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Os desafios da e-Democracia como alternativa ao exercício da democracia participativa no Brasil

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Analisa-se a implantação do portal e-Democracia e os desafios para a sua eficácia como instrumento de escuta da população pelo Poder Legislativo.

RESUMO: O escopo deste trabalho é verificar como a e-democracia pode ser um mecanismo de efetivação da democracia participativa no Brasil, analisando a implantação do portal e-democracia, e os desafios para a sua eficácia, quais sejam o acesso à internet, a compreensão do processo legislativo e a legitimidade da interatividade entre os cidadãos e parlamentares. A metodologia utilizada foi a revisão de literatura para buscar os conceitos base para o debate e análise documental quantitativa e qualitativa no intuito de verificar os desafios para a efetivação do portal. Da análise conclui-se que, para a efetivação da cyber-democracia como instrumento para a democracia participativa no Brasil, é necessário ampliar e garantir o acesso universal à internet, implementar linguagem facilmente compreensível, bem como importante que os inputs trazidos pelos cidadãos sejam recebidos, processados e que gerem um output para garantir legitimidade à interatividade entre cidadãos e parlamentares.


1 INTRODUÇÃO

As duas primeiras décadas do século XXI foram pródigas em revelar uma crescente insatisfação de parte da população, que por vezes se sente excluída do jogo democrático, levando à perda da credibilidade do sistema de democracia representativa e a instalação de crise de representatividade. Tal cenário leva a questionamentos pertinentes a uma maior participação popular na democracia, o que aponta ao conceito de democracia participativa.

Um dos pontos de debate da democracia participativa envolve a participação da sociedade no governo pelo meio eletrônico, através da denominada e-democracia. A temática da e-democracia “refere-se às relações políticas que se dão por meio da rede, enquanto veículo” (MARCONDES, 2011). No Brasil, apresenta-se como marco da democracia eletrônica o lançamento do portal e-democracia em 2009, que permite que, no lugar de apenas expressar sua opinião em redes sociais, o cidadão pudesse apresentar informações para a discussão de projetos, ajudando na elaboração de minutas de projetos de lei (SANTOS, BERNARDES, & MEZZAROBA, 2009, p. 8).

Entretanto, esse instrumento promissor apresenta alguns percalços para sua efetividade, que foram constatados através da análise qualitativa e quantitativa de documentos da CETIC e IBGE. Da análise desses dados, constata-se que é necessário enfrentar ao menos três desafios, quais sejam: acesso à internet, compreensão do processo legislativo e até mesmo a legitimidade da interatividade entre o cidadão e os parlamentares.

Neste contexto, faz-se necessário estudo sobre a experiência brasileira do portal e-democracia, considerando os principais desafios enfrentados, especialmente sobre o acesso à internet, compreensão do processo legislativo e a legitimidade da interatividade entre cidadãos e parlamentares.

Daí porque este esforço investigativo ganha relevância, pois busca avaliar uma política pública e através dessa dar efetividade aos anseios gerados nas ágoras virtuais. Neste escopo, este trabalho vem fortalecer o debate acerca da democracia digital como mecanismo à democracia participativa, através da análise da experiência brasileira do portal e-democracia, eis que essa modalidade se insere como uma alternativa à perda de credibilidade da representatividade através da emancipação, do empoderamento e da crescente participação do povo na vida política.

Contudo, para a implantação dessa modalidade democrática, faz-se necessário avaliar os principais desafios a serem enfrentados, especialmente sobre o acesso à internet, compreensão do processo legislativo e a legitimidade da interatividade entre cidadãos e parlamentares.


2 E-DEMOCRACIA COMO ALTERNATIVA PARA EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA.

Os Estados que se encontram antenados aos anseios populacionais tentam minorar esta crise e evoluir o seu sistema de representatividade por meio de iniciativas de maior fomento da participação popular direta no governo, ou ao menos sua interação direta com seu representante imediato, o Poder Legislativo.  Desta empreitada surgem iniciativas como o portal e-democracia do Poder Legislativo Federal. Instrumentos desta espécie e o contexto de necessidade de sua criação têm recebido a denominação de democracia participativa.

