilidade do Direito; d) presta como guia seguro para a elaboração e desenvolvimento da ciência do Direito (Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, I, 2010, pp. 207-209).

                                    O amor à Constituição e o cumprimento das suas regras é o caminho seguro para a realização do ideal democrático e da cidadania.

 

Bibliografia CONSULTADA:

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FREDERICO MARQUES, José, Tratado de Direito Penal, I, São Paulo: Saraiva, 1980.

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NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Processo Penal e Execução Penal, 11 ed. São Paulo: Forense, 2014.

PACELLI, Eugênio, Curso de Processo Penal, 17 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

QUEIROZ, Paulo, Direito Penal, Parte Geral, 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

ROXIN, Claus, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, 5 ed. Madrid: Civitas, 2010.

SIRACUSANO, Delfino & GALATI, Antonino & TRANCHINA, Giovanni & ZAPPALÀ, Enzo, Diritto Processuale Penale, I, nuova edizione. Milano: Giuffrè, 2001.

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TORNAGHI, Hélio, Instituições de Processo Penal, I, 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1977.

ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel, Fundamentos de Derecho Penal, 3 ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1993.

Sobre o autor
Marcelo Murillo de Almeida Passos

Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Autor do livro: Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, prefaciado pelo Dottore Luigi Cornacchia, 2015, ed. Lumen Juris.

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O autor é especialista pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus, e autor do livro Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, 2015, Lumen Juris, prefaciada pelo Dottore Luigi Cornacchia, atualmente catedrático de Direito Penal da Università degli Studi di Bergamo.

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