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A inscrição no pórtico que o Supremo Tribunal está construindo em nosso imaginário social para deixar à posteridade

Agenda 02/11/2019 às 12:51

Na revisão da jurisprudência, adotada sob o critério da repercussão geral em 2016, da execução provisória da pena após julgamento confirmatório em segundo grau, o Supremo não inscreve para a História absolutamente nada que pudesse constar em um pórtico.

1. O arquiteto Oscar Niemeyer, além dos palácios, catedrais, capelas, vistosos prédios administrativos e grandes conjuntos residenciais, projetou também uma mesquita na Argélia, um cassino na Ilha da Madeira, clubes, memoriais de políticos e ocas ou tabas indígenas estilizadas, que se encontram no Parque do Ibirapuera e no interior do Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.

Sendo considerado um mestre, autor de obra tão diversificada, ao projetar o prédio do Supremo Tribunal Federal esqueceu-se de reservar-lhe um pórtico e uma inscrição.

Num país como o Brasil, em que sopram todos os ventos, propagam-se as mais difusas versões, questionam-se todas as verdades (a ponto de Nelson Rodrigues haver reivindicado que o “óbvio ululante” chegava a ser negado pelos “idiotas da objetividade”), uma inscrição na sede da nossa Suprema Corte poderia ser percebida, tanto por sábios quixotescos como por parvos tão prosaicos quanto Sancho Pança, como a agulha imantada de uma bússola e algum Norte seria visualizado por todos.

Porém, tudo indica que Niemayer se contentou em convocar seu conterrâneo Alfredo Ceschiatti para esculpir a estátua que está na frente do prédio do STF.

A História mostra que isso não bastou, pois a imagem não conseguiu moldar nenhuma identificação mais precisa, e se presta tanto a ser satirizada em infindáveis caricaturas como a receber pichações quando há manifestações públicas com críticas aos julgamentos.

Há mesmo uma razão bem compreensível para isso: o escultor parece que quis ser fiel ao estilo art déco, cujos traços marcantes substituem o rebuscamento.

Embora maravilhoso, tal estilo já estava encerrado há muito, como tendência estética, quando Brasília foi construída, e os palácios lá instalados tiveram inspiração bem diferente, da arquitetura modernista. Se alguns veem harmonia na estilização, outros certamente percebem um contraste entre a figura clássica da deusa, numa posição pouco afirmativa, em um certo repouso, que pouco ou nada anuncia do que se pratica no caixote de concreto e vidro, cujos adornos principais são as colunas, onde o Supremo Tribunal atua.

Além disso, os conhecedores da antiguidade grega identificaram que a imagem não é a da titã mitológica Thêmis, em geral representada em pé, ora mais guerreira, ora mais equilibrada, empunhando a espada e outros adereços simbólicos que foram acrescidos ou suprimidos arbitrariamente em culturas e épocas diferentes, a começar pelos romanos, o que sempre deu vezo à vulgarização em alguns desenhos e estatuetas horríveis, com que os cultores de fetiches enfeitam seus escritórios e bibliotecas.

A estátua na frente do Supremo é da filha de Thêmis com Zeus, Diké, também representando a justiça, mas sobretudo a disciplina do Direito, enquanto sua mãe representaria mais a fidelidade do juramento às leis.

Como quer que seja, em Brasília, como também aconteceria na Grécia antiga, o que a estátua de Ceschiatti tem a mostrar é algo de enigmático, de modo que – se tivesse sido concebido um pórtico com alguma inscrição – algo precisaria representar o elemento de ação ou da finalidade da Suprema Corte pois, afinal, a justiça é algo que se pratica. “Justiça”, portanto, quer dizer “prática da Justiça”.


2. Porém, o diálogo com a obra de arte exige a compreensão do seu contexto. Na década de cinquenta do século passado, muitos foram os episódios traumáticos e as tensões políticas, como a coação inescrupulosa e avassaladora a Getúlio Vargas, já mais que septuagenário, levando-o ao suicídio; o contragolpe legalista do marechal Lott abortando as tratativas de Café Filho, Carlos Luz e Carlos Lacerda para tomar o poder; as tentativas de golpe de Aragarças e Jacareacanga por militares ensandecidos da Aeronáutica e, sob “tenebrosas transações”, a construção de Brasília em menos de cinco anos.

