1. Introdução
Albertus Gandinus (1245-1310) é um caso emblemático. Juiz profissional, com prática de mais de vinte anos de judicatura nas Curie podestarili comunale na Itália do baixo medievo, destacou-se não somente pelo seu consistente saber jurídico, mas, particularmente, por elevar a discussão das questões práticas ao nível das questões doutrinárias referentes ao que ele tinha pleno conhecimento, o processo penal.[1]
O debate acadêmico de Gandinus foi com os textos de juristas contemporâneos, demonstrando especial preferência pelos grandes doutores da escola culta, de Accursio a Odofredo, de Azzo a Dino del Mugello, de seu professor Guido da Suzzara a Jacopo D´Arena, e finalmente chegando ao Spectrum iudiciale do francês Guilelmus Durantis. Mas o que faz de Gandinus uma figura tão especial é que, ao que se sabe, foi ele o primeiro juiz-jurista a inserir, com estabilidade, o procedimento inquisitório em um tratado sobre o processo penal, o Tractatus de maleficiis.[2]
O Tractatus maleficiis, em grande parte uma obra de montagem, composta e redigida nos anos finais do século XIII e em parte no século XIV[3], traz à tona uma verdadeira gnosiologia do juízo embasada sobre o poder e o dever do juiz de decidir como e quando deve-se punir uma pessoa, entendendo a punição como uma solução natural da descoberta da culpa. E aqui entra um fator importante que influenciou - e dele se utilizou – Gandinus: o direito canônico. Gandinus vai usar as decretais como instrumento técnico com uma finalidade bastante específica, a de desconstruir o ordo acusatório então vigente para reconstruir uma nova práxis inquisitória, a qual consinta não somente em indagar o que uma pessoa fez, mas, mais profundamente, o que a pessoa é.[4]
Gandinus, magistrado de ofício, tem a firme convicção de que as ações dos homens não expressam somente acidentes externos, mas, ao contrário, refletem uma essência interior, recôndita, que deve ser investigada e posta para fora, a julgamento, pois é essa essência que determina a ação criminosa do imputado. É por esse motivo que Gandinus empenha-se, com tenência, para tornar o juiz o motor central do processo, colando na já conhecida máxima ne maleficia remannat impunita[5] outra fórmula, a que consagra uma comunhão, a das intenções do Estado com as do Juiz, que devem passar a ser uma só.[6]
Somente séculos após a morte de Albertus Gandinus é que vem a se descolarem os atores do processo penal, mais precisamente o que acusa do que julga, tornando-se independentes um do outro. Mas a pergunta que fica é: será que Gandinus morreu mesmo, ou não está ele bem vivo, recôndito em nossa alma jurídica?
2. O Ministério Público e a separação processual de poderes
A origem do Ministério Público perde-se nas brumas da especulação histórica. Alguns identificam-na no antigo Egito, como é o caso de Roberto Lyra; outros, na Grécia antiga, outros mais na Roma antiga, como destaca Pierangelli. [7] O fato é que gozam de maior consenso os estudos que identificaram como ponto cronológico importante na genealogia do Ministério Público a França de 1287, quando aparece a Cour du Roi no Parlamento de Paris, momento em que surgem os procuradores ad lites do Rei, os quais, já mais estruturados no século XV, vão-se transformando em órgãos de persecução dos crimes perante juízes e tribunais, sendo eles incumbidos também de tarefas atinentes à administração da justiça senhorial por força dos chamados Estatutos de São Luís, publicados possivelmente em 1270 com a finalidade principal de uniformizar os procedimentos judiciários.[8]
É de notar-se que a partir da Ordonnance Criminelle, de 10 de agosto de 1670 – que virá a se constituir a grande codificação do processo penal francês - o campo de atuação do Ministério Público ganha contornos mais claros, em particular no que define que em cada tribunal o rei passa a ter um agente para perseguir os criminosos.
Mas é propriamente com a Revolução Francesa, inspirada em correntes filosóficas e políticas diversas das até então dominantes, que mudanças de relevo ocorrerão e medidas outras serão exigidas pelos revolucionários. A nova ordem reclama reformas nos campos administrativo e judiciário, que aos poucos vão-se concretizando até se chegar ao Code D´Instruction criminele de 1808 sob Napoleão, que confere ao Ministério Público as atribuições de investigação e persecução dos crimes (Capítulo IV, seção I, artigo 22 e seguintes do Code)[9], evidentemente com o seu toque pessoal, característica dos regimes de força.