A democracia participativa é um anseio dos movimentos sociais em todo o mundo, mas as formas de exercê-la exige um estudo sobre a reinvenção democrática através de novas práticas que perpassam pelo advento da sociedade da informação por meio da internet, dando origem a e-democracia, também chamada de democracia digital, democracia eletrônica ou ainda cyber-democracia. Com isso, há uma diminuição dos impactos da democracia delegativa e, juntamente com a democracia representativa, incluem e dão forças a novos atores sociais.

Nesse sentido, um fio condutor que une pessoas se espalha no mundo. Elo capaz de reunir massas na “Torre Eiffel, das mil e uma noites, das touradas, de Wall Street e do Brasil da Copa é questão inquietante” (CONI JUNIOR & DANTAS, 2018, p. 46).

As reuniões dessa massa com trocas de experiências num mesmo lugar, ecoando indignação e emanando esperança em redes abertas no espaço virtual da sociedade da informação traz à tona uma nova realidade (CONI JUNIOR & DANTAS, 2018), qual seja a passagem dos movimentos sociais das ágoras públicas para digitais e vice-versa.

Esses movimentos sociais além de possuir um fio condutor, ora elucidado, possuem objetivos em comum, quais sejam emancipação e empoderamento, para proporcionar a maior participação da população no jogo democrático, a exemplo do que aconteceu na Tunísia e Islândia entre 2009-2011, que se tornaram referências para protestos na Europa e nos Estados Unidos (SANTOS, 2002, p. 19).

Contudo, a democracia participativa almejada nesses movimentos sociais complementando a deliberativa, que raramente acontece e subsiste, não se aproxima da democracia delegativa, também chamada de um ‘novo animal’ por O'Donnell (1991, p. 1), tampouco da democracia representativa atualmente impregnada no Brasil.

O'Donnell entende que a democracia delegativa tem uma premissa básica: quem ganha uma eleição presidencial é autorizado a governar o país como lhe parecer conveniente e, por conseguinte é o principal fiador do interesse nacional, sem obrigatoriedade de prestar contas (accountability), pois isso constituiria um óbice desnecessário à plena autoridade (1991, p. 6 e 7). Tal premissa dessa modalidade de democracia é oposta àquilo que os movimentos sociais de empoderamento e emancipação buscam, pois ao invés de proporcionar maior participação da população, delega toda a autoridade em uma única pessoa, o Presidente, pareando, guardadas as devidas proporções, com a organização do Estado Leviatã.                       

Importante lembrar que democracia delegativa não se confunde com a representativa, embora não seja alheia à tradição democrática. “Na verdade, ela é mais democrática, embora menos liberal, que a democracia representativa” (O’DONNELL, 1991, p. 7). Democracia representativa então significa que as deliberações coletivas são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para essa finalidade. No estado representativo, o órgão central (ou central ao menos em nível de princípio, embora nem sempre de fato) ao qual chegam as reivindicações e do qual partem as decisões coletivas fundamentais, é órgão central (BOBBIO, 1986, p. 44).

Não obstante, o grau de informação da população é consideravelmente baixo, fazendo com que o desinteresse do povo para com a política e seus agentes seja crescente; os debates políticos entre cidadãos e instituições são pouco ou nada estimulados, e a representação de algumas classes sociais é insatisfatória (MARCONDES, 2011, p. 9). Tais fundamentos dessa forma de democracia observada atualmente no Brasil, prevista expressamente no artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988, que não proporciona uma efetiva emancipação e empoderamento também não é o que se persegue em movimentos sociais com esse escopo.

Assim, visto que a tradição republicana brasileira representativa é pouco democrática, contentando-se o povo em apenas “confirmar ou retirar seu alegado representante do mandato” (MARCONDES, 2011, p. 18 e 19), emerge no Brasil uma reinvenção do processo democrático para possibilitar maior participação da sociedade através do fortalecimento da democracia participativa. Essa modalidade política está ligada aos recentes processos de democratização, visto a alternância entre modelos autoritários e democráticos até 1985, quando a democracia se reinstalou e permanece até hoje (SANTOS, 2002, p. 55).