O general Olympio Mourão Filho, insuspeito nesse particular por ter sido quem desencadeou o golpe militar de 1964, escreveu em seu diário, anexado ao livro de memórias que publicou ao fim da vida – sendo ele amigo de Juscelino Kubitschek, seu contemporâneo e conterrâneo de Diamantina – que os americanos levaram um século para completar a construção da capital em Washington, enquanto nosso ex-presidente procurou se perpetuar empreendendo a da “sua” em um qüinqüênio.

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Mesmo assim fez também o registro de que Juscelino lhe confidenciou que a mudança da capital foi decidida para afastar o comando do país de golpistas que estavam arraigados em estruturas de poder instaladas no Rio de Janeiro.

Ninguém pode dizer hoje se o argumento era sincero, mas na época era bem posto considerar a geopolítica, tanto que pessoas tão diferentes, como o general Golbery do Couto e Silva, o ideólogo da ESG, e o sociólogo Josué de Castro, que veio a ser o representante do Brasil na FAO, escreveram livros com essa abordagem.

Juscelino então achou que também podia invocar a geopolítica do golpe para ‘edificar’, no sentido próprio, sua “Metropolis”.

Esses registros são feitos unicamente para concluir que um pórtico e um dístico talvez não fossem desejados então. Para que dar uma palavra que soasse como missão clara e permanente, inteligível por todos, inscrita na pedra, para o principal órgão do Judiciário?

Juscelino era mesmo um homem de identificação mais pelos gestos do que pelas palavras e, notoriamente, usava o serviço de gost writer do poeta Augusto Frederico Schmidt, sendo deste até as conhecidas frases coladas em uma parede de Brasília, que começam com “deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará...”, etc, cujo significado ‘profundo’, aliás, é tão vazio como “viver é muito perigoso”, do outro mineiro João Guimarães Rosa, também ele construtor de ‘catedrais’.

Sendo nisso que se acreditava na década de 1950/1960, o que poderia ter sido no pórtico do prédio do Supremo?

Provavelmente, algo ou muito ruim ou ‘supremamente’ banal.


3. Porém, a História é escrita por muitas mãos. Os que reivindicam ter traçado seus rumos são simples personagens, na maioria das vezes mais simples do que pensaram ser.

Os pórticos reais ou imaginários existiram sempre e sempre irão existir.

Um dos mais famosos, ainda na Antiguidade, foi o de Atenas, onde pregou e iniciou a sua escola o filósofo Zênon.

Diógenes Laércio, autor da primeira história da Filosofia que foi preservada, “Vidas e Doutrinas de Filósofos Ilustres”, registrou que a doutrinação de Zênon ocorria junto ao Pórtico Pintado (Stoá Pécile), em uma das entradas da cidade, de modo que seus partidários ficaram conhecidos como stoikós, que conhecemos por estóicos.

O estoicismo tem a ver com o motivo deste texto porque considera “as diversas percepções da realidade”, mas a subordina a elaboração de um conceito, pois é este que fixa seus “elementos constituintes”. Desse modo, o “barbarismo”, que implica nas múltiplas formas de dobrar a realidade, se expressa por uma quebra do semântico, isto é do "elemento significante", que acaba se tornando “ininteligível”.

A preocupação dos estóicos com a “terminologia do conceito” estava baseada em que “não se pode admitir logicamente que a natureza torne o ser vivo estranho a si mesmo”.

Portanto, só a deformação justifica os ‘raciocínios insolúveis’. Em razão disso, “Zênon foi o primeiro a usar o termo dever (kathékon), pois é impositivo ao homem perceber a noção de apathéia (que não pode simplesmente ser traduzida por apatia, por perda de conceito), “pois significa propriamente a ausência de paixões” e é através dela que se afasta o sofrimento, “porque é uma contração irracional da alma”.