Der code d´instruction criminelle von 1808 setzte zur Ermittlung und Strafverfolgung den Staatsanwalt ein (vordem procureur du roi = Anwalt der Krone) als öffentlichen Kläger und sicherte mit diesem Anklageprinzip dem Richter seine objetive Stellung (Akkusationsprinzip im Gegensatz zum Inquisitionsprinzip).[10]
A constituição de um Ministério Público, Staatsanwaltschaft, organizado é uma das várias consequências/conquistas da Revolução Francesa. Roxin e Schünemann notam que passa sem contestação entre os processualistas da primeira metade do século XIX que nesse momento, gerado pela Revolução, há uma importante ruptura com o princípio inquisitório na formatação até então vigente. Em outras palavras, a separação das funções estatais da justiça criminal em dois órgãos, ou seja, o descolamento da função persecutória da judicante estabeleceu uma verdadeira separação processual de poderes,[11] que outro caminho não seguiu senão o do crescente reconhecimento da importância no (e para o) Estado Democrático de Direito da instituição do Ministério Público, a qual, por força constitucional, vem a gozar de autonomia funcional e administrativa.
O Ministério Público passa finalmente a ter garantias constitucionais concretas de independência, que tradicionalmente eram conferidas somente aos juízes. Mas, alcançadas essas garantias, após longo e tumultuado trâmite histórico, é possível retroceder?
3. A evolução do Ministério Público e a atual subversão do imperativo de imparcialidade psicológica e hermenêutica do Juiz
Pode-se dizer, em chave clássica[12], que historicamente três são os modelos ou sistemas de processo penal: o inquisitório, o acusatório e o misto[13] (ou inquisitório-acusatório ou neo-inquisitório). As diferenças entre os sistemas, ou modelos, têm origem em diversidades histórico-culturais relacionadas basicamente às estruturas de autoridade e às finalidades do processo judicial onde cada sistema ou modelo assentou-se.
Seguindo em linha clássica, é lícito constatar o predomínio da classificação doutrinária do sistema processual penal brasileiro atual como sendo o misto[14], ou ainda conforme mais uma classificação, acusatório formal (Art. 129, I, da Constituição Federal[15]), o qual, em face das possibilidades de iniciativa probatória do juiz tenta homogeneizar/harmonizar os princípios e as características do sistema inquisitório presentes na investigação preliminar com elementos do sistema acusatório.
O sistema vigente, em apertada síntese, por intermédio de seus princípios reitores, operacionaliza a triangulação processual através da composição: acusação, defesa, ambas em nível de igualdade, e o juiz, terceiro suprapartes/equidistante, que organiza o processo e julga o caso penal.[16]
Nessa configuração, o Ministério Público, como parte representante do Estado, não somente está incumbido da acusação (persecutio criminis), mas é elemento essencial na limitação (inclusive psicológica) da gestão da prova pelo juiz, detentor, no nosso sistema, de poderes instrutórios, [17] limitação que tem efeitos hermenêuticos importantes, como se verá mais adiante.
Visando a afastar o juiz da gestão/produção da prova, o legislador, através da Lei nº 11.690/2008, modificou parcialmente o Código de Processo Penal. A lei, embora com timidez e equívocos, alterou eficazmente o anterior sistema presidencialista na coleta da prova oral, dando maior robustez à carga de eficácia contida no sistema penal acusatório com reflexos concretos nos papeis desempenhados pelos protagonistas do processo.
O legislador, com a mudança na lei, visou a alterar o paradigma de atuação do juiz na audiência de instrução e julgamento, retirando-lhe o protagonismo na produção da prova, favorecendo, dessa forma, a escuta, mas facultando-lhe atuação complementar quando necessária para a compreensão e esclarecimento de questões importantes surgidas durante as inquirições. No que toca ao Ministério Público, com a própria mudança do papel do juiz na audiência, o legislador reafirmou a indispensabilidade do Órgão da acusação, posicionando-o no seu verdadeiro lugar constitucional, qual seja o de produzir a prova acusatória, e, assim como a defesa do acusado no exercício de suas atribuições, buscar convencer o juiz de que a sua versão dos fatos é a melhor.