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Democracia participativa - também entendida como deliberativa - complementa a democracia representativa, tornando-a plural e inclusiva (MARCONDES, 2011, p. 11) e, tem por escopo a inclusão dos cidadãos e o fortalecimento das comunidades, sendo a participação dos movimentos sociais uma nova forma de relação entre Estado e sociedade, fato que implicou na introdução de experimentalismo na própria esfera estatal (CORTES E GUGLIANO, 2010).

Santos, como importante pesquisador das formas de democracia, em seu livro “Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa” ressalta diversas experiências de sucesso em países como África do Sul, Colômbia, Moçambique, Índia e no Brasil por ocasião do Orçamento Participativo em Porto Alegre, em que movimentos sociais lograram por emancipação e empoderamento frente ao controle orçamentário do município através da implantação da democracia participativa, o que traz concreta esperança de efetividade e eficácia desse modelo de participação social (2002).

No entanto, a reinvenção da democracia, com a implantação de uma democracia participativa, que é cerne desse estudo, perpassa por uma redefinição do seu significado cultural e gramatical social, com inclusão de novos atores, práticas políticas e novos temas (SANTOS, 2002, p. 56). Dessa forma, com o advento da sociedade da informação inserindo novas tecnologias, movimentos sociais passam a usar as ágoras virtuais, composta pelas redes sociais proporcionadas pela Internet, para proporcionar o exercício da democracia participativa.

Notadamente, segundo Marcondes (apud BARBER, 1984) a inserção de mecanismos tecnológicos participativos possibilita que os cidadãos aprendam seus valores cívicos e, como resultado desse processo, teríamos uma democracia participativa forte, na qual muitas das instituições representativas também funcionariam, reforçando a ideia de um governo mais democrático. Essa modalidade de aproximação podem ter três direções: proximidade entre administração e administradores (e-government), proximidade entre processos de deliberação e tomada de decisão e, proximidade entre as demandas da cidadania e a agenda política (e-democracy), tendo a e-democracy a capacidade de englobar o e-government (MARCONDES, 2011). 

Trata-se, portanto, de uma nova forma de democracia, a democracia eletrônica, digital, ou e-democracia, que “refere-se às relações políticas que se dão por meio da rede, enquanto veículo” (MARCONDES, 2011) no intuito de aproximar as demandas da cidadania e a agenda política.

Em nível mundial essa modalidade vem sendo adotada em alguns locais. É possível citar, por exemplo, a Catalunia, onde a experiência mais notável foi a Democracia.web, desenvolvida em 1998 pela Fundação Jaume Bofill e pelo Parlamento da Catalunia, que procurava ser um espaço para debate e participação sobre temas discutidos no citado Parlamento, possibilitando a interação entre cidadãos e parlamentares (MARCONDES, 2011, p. 114).

No Brasil, apresenta-se como marco da democracia eletrônica o lançamento do portal e-democracia (http://www.edemocracia.camara.gov.br), em 03 de junho de 2009, que permite que, no lugar de apenas expressar sua opinião em redes sociais, o cidadão pudesse apresentar informações para a discussão de projetos, ajudando na elaboração de minutas de projetos de lei (SANTOS, BERNARDES, & MEZZAROBA, 2009, p. 8).

Esse tipo de instrumento de participação democrática participativa, proporcionado pelas novas tecnologias significa um avanço promissor, especialmente pelo fato de representar “a possibilidade de alargamento do espaço público e a conseqüente inserção organizada de setores diversos nos processos de definição de políticas públicas” (SANTOS et al., 2009, p. 2). Em uma breve análise do portal verifica-se que através de um cadastro, a interface estimula cidadãos e organizações civis a contribuir para o processo legislativo.