Não se sabe e nunca se saberá por que uma frase do filósofo estóico romano Sêneca (referido também, em tradução de significado, como ‘O Velho’), natural de Córdoba e preceptor de Nero, na condição de escravo, escrita em suas “Epístolas Morais”, veio a encimar o pórtico da Faculdade de Direito de Porto Alegre: res severa verum gaudium (a verdadeira alegria é coisa séria). Frase intensamente conceitual, hoje conhecida e citada em todo mundo, convite à reflexão que até tocou José Bonifácio, que a mencionou em uma obra sua, talvez porque teve que lidar com o alegre mas nada sério Dom Pedro I, a imperatriz Leopoldina, atravessar as intempéries da Independência e ainda que tornar-se tutor de Dom Pedro II.

O que pensariam os construtores da Faculdade de Direito quando criaram, para atender a elite local, o prédio copiado de um palacete europeu erguido em Estrasburgo, que foi inaugurado em 1900, quando nosso país vivia o namoro com a República, numa espécie de “belle époque” tropical, não com uma aula magna, também não com uma exposição sobre o estoicismo do dístico, mas com...um grande baile.

Jamais se saberá qual predominou entre as virtudes da alegria e da seriedade. Talvez ambas tenham sucumbido muitas vezes, muitas mais do que imaginavam os alegres fundadores, afinal há dúvidas sobre se o Direito ‘é coisa séria’ no Brasil, embora se saiba bem que traz ‘verdadeira alegria’, seletivamente, só aos que se servem dele.


4. Outro pórtico monumental foi erigido ao fim da Idade Média: o Portal do Inferno, na Divina Comédia, por Dante, que ali, no temeroso escuro, lançou a inscrição: lasciate ogne speranza, voi ch’intrate (abandonai toda a esperança, vós que entrais).

Essa eterna advertência é lembrada sempre que se exige de alguém – o que ocorre com frequência assustadora, em seguidas situações da vida – que supere o insuperável.

Karl Marx, um reconhecido leitor dos clássicos, que dominava com a memória muitos trechos ilustrativos, agregou dois outros versos que estão na mesma estrofe de Dante, ao escrever em 1859 o prefácio de sua obra “Para a Crítica da Economia Política”: qui si convien lasciare ogne sospetto / ogne viltà convien che sia morta (aqui convém abandonar toda a suspeita / toda a tibieza convém que esteja morta).

Marx propôs que essa citação figurasse também na Porta da Ciência. Há de se entender que ele falava de ciência numa época em que ela estava dominada pelo positivismo, que era otimista e havia escolhido a palavra ‘progresso’ como se fosse um destino.

O grande parceiro de Marx, Friedrich Engels, também usou uma imagem antiga, recuando à mitologia grega, para referir-se aos estudos da ciência, mas foi mais ameno.

Para ele, em “A Dialética da Natureza”, bastaria tomar o mesmo cuidado que Teseu adotou ao ingressar no labirinto do Minotauro, estendendo o fio que Ariadne, sua amante, lhe deu para marcar o trajeto da saída. “Fio de Ariadne” tem, portanto, o sentido consagrado de ‘caminho de volta’.

Convenhamos que nenhuma dessas inscrições, embora muito significativas, teria propriedade de emprego em pórticos de faculdades de Direito e de tribunais, embora – no caso do Supremo Tribunal Federal – sua inadequação não seja de sentido, mas unicamente por um motivo prosaico que se expressa em um ditado italiano: para não saber, melhor não ler nem escrever.


5. A Suprema Corte dos Estados Unidos deu uma lição ao mundo quando inaugurou seu prédio, em plena recessão econômica, em 1935. Ela encontrou uma inscrição tão digna dos gregos, dos romanos e de Dante: “equal justice under law”, justiça igual sob a lei.

Muitos desdobramentos podem ser extraídos desse enunciado. Eles não precisam ser feitos aqui, pois seu poder está em que todo o leitor tem o discernimento para subentendê-los.

De qualquer modo, outra inadequação, pois seria uma evidente mentira e assim logo percebida tanto por sábios quixotescos ensandecidos como por parvos sensatos qual Sancho Pança, se o mesmo enunciado fosse repetido no pórtico do Supremo Tribunal Federal, entre o caixote de vidro e concreto e a plácida estátua art déco de Diké.

A justiça não é igual em nosso país e não são todos que se submetem à lei. Conseguimos o recorde na história da humanidade de havermos descoberto uma lógica que repugnaria aos estóicos, mas certamente seria a alegria, por sinal nada séria, dos sofistas: aqui todos são iguais perante a lei, mas a lei não é igual para todos.