Em outras palavras, o espírito da reforma legislativa é fundamentalmente o da concretização dos princípios constitucionais reitores do sistema acusatório, e portanto, impedir o juiz de, ao fim e ao cabo, vestir a toga do Ministério Público.[18][19]
Nada obstante as discussões acadêmicas que já de longa data fermentavam e seguem fermentando o debate, bem como malgrado desde 2008 estarem em vigor as mudanças legislativas promotoras do desenvolvimento e avanço do sistema acusatório do processual penal nacional, seguem os tribunais do país resistentes a mudanças, em particular no que toca ao tema deste artigo, qual seja a ausência do Ministério Público na audiência de instrução criminal, apesar de regularmente intimado para o ato, pondo em vigência interpretação funcional-consequencialista avessa à matriz constitucional do Processo Penal no Estado Democrático de Direito.
4. Funcionalidade versus constitucionalidade? O Hintergrund dos argumentos que sustentam a validade da audiência de instrução criminal em que não compareceu o Ministério Público, embora intimado para o ato.
Respondendo-se à pergunta posta acima, quase tudo é passível de retrocessos, e a justificá-los há sempre a boa e velha retórica.
São abundantes e variados os argumentos[20] que dão sustentação à validade da audiência de instrução criminal em que o Ministério Público não se faz presente, se para o ato foi regularmente intimado, e o juiz, pessoal e diretamente passa a inquirir vítimas, testemunhas, peritos e acusados, produzindo ele próprio, e diretamente, a prova oral.
Por necessidade de ajuste deste artigo ao espaço a ele destinado, restringimo-nos a citar e a discutir sucintamente apenas três dos argumentos mais comuns e destacados que veem higidez no ato processual nas condições acima mencionadas.
O primeiro é o que prega o respeito ao princípio da celeridade processual e a garantia da duração razoável do processo, que vem consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, que, ao fim e ao cabo, têm motor próprio na vinculação do juiz ao princípio do impulso oficial. O argumento é notoriamente frágil, porquanto a obrigação do juiz é de impulsionar e acelerar o processo de acordo com as normas processuais previstas na legislação processual penal que estejam em conformidade estrita com Constituição. De modo algum pode-se conceber que o impulso oficial, sob pretexto da celeridade para tempo razoável de duração do processo empurre o juiz para picadas e pinguelas mediante uma suposta autorização de uma flexibilidade funcionalista e circunstancial, sempre presente que em processo penal a forma é garantia do acusado - forma dat esse rei.[21][22]
O segundo argumento sustenta que, como agente de poder, consequente e presumivelmente mais letrado nas leis, o juiz é mais consciente dos problemas sociais, e assim mais devedor à sociedade no combate ao crime, tendo mais obrigações do que os demais cidadãos de proteger a sociedade.
O argumento é sedutor, mas sua falência é visível, pois já de início coloca embutido um derivativo contaminado, qual seja a fórmula “nós versus eles”, isto é, uma espécie de sugestão/concepção do common sense de que o acusado no processo penal não integra esta mesma sociedade em que vivemos. Assim, não integrando a nossa sociedade, sendo ele um “output”, pode ter suas garantias constitucionais flexibilizadas, o que, evidentemente, não tem fôlego jurídico e/ou ético.
Este argumento traz ainda algo mais perigoso em seu Hintergrund, que é a concepção largamente enraizada de que a atividade judicial é implementadora de políticas governamentais de segurança pública, identificando os juízes como órgãos de segurança pública, quando a atividade do juiz é completamente diversa. De modo algum espera-se que o juiz se insira em gestão e execução de políticas governamentais de segurança pública, mas, ao contrário, restrinja-se ao seu papel constitucional de prestar jurisdição com base e por foça da Constituição Federal, consenso bem maior formado democraticamente em solo de interesse do Estado e da Nação, e não de governos.
Por fim, o terceiro e último argumento que nos parece importante trazer à colação, igualmente franzino, é o que sustenta que, sendo o juiz o destinatário da prova, pode e deve buscar a verdade real, pois a ele incumbe julgar com base na sua íntima convicção motivada. Nessa visão, torna-se corolário lógico de que a presença do Ministério Público em audiência para realizar o seu mister acusatório, produzindo a prova acusatória, em suma: desdobrando seu papel constitucional, é dispensável, já que, sob essa perspectiva, o Parquet estaria obrigado tão somente a promover a ação penal, e sua atuação no decorrer do processo teria um caráter coadjuvante, para não dizer secundário, bastando para justificar a sua ausência ter sido intimado para o ato.