Registre-se que o projeto da Lei 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet, fruto de um processo de construção colaborativa da parceria entre a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) e a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (DIREITO RIO), especificamente o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS/FGV), após ser submetido ao tramite legislativo, foi aberto para as contribuições dos internautas, através do Portal e-Democracia (NICHEL, 2014).

Nada obstante, quando se trata de uma política pública para aumentar a participação popular no processo democrático através da democracia participativa, tem que se levar em conta ao menos dois princípios basilares, quais sejam: acessibilidade e universalidade. Daí porque, para compreender o real alcance dessa participação digital do cidadão na tarefa legislativa por meio da e-democracia, é necessário avaliar os desafios para a efetividade dessa forma de participação popular, em especial três aspectos: a questão do acesso à internet bem como aos aparelhos que possam acessá-la; o fato do cidadão não ter a plena compreensão do conteúdo e do processo legislativo em si, bem como  da legitimidade das formas de participação do processo por meio eletrônico, ou seja, como o cidadão saberá que seus inputs terão o respeito dos congressistas ao serem avaliados e posteriormente recebendo outputs.


3. DESAFIOS DA EFICÁCIA DA E-DEMOCRACIA COMO FORMA DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NO BRASIL.

Conforme explicado anteriormente, a e-democracia precisa ultrapassar alguns desafios para garantir sua real eficácia. Tais questões iniciam-se nas limitações materiais de acesso à rede mundial de computadores, passam pelo conhecimento subjetivo que envolve o entendimento do processo legislativo e a efetivação e respeito à vontade do cidadão por parte do Poder Legislativo.

Em nome da melhor compreensão e aprofundamento de cada uma dessas questões a abordagem será feita a seguir de forma estratificada, em que pese não se negue a simultaneidade e interligação desses itens na vida real do cidadão.

3.1 ACESSO À INTERNET

O primeiro fator a ser analisado para compreender as eventuais limitações para a efetividade da e-democracia para manifestar a democracia participativa é material. Isso porque considera-se o acesso à internet por parte do cidadão, bem como aos aparelhos eletrônicos que possibilitem a conexão com a rede mundial de computadores.

Hoje existe o pleno reconhecimento do potencial da tecnologia da informação, que conduziu a um aumento substancial de sua adoção (HEEKS, 2002) e fomentou a implementação de reformas no setor (FOUNTAIN, 2001; HEEKS, 2002), mas a questão do acesso ainda é totalmente controlada pelo setor privado e a regra básica de precificação por meio da oferta e demanda, o que pode ampliar o acesso e a qualidade deste em certas camadas da sociedade, porém, restringir ou até impedir o acesso às camadas mais hipossuficientes da população, conforme se verifica no caso da sociedade brasileira.

Dentro da divisão feita por Pippa Norris (2001) sobre a “digital divide” ou Exclusão Digital tem-se três tipos de exclusão: Exclusão Global (Global Divide) – diferença entre o acesso à internet entre os países; b) Exclusão Social (Social Divide) – diferença do acesso à internet entre ricos e pobres dentro de cada nação e c) Exclusão Democrática (Democratic Divide) – diferença entre aqueles que utilizam a internet como meio de mobilização e participação na vida pública e aqueles que não o fazem.

Dados apresentados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), um departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), mostram que em 2008 apenas 18% dos lares brasileiros tinham acesso à internet. Em pouco menos de uma década esse percentual já evoluiu para 61%, o que indica uma inegável crescente de acesso.

A última pesquisa TIC Domicílios de 2010 revelou que o crescimento da internet no Brasil estabilizou-se e que há aumento da velocidade da internet, com mais acessos de casa que centros como lanhouses e bibliotecas (STABILE, 2012).