6.Arbei macht Frei”, o mundo soube tornar-se cruel. O Inferno de Dante veio à superfície e, onde estava escrito “O Trabalho Torna Livre” (ou liberta, na tradução mais corrente), ficava marcado exatamente o local onde os corpos eram dilacerados e queimados. A inscrição se repetiu em campos de concentração da Alemanha, Polônia e Tchecoslováquia, sendo guardada como memória eterna a placa que permanece em Auschwitz.

Mas, convenhamos, essas placas eram esclarecedoras, pelo cinismo evidente. Não havia trabalho, nem resgate da liberdade. Os ignorantes nazistas simplesmente haviam copiado, e deformado, o título de um livro publicado na Alemanha, ainda na República de Weimar, e tornado muito popular. O livro tratava da recuperação da Alemanha e não de extermínio.

O esclarecimento decorre do fato de que os dísticos de tribunais poderiam se tornar demasiado repulsivos se prometessem uma justiça igual sob a lei, e esta também igual, para todos.

Ainda que toda a tibieza tivesse sido abandonada, não o teria sido tudo o que é suspeito e, principalmente, não se admitiria estender o fio de Ariadne para marcar o regresso por alguma saída, e a incursão nas brumas do Direito seria tanto irremediável como sem esperança.


7. Este registro de memória está sendo grafado nos dias em que o Supremo Tribunal Federal revisa a orientação jurisprudencial que adotou ao julgar o HC 12629274, no já recuado fevereiro de 2016, dando-lhe o efeito de repercussão geral, como está previsto desde a reforma constitucional trazida com a EC 45/2004.

A jurisprudência então fixada foi a de que a execução provisória da pena começa após julgamento confirmatório de segundo grau.

As interpretações em contrário não só foram vencidas como estavam baseadas em uma presunção de senso comum, de que a regra constitucional, sobre o trânsito em julgado da sentença que imputa a pena, contém alguma vedação.

Os argumentos que sustentaram a orientação então adotada não precisam ser repetidos, pois estão em toda parte. Basta que se faça o convencimento dos incrédulos, lidando com os conceitos adequados para o caso.

Se a Constituição proibisse literalmente o cumprimento da pena e, em qualquer caso, a prisão antecipada ao trânsito em julgado, como e por que sete dos ministros do Supremo se deixaram convencer do contrário em 2016?

A leitura dos Anais da Constituinte mostra que a redação proibitiva da prisão antecipada ao trânsito em julgado foi expressamente rejeitada.

Se não pudesse haver cumprimento de pena antes do esgotamento do último recurso, como poderia haver a prisão em flagrante, a provisória e a preventiva? E quanto ao réu confesso, a materialidade inequívoca, a tipificação inquestionável? Todas essas situações “habilitariam” o infrator à liberdade, aguardando os tribunais se controvertem?

A crença na literalidade do veto constitucional a toda e qualquer prisão antecipada ao trânsito em julgado é a nossa placa de Auschwitz dos dias de hoje. Nela só acreditam os excessivamente ingênuos e os que têm malícia superlativa. Eles acham que o trabalho e os sofrimentos no Inferno libertam. Desmentem Dante, mas num arremedo tosco, porque não conseguem produzir crença nenhuma.

Descrer no Direito é perder o seu reconhecimento, ou melhor, perder a capacidade do seu reconhecimento. Nada, absolutamente nada, nenhuma urgência circunstancial, nenhuma vontade comprometida com práticas condenáveis diante da consciência pública, nenhum temor de ser atingido pessoalmente pelos deslizes pessoais ou funcionais praticados pelos próprios juízes e ministros, nada, absolutamente nada, é capaz de retirar do pórtico imaginário que a consciência social enxerga diante da nossa Suprema Corte, alguma inscrição de confiança que merecesse ali constar.

Até que seja demonstrado o contrário, na frente do caixote de concreto e vidro instalado em Brasília, adornado por interessantes colunas, junto da plácida imagem de uma Diké compassiva, só o que se pode vislumbrar inscrito é, simplesmente, NADA.

O Brasil, finalmente, entendeu Auschwitz.

Aqui “o crime torna livre”.

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

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