Além disso, não se flagraria aqui uma visão equivocada do princípio Da mihi factum, dabo tibi jus, que, como se sabe, não é empregável no processo penal, mas sim no processo civil? Além do mais, exatamente por ser o julgador, é mister que ao juiz seja vedada a coleta da prova acusatória - não bastasse, em nosso sistema, ter o juiz acesso prévio ao inquérito policial e eventualmente durante seu iter ter ele próprio decido medidas constritivas/cognitivas, tais como buscas e apreensões, prisões temporárias, cautelares, etc., formando, desde então, uma ideia sobre o suspeito/imputado.
5. As nulidades processuais penais e sua alma constitucional: a necessidade de observância do sistema acusatório e dos seus princípios reitores na efetivação dos direitos fundamentais.
Nós brasileiros, sem qualquer novidade, vivemos em uma tradição jurídica genealogicamente derivada do continente europeu, da civil law, malgrado as alterações e influências que nossa legislação, e de resto o mundo jurídico nacional, experimenta desde o século XX. Nosso DNA jurídico é o do continente europeu, como fica estampado nas diferenças expostas por Mirjan Damaska em seus modelos hierárquico e concentrado. [23]
A presença ativa do Ministério Público em todos os termos da ação penal, ao menos nas ações por ele intentadas, longe de constituir exigência formal, é estrutural e concretiza, no processo penal, o Estado Democrático de Direito. O Órgão do Estado responsável pela acusação, produzindo a prova acusatória, põe em movimento mecanismo democrático indeclinável, intransferível e eficaz, esteando obstáculo à subversão do imperativo de imparcialidade (psicológica e/ou hermenêutica) do juiz, que no ato processual aleijado põe-se ele próprio a questionar os inquiridos, como se órgão da acusação fosse.
Para uma compreensão mais ampla da extensão do que se passa na mente do juiz que preside a audiência de instrução criminal no sistema hierárquico, é recomendável que se conheça os estudos sobre esses efeitos realizados por Schünemann[24], que aqui, por carência de espaço, não debateremos, mas que está indicado em nota de rodapé para quem quiser aprofundar o tema.
O que é importante dizer aqui é que se o regime das nulidades do Código de Processo Penal não está completamente superado, o mínimo que se pode afirmar é que está fundamentalmente alterado - o que mutatis mutandis é a mesma coisa – sendo acertada a posição doutrinária que enfatiza que o sistema de invalidades processuais deve partir da matriz constitucional.[25]
Indo-se um pouco mais a fundo, vale relembrar que as invalidades processuais estão divididas em irregularidades, nulidades relativas, nulidades absolutas e a inexistência.[26] As irregularidades processuais são aquelas em que eventuais defeitos do ato processual não alcançam gravidade de molde a ensejar sua anulação, sendo passível de correção tanto por provocação das partes ou mesmo diretamente, de ofício, pelo juiz. O ato irregular não afeta a eficácia processual, e, ao mesmo tempo, não causa afronta a direito das partes.[27]
As nulidades relativas, de sua vez, são aquelas em que a deformidade do ato, não o atingindo no núcleo, no silêncio das partes consente com o prosseguimento do processo até o final. Para tanto é necessária a demonstração, por qualquer das partes, do prejuízo sofrido para que o juiz o anule, repetindo-o validamente. Diferentemente, as nulidades absolutas ocorrem quando o defeito do ato o atinge em seu núcleo, tornando-o imprestável. No processual penal, o prejuízo causado pelo ato nulo é presumido pelo legislador, podendo a declaração de nulidade ocorrer por provocação das partes e devendo o juiz conhecê-la de ofício.
Sem embargo, é importante reconhecer que boa parte da doutrina[28] brasileira vê aplicável o princípio da instrumentalidade das formas a todo o regime de nulidades do processo penal: pas de nullité sans grif, identificável no Art. 563 do Código de Processo Penal, dispositivo legal no qual há previsão para declarar-se a nulidade de ato realizado no curso do processo quando for constatado prejuízo para qualquer das partes.[29] Essa interpretação, todavia, não é conforme a Constituição.
