1 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS e sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro
No ano de 1969 a maior parte dos países existentes no continente americano subscreveu o documento comumente conhecido como “Pacto de San José da Costa Rica” ou, “Convenção Americana de Direitos Humanos”. O referido texto foi idealizado pelos membros da OEA – Organização dos Estados Americanos, e tinha por intuito a proteção integral dos direitos humanos dentro de um continente que se inseria a cada mais em guerras e ditaduras sangrentas.
A convenção, mesmo com a realidade constante de desrespeito aos direitos do homem e do cidadão conseguiu reunir os países americanos num único propósito. Ocorre que, para a efetivação da referida convenção e sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro era necessária a sua aprovação parlamentar, nos termos da constituição.
A Constituição Federal de 1967, em vigência à época, determinava que os tratados e convenções internacionais eram de responsabilidade do Presidente da República e deveriam, necessariamente, passar pela chancela do Congresso Nacional, para que pudessem efetivar-se como legislação aplicável ao direito brasileiro (art. 47, Parágrafo único c/c art. 83, VIII).
Promulgada durante a ditadura militar brasileira, a Carta Magna vigente à época da assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos não previa regras específicas quanto à aplicação de normas e tratados internacionais que versassem sobre o tema, diferentemente da Constituição vigente neste momento, que expressamente determina em seu art. 5º, §3º:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Sendo assim, verifica-se que a CRFB/88 deu especial tratamento às convenções que tratassem de direitos humanos, como não poderia ser diferente.
Ocorre que a Convenção Americana de Direitos Humanos não foi ratificada pelo Estado Brasileiro quando de sua assinatura pelos demais membros da OEA, muito provavelmente por conta das particularidades políticas que o Brasil vivia à época. Tal Convenção só foi devidamente assinada pelo país em 1992, e devidamente promulgada, pelo então Presidente da República, Itamar Franco, aos 6 dias de Novembro de 1992, por meio do Decreto nº 678.
O texto aprovado pelo governo brasileiro foi dotado de uma ressalva, quanto ao Artigo 43 da Convenção[1], que tratava da obrigação do Estado em informar à Comissão de Direitos Humanos da Corte Interamericana de Direitos Humanos informações a respeito da aplicação, pelo Direito Interno (e seus órgãos) das disposições da Convenção. Veja-se:
ARTIGO 43 Os Estados-Partes obrigam-se a proporcionar à Comissão as informações que esta lhes solicitar sobre a maneira pela qual o seu direito interno assegura a aplicação efetiva de quaisquer disposições desta Convenção.
Independente de tal ressalva, no entanto, o país acatou a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, concordando em vincular-se, nas medidas do referido Pacto, às decisões por esta exaradas.
Tendo em vista a assinatura em 1992 e a promulgação do Decreto nº 678, além de terem sido cumpridas as exigências do art. 5º, §3º da CRFB/88, tem-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos foi devidamente incorporada ao Direito Brasileiro como se Emenda Constitucional o fosse.
2 A JURISPRUDêNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A OPINIÃO CONSULTIVA Nº 24
Nos termos do Capítulo VIII da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos poderá promover julgamentos, por meio de reclamações que atendam ao procedimento previsto na Convenção, a partir dos quais dar-se-á uma resposta contundente a fim de garantir a não violação dos direitos humanos pelos países signatários do Pacto.
Por tratar-se de órgão colegiado, as decisões da Corte são proferidas na forma de acórdãos, e as reiteradas decisões tornam-se jurisprudências, que por ética e diante do espírito das leis, por si só, devem ser levadas em consideração pelos operadores do direito brasileiro.
Dentre os julgados da Corte encontra-se a Opinião Consultiva nº 24, que cinge-se na exaração de um parecer, requerido pela República da Costa Rica, a respeito do notório assunto “identidade de gênero”, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo.
Sem adentrar no mérito a respeito da evidente confusão do enunciado questionador entre sexo e gênero (que por sua natureza são antagônicos[2]), faz-se necessária breve análise a respeito da referida opinião consultiva, que julgou que, nos termos do chamado Pacto de San José da Costa Rica, dentre tantos outros aspectos, os estados signatários não podem criar políticas públicas que visem à discriminação de casais LGBTI, nem que ofenda o direito de todo cidadão à escolher sua identidade de gênero, além de vincular os signatários da convenção à proteção internacional dos vínculos dos casais de mesmo sexo por meio da Comissão de Direitos Humanos criada pela Convenção Americana.
Sobre a aplicação de políticas públicas pelos países signatários quanto ao tema debatido na referida Opinião Consultiva, a Corte estabeleceu o seguinte:
De acordo com o exposto no parágrafo anterior, embora tenha sido ressaltada a importância da garantia de reserva legal como salvaguarda e limite à restrição aos direitos contidos na Convenção por parte do Estado, também foi advertido que essa mesma reserva legal não pode ser estabelecida como um instituto que funcione como um obstáculo ao efetivo cumprimento dos direitos fundamentais ou que suspenda a plena vigência dos direitos humanos. Nem a reserva legal, nem o princípio da legalidade, nem a vontade das maiorias parlamentares podem ser um instrumento para tornar os direitos humanos inoperantes, estas figuras não podem enervara eficácia dos direitos, não podem servir de fundamento para oprimir certos setores da sociedade.
Ou seja, tem-se que por mais “conservador” ou “averso” à identidade de gênero que seja o país signatário – ou sua maioria parlamentar -, no entender da Corte, a legislação própria não poderá excluir a apreciação do tema.