Todavia, se é certo que anualmente o percentual de brasileiros com acesso à internet aumenta consideravelmente, também é certo que essa evolução não é uniforme. Em pesquisa nacional de amostra de domicílios realizada pelo IBGE em 2014-2015 verificou-se que a média nacional de moradores de residências brasileiras com uso da rede mundial de computadores, 59,2%, era formada por percentuais internos bastante discrepantes: enquanto a região Sudeste trazia números mais elevados, de 68,4%, seguido pela região Sul com 63,8%, o Nordeste amargava a última posição, com apenas 45,8% dos lares possuindo tal acesso. As diferenças não param por aí. A mesma pesquisa mostrou que quando a comparação é feita entre áreas urbanas e rurais a resposta apresenta outro abismo: enquanto nas áreas urbanas 59,8% das pessoas acima de 10 anos de idade utilizaram a internet nos últimos três meses antes da pesquisa, na zona rural esse número é reduzido a pouco mais de um terço, no percentual de 22,9%.

Por fim, também se retira da amostra de domicílios do IBGE que está ocorrendo uma mudança do processo de uso da internet em todas as regiões do país, qual seja, em que pese ainda tenha importância e número expressivo de utilização, os microcomputadores estão perdendo espaço para os aparelhos celulares. São várias as razões possíveis para a tal mudança: talvez pela mais fácil mobilidade do aparelho, por sua multifuncionalidade, por seu valor médio, pela possibilidade de uso de 3G (sem Wi-Fi ou cabo) ou até por ser uma forma de demonstrar status social. O que importa é os aparelhos de telefonia móvel estão tendo importante papel nesse aumento do acesso à internet.

Registre-se ainda que as tecnologias digitais de fato dão espaço a novos participantes, porém podem gerar exclusão não apenas econômica, mas também cognitiva (MARCONDES, 2011, p.92). Isso porque, em pese haja um inegável aumento do alcance da população a tais tecnologias, este crescimento sem qualquer uniformidade ocorre não apenas em razão dos valores dos aparelhos, mas também da exigência de um conhecimento prévio mínimo sobre a web. Nesse passo compreende-se, por exemplo, porque a população mais idosa tem menor acesso e interesse de aprendizado sobre o tema. Ainda neste contexto, Mossberger (2003) explica a essas duas vertentes de exclusão: a) exclusão de oportunidades econômicas (Economic Oportunity Divide) – a oportunidade de o indivíduo conseguir melhores empregos e se beneficiar da internet para o seu desenvolvimento econômico e b) exclusão de habilidades (Skills Divide) – capacidade de o indivíduo lidar com as novas tecnologias.

Nesse passo, em um país em que três em cada dez pessoas são analfabetas funcionais, conseguindo ler as palavras de uma frase porém sem extrair o seu conteúdo ou mensagem, segundo pesquisa realizada pela ONG Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, não é difícil ver o grande desafio que a democracia digital tem para superar para realmente ser possível começar a pensar em uma democracia efetivamente participativa.

3.2 A COMPREENSÃO DO PROCESSO LEGISLATIVO E DE COMO PODE ATUAR EM MEIO ELETRÔNICO

Ao largo do problema da conexão à rede mundial de computadores, outro desafio reside na questão intrapessoal ou subjetiva, acerca da compreensão pela população do conhecimento do processo legislativo e de como atuar para conseguir efetividade na atuação eletrônica em contato com o Poder Legislativo.

Tome-se, por exemplo, a iniciativa da Câmara dos Deputados, a e-Democracia, que funciona basicamente com duas categorias de áreas públicas de debate: o Espaço Livre e as Comunidades Virtuais Legislativas (FREITAS et al, 2015). A primeira é organizada pela própria sociedade civil e a segunda apresenta caráter formalizado, podendo constituir-se a partir de iniciativas governamentais. No Espaço Livre qualquer cidadão ou organização civil é estimulado a contribuir na formulação de projetos de leis federais, visando, assim, à participação ativa dos cidadãos no processo de elaboração de projetos de lei por meio de ferramenta eletrônica previamente disponibilizada. Os temas são postos para discussão e todos os interessados podem participar e contribuir e caso avancem e os moderadores do sistema percebam que o conteúdo possui potencial para o desenvolvimento de algum projeto de lei, o debate torna-se um grupo no e-Democracia, denominado “Comunidade Virtual Legislativa”.