No Código de Processo Penal, as fórmulas essenciais e estruturais do processo democrático estão taxativamente elencadas no inciso III do Art. 564[30], do Código de Processo Penal, salvo exceção que apontaremos abaixo, razão pela qual a sua desobediência/deficiência gera nulidade absoluta do ato, não sendo lícito indagar se houve ou não prejuízo para as partes, pois, como já dito acima, o legislador deixou inequívoco que o prejuízo, nesses casos, é presumido.[31]
Focando-nos no tema deste artigo, é bem que se atente à leitura correta da alínea “d” do inciso III do Art. 564 do Código de Processo Penal, que prevê a ocorrência de nulidade absoluta por falta de intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação penal por ele intentada e na intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública. Em outras palavras, a presença do Ministério Público em todos os atos da ação penal por ele intentada é estrutural do processo penal, pois compõe elemento essencial da imparcialidade objetiva e subjetiva do juiz, esta última entendida como a obrigatória desvinculação máxima do juiz, na audiência de instrução criminal, das teses já lançadas no processo, que vêm se construindo desde o inquérito policial, no qual, repita-se, não raramente, o juiz (o mesmo que julgará o processo) já determinou medidas restritivas, tais como buscas e apreensões e prisões.
Vista a mesma questão por outro ângulo, é direito constitucional do acusado de ser processado por juiz efetivamente equidistante, psicológica e hermeneuticamente independente e concretamente imparcial, o que não acontece quando se acumulam na pessoa do juiz as funções de produzir a prova acusatória em lugar do Ministério Público, e, depois, vir a julgar o acusado.
Nesta senda, outra não pode ser a interpretação do Art. 572 do Código de Processo Penal[32] senão conforme a Constituição, em harmonia com o que se viu acima. Isto é, embora o aludido artigo preveja a possibilidade de relativização da nulidade nos casos de ação penal subsidiária da pública, o próprio dispositivo legal esvazia por completo de efeito convalidador quando está em jogo a hipótese prevista na primeira parte da alínea “d” do inciso III do Art. 564, que, diga-se com todas as letras, recebe sua seiva de validade diretamente da Constituição Federal, ou, para ser mais específico, do Estado Democrático de Direito e das garantias ao contraditório e à ampla defesa[33].
Nesse sentido, Tourinho Filho já trilhava o melhor caminho, porquanto, antes da reforma da legislação ocorrida em 2008, já ministrava lição de que a ausência do Ministério Público nos atos essenciais do processo penal, em particular a audiência de instrução e julgamento, causa nulidade de caráter absoluto, nada obstante haja previsão de convalidação para a hipótese em que a ação penal pública seja intentada mediante queixa[34].
A orientação jurisprudencial, no sentido de que a nulidade prevista no Art. 564, III, “d”, do Código de Processo Penal é, em toda a extensão, relativa, dependendo de arguição das partes em tempo oportuno e condicionada à demonstração do prejuízo baseado no princípio pas de nullité sans grif representa lamentável retrocesso para o processo penal. Permitir que juiz, na audiência de instrução e julgamento, ausente o Ministério, embora regularmente intimado para o ato, produza ele próprio e diretamente a prova da acusação, bem assim condicionar o acolhimento da nulidade a eventual insurgência das partes, é desconsiderar a Constituição Federal.
De outro viés, é importante salientar que, da leitura do Art. 212 do Código de Processo Penal, vê-se, inequivocamente, que a ausência completa da figura acusatória torna o ato processual inapelavelmente nulo[35], uma vez que o parágrafo único do Art. 212 do Código de Processo Penal autoriza o juiz a proceder à inquirição de forma complementar, mas nunca a atuar em substituição ao órgão da acusação estabelecido na Constituição Federal.
Por fim, parece-nos que quando o Ministério Público não se fizer presente na audiência de instrução e julgamento, embora regularmente intimado, é dever do juiz remarcar a solenidade para data futura de molde a promover o equilíbrio processual com a presença da acusação e da defesa, não se podendo mais admitir, sob pena de violação grave das estruturas do processo penal no Estado Democrático de Direito, que se enjambrem nos escaninhos da retórica funcionalista as garantias do contraditório e da ampla defesa.
Ainda, não se olvide de que o processo penal não trata de interesses disponíveis e privados, mas sim de interesse púbico. Na esfera penal o que está em jogo é o segundo mais importante direito do ser humano, a sua liberdade, ficando somente atrás do direito à vida.