Embora no Brasil exista o chamado Monopólio Estatal da Jurisdição, ou seja, apesar do estado ser detentor da administração jurisdicional, o preço ou a despesa inerente ao uso ou à prestação deste serviço de justiça, não é da administração pública, na verdade é um ônus que recai sobre aqueles que a buscam.
Sendo certo, pois, que o acesso à jurisdição em regra é oneroso, sendo suspenso tal ônus, na excepcionalidade de “insuficiência de recursos” do litigante para suportar as despesas processuais, sem prejuízo da própria subsistência ou da sua família.
Tal especialidade, buscando-se origem mais recente, encontrava-se capitulada na Lei 1.060/50 que em seu artigo 2º já trazia o seguinte texto:
“Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho. (Revogado pela Lei n º 13.105, de 2015) (Vigência)
Parágrafo único. - Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.”
E a Lei 13.105/15 ao revogar a citada disposição, manteve intacta a essência da norma, que é efetivamente garantir àqueles desprovidos de recursos a possibilidade de estar em juízo, veja-se:
“Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.” (Grifei)
Resta mais que evidente que o Instituto da Gratuidade de Justiça, trazido pela legislação processual, veio, na verdade, para materializar ao litigante alguns direitos de estatura constitucional, dentre eles, e principalmente, o direito de ação ou o acesso à justiça, conforme a Constituição Federal de 1988 traz expressamente no art. 5º, XXXV.
Com vistas ainda ao princípio da isonomia, bem traduzido nas palavras de Nelson Nery Junior:
“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).”
Entretanto, para dar vazão e efetividade à todos os dispositivos e mesmo princípios acima mencionados, é imperioso que se faça uma interpretação absolutamente profunda da norma, para não tornar inócuo o seu âmago.
Afinal, o ponto de partida para a aplicação justa e integralizada de qualquer norma é a sua devida interpretação, de modo a lhe dar vigência em toda a sua dimensão.
Conforme leciona Gustavo Felipe Barbosa Garcia:
“Interpretar a norma jurídica significa obter o seu verdadeiro sentido e alcance”
Mesmo sentido do que expressa Paulo Dourado Gusmão em sua obra Introdução à ciência do Direito:
“A norma jurídica é criada pelo homem, tendo em vista fins, valores, ideologias e a realidade social significa a concretização dos valores e supõe uma finalidade, pois toda obra do homem é teleológica, daí se poder dizer que a norma jurídica pertence ao mundo da cultura”
Gusmão acrescenta ainda que:
“[...] a interpretação tem como objetivo a investigação dos sentidos da norma jurídica, sendo essa investigação calcada pelo sentido dado pelo legislador a uma situação [...]
Ou seja, não se pode ter uma interpretação que seja absolutamente divorciada do núcleo primitivo da norma, e do principal objetivo da sua concepção.
Ocorre que, mesmo diante da clareza dispositiva da Lei Processual que externa com ênfase o escopo do instituto, que, em tese, deveria socorrer os incapacitados economicamente, a interpretação da norma, mais precisamente do termo “insuficiência de recursos” por vezes tem sido feita de uma ótica rasa, e mesmo assistemática, que conduz invariavelmente ao total desvirtuamento do próprio instituto da Gratuidade da Justiça.
E consequentemente, esta perspectiva simplista aplicada, afigura-se como uma inarredável negativa de vigência à legislação infraconstitucional, além de ferir por via indireta direitos constitucionais do jurisdicionado.
Veja que, costumeiramente os julgadores tomam como base tão somente os rendimentos do litigante para avaliar o seu direito ou não às benesses de tal instituto.
Mas, na verdade, a apreciação de tal requerimento não pode considerar de forma isolada os rendimentos do litigante, eis que outro critério de extremo relevo e que muitas vezes é preterido pelo julgador, é o objeto do litigio.
Afinal, o aspecto determinante aos custos da demanda notadamente é o valor atribuído à causa.
O que leva-nos a concluir que afora os rendimentos do litigante, haverá situações em que este preenche o requisito da insuficiência de recursos, isso frente aos custos daquela demanda em particular, que porventura tenha valor da causa elevado.
Mas, existirão demandas em que figuraria este mesmo litigante, mas com valor da causa eventualmente menor, em que as despesas processuais em contraposição aos seus rendimentos por si só afastariam o reconhecimento de insuficiência de recursos.
Isso se dá pelo fato de que a “insuficiência de recursos” trazida pela lei, ou seja, a acepção legal do termo, não está ligada à situação do litigante frente à classificações socioeconômicas como tem se interpretado.
Na verdade, a incapacidade econômica deve ser aferida em contraposição às despesas daquela demanda em particular, considerando, inclusive, eventual verba sucumbencial.
Eis que o legislador fala claramente de insuficiência de recursos para suportar os custos da demanda, o que demonstra que a incapacidade não se refere tão somente aos rendimentos do litigante de forma isolada e divorciada do objeto dos autos.
A incapacidade que versa o texto de lei é aquela que resulta da confrontação, rendimentos x custos e despesas processuais.
Analisar pedido de gratuidade de justiça, tomando como fundamento classificações socioeconômicas, e isoladamente os rendimentos do litigante, é uma apreciação que distancia-se do amago do instituto, e promove de forma absolutamente inconcebível óbice ao acesso à tutela jurisdicional.
Sendo certo que a análise equivocada do núcleo da norma, exigindo não a insuficiência de recursos no sentido jurídico do termo, mas a pobreza no seu estrito sentido literal, transforma a Gratuidade de Justiça em mero elemento figurativo formal, com aplicabilidade fictícia.
E, como brilhantemente expõe Paulo Bezerra:
“Assim, o problema central dos direitos humanos e fundamentais não está em saber quais e quantos são esses direitos, qual a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim, qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados por ação ou omissão.”
Afinal, o festejado Direito de Acesso à Justiça segundo a perspectiva externa ao processo, funciona como instrumento ético de realização da justiça.
E a mera presença da norma jurídica no ordenamento, por si só, não é suficiente para se alcançar os fins pretendidos, sendo necessária a sua efetiva aplicação com interpretação sistematicamente contígua ao seu núcleo primitivo, de modo à assegurar àquele incapaz economicamente tenha direito à prestação jurisdicional efetiva e irrestrita.