Neste segundo espaço ocorre uma espécie de qualificação da discussão, selecionando os temas que encontram-se maduros a ser futuramente encorpados em projeto de lei, quando passam a compor a demanda de um parlamentar. Note-se que, em que pese um parlamentar específico venha propor o projeto, este não é advém somente do interesse particular do congressista, mas é reflexo dos anseios de movimentos sociais organizados que exercem pressão política para que haja essa criação.

Registre-se, ademais, que o procedimento de participação no portal é simples, contudo, outros fatores podem influenciar negativamente na qualidade da discussão travada por cidadãos e organizações sociais. Assim como previamente citado, trata-se aqui da Exclusão Social (PIPPA NORRIS, 2001), que toca a distinção entre aqueles que usam a rede mundial de computadores para participar da vida pública e política do país daqueles que não o fazem.

Neste contexto, deve ser destacado que a relação entre Internet e Política não é excluída de influências recíprocas, de modo que não se pode entender que a existência da primeira fomentará apenas positivamente a segunda. Neste ponto é importante destacar que existem duas correntes doutrinárias conceituais a respeito desta relação, a saber: o Determinismo Tecnológico e o Determinismo Social (CHADWICK, 2006).

Segundo o Determinismo Tecnológico, a sociedade se moldará conforme o seu desenvolvimento tecnológico; assim, as propriedades inerentes a esse tipo de desenvolvimento poderão ajudar a prever o futuro social, econômico e as mudanças políticas. Para esta linha de pensamento, a internet é a força motriz para mudanças sociais e não o contrário. Por sua vez, a linha de pensamento do Determinismo Social entende que as tecnologias são meros reflexos das mudanças sociais e não agentes de mudança. Ao largo da adoção de uma destas linhas de pensamento como verdade absoluta, o que se percebe é a existência de relação de mão dupla entre internet e política, visto que ambas se influenciam mutuamente.

Estes conceitos apenas ratificam que a concretização da e-Democracia depende de outros fatores além da tecnologia da informação, decorrentes da formação social, econômica e política da população e não apenas do acesso à tecnologia. Neste contexto, basta lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro é assentado em princípios que materializem valores democráticos, sendo espelho o artigo primeiro do texto constitucional que afirma ser, o nosso país, um Estado Democrático de Direito.

Logo, existem regras preexistentes que devem ser atendidas no procedimento de criação de normas, visto que o processo legislativo brasileiro é  formal e complexo, constituído pelas seguintes fases: Iniciativa, Emenda, Votação, Sanção, Veto, Promulgação e Publicação (FERREIRA FILHO, 1995). Por esse motivo o procedimento de proposição de um projeto de lei em todos os seus detalhes, seja na redação, sejam nos efeitos pretendidos, passa pela necessidade de conhecimentos multidisciplinares daqueles que o debatem e pretendem vê-lo realizado; basta pensar na redação e seus efeitos legais que podem ser extraídos pelos inúmeros interpretes da norma ou, ainda, a eventual adequação às normas constitucionais materiais, procedimentais etc. Este quadro, por si só, envolve diversos limitadores materiais à participação popular no processo legislativo.

Este apanhado revela que existem múltiplas variáveis entre o ponto de partida da população – acesso desta à internet – e o ponto de chegada – efetivo acesso ao governo eletrônico, incluindo aquelas que se tornam barreiras à capacidade de entendimento do procedimento legislativo pelo povo. Esses fatores de exclusão digital minam a presunção de que basta à população ter acesso à rede mundial de computadores e ao governo por meio eletrônico que se terá automaticamente uma elevação da quantidade e qualidade da participação popular na democracia participativa em sua forma digital.

3.3 A LEGITIMIDADE DA INTERATIVIDADE NA E-DEMOCRACIA

Outra questão salutar é saber se a e-democracia possibilita a efetiva e eficaz interatividade entre a sociedade e os políticos, eis que estando em um ambiente virtual fica mais difícil obter em tempo real o retorno de que a contribuição/solicitação do cidadão está chegando a seu destino (parlamentares e membros do executivo) na forma de inputs, bem como se esses inputs estão sendo levados em consideração, gerando outputs.