Sendo assim, a Opinião Consultiva nº 24 demonstra um verdadeiro marco na discussão do gênero e seus afluentes não só no direito brasileiro, mas também no direito internacional, com reflexos no ordenamento jurídico dos países signatários, é claro, mas também nas relações interpessoais.
3 – A VINCULAÇÃO DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS À JURISPRUDêNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Desde 2006 a Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se expressamente pela aplicabilidade da sua jurisprudência pelos juízes dos países signatários, condição esta exercida pelo Brasil, que teve o Pacto de San José da Costa Rica inserido em seu ordenamento jurídico.
Na oportunidade, durante o julgamento do caso Almonacid vs Chile, a Corte estabeleceu que as disposições da Constituição deveriam ser guardadas pelos aplicadores das normas estatais, haja vista a incorporação da Convenção no ordenamento jurídico próprio dos Estados:
124. A Corte está ciente de que os juízes e os tribunais estão sujeitos ao império da lei e, portanto, são obrigados a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. Mas quando um Estado ratifica um tratado internacional, como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparelho do Estado, também estão sujeitos a ela, o que os obriga a garantir que os efeitos das disposições da Convenção não sejam prejudicados pela aplicação de leis contrárias a seu objeto e finalidade, que desde o início carecem de efeito jurídico. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de "controle de convencionalidade" entre as normas jurídicas nacionais aplicáveis aos casos concretos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não só o tratado, mas também a interpretação dada pela Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.
Não bastasse a previsão expressa no referido julgamento, ao apreciar o caso Aguado vs Peru, ainda em 2006, a Corte reafirmou o entendimento exarado no caso anteriormente citado, reforçando que os juízes dos estados signatários estão submetidos à observação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Leia-se o parágrafo 128 da decisão:
128. Cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque el efecto útil de la Convención no se vea mermado o anulado por la aplicación de leyes contrarias a sus disposiciones, objeto y fin. En otras palabras, los órganos del Poder Judicial deben ejercer no sólo un control de constitucionalidad, sino también “de convencionalidad”77ex officio entre las normas internas y la Convención Americana, evidentemente en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes. Esta función no debe quedar limitada exclusivamente por las manifestaciones o actos de los accionantes en cada caso concreto, aunque tampoco implica que ese control deba ejercerse siempre, sin considerar otros presupuestos formales y materiales de admisibilidad y procedencia de ese tipo de acciones.
Sendo assim, tem-se que, no entender da Corte, os julgadores brasileiros, na análise de casos concretos, devem não só uma mera observância ou ponderação, mas na verdade uma submissão aos princípios norteadores das decisões da Corte, a fim de garantir a aplicação das normas por ela estabelecidas como padrões para a boa apreciação do direito local.
Tendo em vista as inúmeras espécies de formas e julgados da Corte, os juízes brasileiros devem sempre levar em consideração todos, inclusive a Opinião Consultiva nº 24, que já foi utilizada em diversos âmbitos jurisdicionais, tendo inclusive recentemente embasado a decisão do Supremo Tribunal Federal (2018) na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, que visava reconhecer a interpretação conforme da Lei nº 6.015/1973 para garantir o direito de transexuais à substituição do prenome perante o registro civil independente de cirurgia de transgenitalização.
Na oportunidade, o Ministro Gilmar Mendes endossou os argumentos com fulcro na referida Opinião Consultiva, inclusive consubstanciando que tal OC deve influir – ainda que indiretamente – nas decisões do STF.
Muitas outras decisões brasileiras de grande repercussão já foram tomadas com base na OC nº 24/17, de modo que a evolução jurisprudencial tem reconhecido a aplicabilidade das decisões da Corte – e, consequentemente, da OC em questão – no julgamento de matérias internas no direito brasileiro.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1967).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pacto de San José da Costa Rica sobre direitos humanos completa 40 anos. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116380>. Acesso em 18/10/2019.
BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de Novembro de 1992.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-24/17, de 24 de novembro de 2017. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf>. Acesso em 18/10/2019.
OLINTO, Maria Teresa Anselmo. Reflexões sobre o uso do conceito de gênero e/ou sexo na epidemiologia: um exemplo nos modelos hierarquizados de análise. Revista Brasileira de Epidemiologia. Pelotas, vol. 1, nº 2, 1998. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbepid/v1n2/06.pdf>. Acesso em 18/10/2019.
CARVALHAL, Ana Paula. Corte Interamericana decide pela vinculação de sua jurisprudência. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2014-set-27/observatorio-constitucional-corte-interamericana-decide-vinculacao-jurisprudencia>. Acesso em 18/10/2019.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile, de 26 de setembro de 2006. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acesso em 18/10/2019.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú, de 24 de novembro de 2006. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_158_esp.pdf>. Acesso em 18/10/2019.
CAMINHA, Ana Carolina de Azevedo; RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva; LEGALE, Siddharta. Opinião Consultiva nº 24/17 – Identidade de gênero, igualdade e não discriminação à casais do mesmo sexo. Disponível em < https://nidh.com.br/opiniao-consultiva-no-24-identidade-de-genero-igualdade-e-nao-discriminacao-a-casais-do-mesmo-sexo/>. Acesso em 18/10/2019.
[1] Houve também ressalva quanto ao Artigo 48.
[2] Como defendido por OLINTO (1998), os conceitos de gênero e sexo representam coisas opostas, pois a acepção de que a identidade de gênero é a verdade social do direito de escolha do ser para a formação de seus relacionamentos interpessoais anula a sexualidade no sentido epistemológico da palavra, posto que sexo é entendido como aquilo que nasce com o ser humano.