INTRODUÇÃO
Na esteira das discussões no Congresso Nacional sobre fazer uma “PEC” para rever o entendimento da prisão em segunda instância, o Presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, levantou a possibilidade de se realizar uma Assembleia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição da República.
A respeito dessa afirmação, são cabíveis algumas ponderações:
1º) Há “ambiente constitucional” para a criação de uma nova constituição?
2º) Como se iniciaria esse processo de elaboração da nova constituição?
3º) Quem seriam os parlamentares constituintes?
4º) Como se daria a organização dos trabalhos para filtrar os temas quem entrariam no novo texto constitucional?
As perguntas acima não dizem respeito a meros questionamentos teóricos e puramente acadêmicos. Na verdade, tratam-se de questões de índole prática, visto que constituíram objeto de “forte discussão” por ocasião da elaboração de nossa atual Constituição Federal de 05 de outubro de 1988.
Por isso, reputo indispensável a contextualização histórica e a recordação de alguns “dilemas” e “conflitos” enfrentados pelo grupo de parlamentares responsáveis por discutir e elaborar o texto da nossa atual constituição.
A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE – 1987
Forte clima de desconfiança
Em 1º de fevereiro de 1987, foi instalada a chamada Assembleia Nacional Constituinte com a finalidade de elaborar uma Constituição democrática para o Brasil, após anos sob o regime militar. Todavia, existia “no ar” um clima de muita desconfiança.
Em primeiro lugar, porque a Assembleia Constituinte teria sido fruto de um “compromisso” firmado durante a campanha presidencial de Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito pelo voto indireto.
No entanto, numa ironia do destino, Tancredo morre antes de assumir o cargo. Com a sua morte, assume a Presidência seu vice, José Sarney de Araújo Costa, que havia recém-chegado ao PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
Mas não foi apenas isso.
O grande problema é que, antes de ser vice “da chapa” de Tancredo no PMDB, Sarney chegou a ser Presidente da chapa do outro lado, qual seja a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) – partido político que dava sustentação ao governo militar. Tanto é que, posteriormente, ajudou a fundar o PDS (Partido Democrático Social) sucessor da ARENA. Aliás, há quem diga que Sarney até seria candidato à vice na eleição presidencial 1985 pela chapa do PDS.
No entanto, com a indicação do nome de Paulo Salim Maluf para concorrer ao cargo de Presidente, José Sarney rompe com o PDS e acaba desembarcando “ do outro lado” no PMDB para ser candidato a vice na chapa com Tancredo Neves.
Tancredo vence as eleições, mas falece antes de assumir e, com as rodas da vida, José Sarney se torna o 31º Presidente do Brasil.
Com todo esse ambiente, era inafastável o pensamento da opinião pública de que o Presidente Sarney tinha sua origem e bases ideológicas alinhadas com a ditadura militar. Portanto, tudo isto conspirava para um clima de muita desconfiança no processo de abertura democrática.
Parlamentares constituintes “puros” e legítimos
Outro problema que “tumultuava o ambiente político” era o fato de não terem sido convocadas eleições diretas para eleger os parlamentares que comporiam a Assembleia Nacional Constituinte Originária.
Na verdade, aproveitou-se os parlamentares que já compunham o Congresso Nacional ordinariamente para, também, conferir-lhes os poderes soberanos e extraordinários de uma Assembleia Nacional Constituinte. Por isso, havia um certo desprestígio por entender que a nossa Assembleia Constituinte não seria “legítima” e “pura”.
Dificuldade para organização do início dos trabalhos
Logo no início dos trabalhos na Assembleia Nacional Constituinte, constatou-se um demasiado “espírito libertário” entre os parlamentares, “era proibido proibir”, isto é, todos sentiam-se “titulares do poder” e queriam fazer tudo ao mesmo tempo, sem estabelecer um ponto de partida, um documento base, ou seja, submeter-se a uma disciplina programática.
O Presidente José Sarney – que, diga-se de passagem, era totalmente contrário à existência da Assembleia Nacional Constituinte – constituiu um grupo para a elaboração de um anteprojeto da Constituição Federal chamado “Comissão Afonso Arinos”, com a finalidade de entregar uma Constituição “praticamente pronta” para só restar então a aprovação do Congresso Nacional.
Referida “comissão de notáveis” era composta por várias pessoas, dentre elas, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, o cientista político Bolívar Lamounier, o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre, o escritor Jorge Amado, o jurista Miguel Reale, o sindicalista José Francisco da Silva, o jurista Sepúlveda Pertence (então procurador-geral da República) e o economista Walter Barelli (na época diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese).
Todavia, houve uma forte rejeição dos parlamentares constituintes à adoção dos trabalhos produzidos por aquela comissão e até mesmo uma “faísca de crise institucional”. Noutras palavras, ninguém abria mão de “dar as cartas do baralho”.
Tanto é que o Presidente José Sarney, “sentindo o ambiente político”, sequer enviou o anteprojeto elaborado pela Comissão Afonso Arinos ao Congresso Nacional por temer que tal gesto representasse uma “indevida intromissão” do Poder Executivo na tarefa extraordinária e soberana conferida à Assembleia Nacional Constituinte.
Em suma, a elaboração do texto da nova constituição teve que se iniciar literalmente “do zero”, num ambiente político agitado e nada organizado.
CONCLUSÃO
Uma das características do poder constituinte originário é ser “permanente”. Noutras palavras, “o poder constituinte originário não se esgota com a edição de uma nova constituição, sobrevivendo a ela e fora dela como forma e expressão da liberdade humana, em verdadeira ideia de subsistência”, conforme leciona o Ilustríssimo Professor Pedro Lenza (Direito Constitucional Esquematizado, 23ª ed., 2019).
Com efeito, restará à sociedade refletir sobre a pertinência de se trazer à tona um processo tão complexo e singular como a convocação de uma nova assembleia nacional constituinte, tendo em vista o atual momento político marcado por uma inegável “polarização de forças”.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23ª ed., São Paulo, Saraiva, 2019.