“Após o advento da Internet iniciou-se um novo momento da sociedade, no qual os internautas podem ser criadores da informação, além de receptores” (NICHEL, 2014, p. 190), o que sugere trazer à tona a questão motivacional do ambiente on-line, pois a simples concepção do incremento instrumental não representa a participação democrática, especialmente porque pode trazer ao invés do incentivo ao acesso um desestímulo e apatia à política no mundo contemporâneo. Daí porque, a Internet, enquanto meio técnico de comunicação, pode não ser capaz de superar e resolver as crises de legitimidade das democracias atuais (STABILE, 2012, p. 39 e 40).

Assim, para superar o panorama de crise de legitimidade da democracia representativa em que vivemos através da e-democracia que possibilita o aumento da democracia participativa há que ser observado a efetiva interatividade.

Como visto anteriormente nesse trabalho, a Câmara dos Deputados tentou inserir a e-Democracia e aumentar a participação popular nos processos legislativos por meio do respectivo portal, possibilitando ao cidadão participar das audiências públicas interativas, das discussões nas pautas participativas, dos chats e contribuir em projetos de lei. Porém, na prática, os próprios parlamentares não demonstram interesse nessa ferramenta, a ponto de sequer saber fazer o login na plataforma (FEDERAL, LINHA, ORIENTADOR, PAULO, & ALMEIDA, 2013, p. 76).

Ao que parece, infelizmente, o programa não passa de algo instituído “para inglês ver”. Não bastasse o desinteresse dos parlamentares, existe também um estrangulamento do programa através do número diminuto de pessoas dedicadas a ele, sendo a equipe composta por menos de dez integrantes, podendo “acarretar diversos problemas de gestão do e-Democracia, pois, a depender da demanda em tempos de discussões mais ávidas, pode haver uma sobrecarga de atividades, o que prejudicaria a atualização constante que deveria ter esse site, já que a dinâmica das discussões legislativas é intensa” (FEDERAL et al., 2013, p. 77).

Nesse passo, verificando as dificuldades estruturais apontadas acima, a barreira que traz um sintoma de falta de legitimidade é a interatividade, pois o cidadão que acessa cria a expectativa de uma conexão com os destinatários de sua mensagem de forma rápida, descentralizada e personalizada. Porém, os usuários desse programa “avaliam mal as ferramentas específicas de interação com os atores políticos e enfatizam claramente que os Deputados Federais não respondem aos seus e-mails. Pedem que o Portal se adapte às novas ferramentas da Web 2.0, por meio de uma maior integração com as redes sociais”(STABILE, 2012, p. 130 e 131).

De mais a mais, Stabile ainda constatou na sua pesquisa, que devido à falta de interatividade houve um desestímulo entre aqueles que participaram de algum debate temático, pelo fato de sentirem que “as discussões realizadas no e-Democracia não geraram impacto político” (2012, p. 131).

Assim, o portal não satisfaz os movimentos sociais que buscam emancipação e empoderamento por meio da democracia participativa, pois ainda mostram preferência por participar de protestos e exigir mudanças diretamente. Em contrapartida, quem está satisfeito com a interação política proporcionada pelo Portal “são os ‘profissionais da política’”, que trabalham em assessorias parlamentares, com comunicação e que acessam o portal para fins profissionais. Normalmente são indivíduos com alta renda e que acessam o Portal com maior frequência e geram um maior nível de tráfego” (STABILE, 2012, p. 131).

O que se nota é que enquanto a tecnologia da informação avançou vertiginosamente, seja na qualidade e velocidade de acesso, seja na ampliação do acesso pela população, os representantes parlamentares, por outro lado, aparentam estagnados, não usufruindo dos benefícios por ela concedidos por meio de aplicações como o portal e-Democracria. E isto numa época em que o reconhecimento do potencial da tecnologia da informação conduziu a um aumento substancial de sua adoção (HEEKS, 2002) e fomentou a implementação de reformas no setor (FOUNTAIN, 2001; HEEKS, 2002); uma verdadeira contradição.

Assim como deve ser avaliada a participação dos congressistas no e-Democracia, devem ser voltados olhos para a participação da sociedade, especialmente a omissão de participação, no intuito de entender o porquê de os usuários não participarem do e-Democracia. Nesse desiderato, foi elaborado uma lista de motivos do não acompanhamento das discussões. A pergunta foi feita aos que disseram não ter participado de nenhuma discussão e àqueles que já participaram (STABILE, 2012, p. 38). A pergunta foi estimulada e de múltipla escolha e os resultados podem ser vistos abaixo:

Tabela 1 - Motivos para não utilizar Governo Eletrônico - em %

MOTIVOS

(%)

Prefiro fazer o contato pessoalmente

46

Preocupação com proteção e segurança dos meus dados

14

Os serviços de que eu preciso são difíceis de encontrar

12

Os serviços de que eu preciso não estão disponíveis na Internet

11

Usar a Internet para contato com a administração pública é muito complicado

9

Dificilmente recebo retorno (resposta) às minhas solicitações

3

Os serviços de que eu preciso estão disponíveis na Internet, mas não é possível completar a transação.

2

Outro motivo

19

NS/NR

13

Fonte: Pesquisa TIC Domicílios e Empresas 2010

Percentual sobre o total de pessoas que não usaram serviços de governo eletrônico, mas utilizaram Internet.

Os usuários pedem também uma maior interação entre a sociedade civil e as autoridades parlamentares. Apesar de ser uma modalidade com apenas 3,8% das respostas, ela indica que, da mesma forma que reclamaram na pesquisa do Portal da Câmara, tem-se novamente ressaltada a importância que essa interatividade tem na opinião dos usuários (“Pouca participação dos deputados e dos assessores. Falta de canal de comunicação com os deputados.”). Além da interação dos parlamentares, os usuários sugerem maior envolvimento de organizações da sociedade civil para “capitanearem” algumas discussões. Assim, o e-Democracia aumentaria a sua “capilaridade” na sociedade e a sua divulgação.

Portanto, além da dificuldade de acesso à rede e a compreensão do processo legislativo e de como pode atuar em meio eletrônico por parte dos cidadãos, o grandioso projeto por trás da e-Democracia acaba esbarrando na ponta principal, que deveria ouvir os eleitores – os parlamentares. Assim, nota-se que ainda há muito a ser evoluído para que a e-Democracia torne-se alternativa ao exercício da democracia participativa.

Sobre os autores
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Pós-graduado em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pelo Centro Universitário Estácio. Pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Atualmente, pós-graduando em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. 1º Tenente R2 do Exército Brasileiro. Membro da Comissão Nacional de Direito Militar da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Membro da Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Professor Orientador do Grupo de Pesquisa em Direito Militar da ASPRA/BA. Membro do Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais e da Editora Mente Aberta. Advogado contratado das Obras Sociais Irmã Dulce, com atuação em Direito Administrativo e Militar.

Fernanda Caribé Seixas

Advogada. Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia- UFBA, pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito, Mestranda na Universidade Salvador- UNIFACS, no curso de Metrado Interdisciplinar em Direito, Políticas Públicas e Governança.

Saulo Baqueiro Cerejo

Mestrando em Direito, Gestão e Políticas Públicas da Universidade UNIFACS - Universidade Salvador Laureate International Universities - Especializando em Contabilidade Pública e Responsabilidade Fiscal - Bacharel em direito pela Universidade Católica de Salvador - Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal da Bahia. Advogado - Assessor da 4ª Procuradoria de Contas do Ministério Público Especial de Contas junto ao Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Jamil Pereira; SEIXAS, Fernanda Caribé et al. Os desafios da e-Democracia como alternativa ao exercício da democracia participativa no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6014, 19 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77420. Acesso em: 18 nov. 2024.

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