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Fronteiras entre o direito público e o direito privado

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Agenda 28/12/2005 às 00:00

A constitucionalização ou publicização do Direito Civil apenas veio a valorizar o Direito Privado, na medida em que propicia soluções de maior operacionalidade, legitimidade e justiça nas relações contenciosas.

Sumário: Introdução - 1. Origem da Dicotomia Direito Público/Direito Privado - 2. A Crescente Publicização do Direito Privado - 3. A Privatização do Direito Público - 4. Novas Técnicas de Compreensão do Direito - 5. O Interesse Social nas Situações Privadas - 5.1. Contrato - 5.2. Propriedade - 5.3. Família - 6. Conclusão - Referências Bibliográficas

Resumo: Abordagem acerca do Direito Privado contemporâneo e suas relações com o Direito Público. Este trabalho discorre sobre as origens e a evolução histórica da dicotomia Direito Público/Direito Privado, encarando o Código Civil a partir da Constituição e das leis especiais. Aborda a constitucionalização do Direito Privado, especialmente do Direito Civil, perquirindo sobre as razões e fundamentos do fenômeno, a fim de apurar quais os limites entre o Direito Público e o Direito Privado.

Palavras-Chave: Classificação do Direito. Publicização do Direito Privado. Constitucionalização do Direito Civil.


Introdução

O Direito Civil está em crise! Esta expressão, largamente empregada pela doutrina hodierna porém pouco compreendida pelo operário do Direito, suscita uma revisita aos institutos básicos do Direito Privado e uma apreciação de sua eficácia social. As profundas transformações que têm ocorrido no mundo ao longo das últimas décadas, notadamente a derrocada dos regimes de esquerda e o fenômeno da globalização, impuseram uma nova ordem, baseada predominantemente no fator produção de riquezas/consumo. Com isso, o poder econômico passa a exercer influência ainda maior nas estruturas sociais, exigindo do cientista social e político a busca de mecanismos de atenuação do poder.

A intervenção do Estado no domínio econômico e a imposição de limites à vontade do homem são fenômenos presentes desde a segunda metade do Século XIX. Todavia, uma vez que o Código de 1916 inspirou-se no modelo napoleônico de 1804, em que predominavam a autonomia da vontade e o absolutismo do direito de propriedade, há não muito tempo vivíamos sob esse paradigma. A situação só começaria a sofrer alterações mais profundas nas duas últimas décadas, com a edição do Texto de 1988 e o enfoque doutrinário sobre as inter-relações entre Direito Público/Direito Privado. Tal postura, diga-se por amor à verdade, já se encontrava em alguns textos doutrinários, porém de forma ainda incipiente e com baixa receptividade.

A presença de um conteúdo social nas relações privadas é hoje tema de vivo debate nos meios jurídicos. Chegam alguns autores a pressagiar a morte do Direito Civil, que, impregnado de uma funcionalização social, já não poderia existir como disciplina autônoma. Outros sustentam a abolição da dicotomia Direito Público/Direito Privado, ao argumento de que suas inter-relações chegaram a um ponto onde não é possível divisar com clareza os limites entre um e outro.

É fato que o Direito Privado está se impregnando de um conteúdo social, posto que o egoísmo, o individualismo e a patrimonialização, idéias presentes nas raízes do Direito Privado, estão cedendo espaço para novas tendências, dentre as quais se destacam a repersonalização e a funcionalização dos institutos privados. Esse novo modelo, fundado na valorização da pessoa, postula a aplicação de uma principiologia, parte presente no sistema privado, parte gravitando na órbita constitucional. No mundo contemporâneo, a Constituição não tem mais aplicação residual às situações privadas; agora, ela é a fonte em que se abebera o aplicador do Direito.

Não quer isso dizer, porém, tenha o Direito Privado decrescido de importância ou perdido sua principiologia. A chamada constitucionalização ou publicização do Direito Civil apenas veio a valorizar o Direito Privado, na medida em que propicia soluções de maior operacionalidade, legitimidade e justiça nas relações contenciosas. Ao mesmo tempo, vê-se fenômeno inverso, a privatização ou civilização do Direito Público, idéia ainda não sedimentada entre nós porém uma realidade cada vez mais tangível.

O Direito Privado convive com o Direito Público. Pode-se dizer que suas fronteiras não sejam tão claras como outrora. Um e outro ramo se inter-relacionam e um empresta ao outro meios para a valoração das situações jurídicas. O Direito Privado socorre-se do Estado para funcionalizar seus institutos; o Estado vale-se da norma civil para executar suas atribuições. Mas cada um se mantém como um sistema de normas e princípios, um e outro conservando seu sítio natural.


1. Origem da Dicotomia Direito Público/Direito Privado

O ordenamento jurídico destina-se ao resguardo dos valores eleitos pela sociedade. Disso decorre a asserção, aceita pela filosofia, de que o fim último da norma é a realização de um determinado interesse, entendidos como tais os bens e as situações de fato úteis ao homem e à sociedade. Assim, a norma que coíbe o esbulho protege o valor posse, a regra que permite a execução dos bens do devedor assegura o valor crédito e a proibição de infidelidade no casamento resguarda o valor representado pela honra do cônjuge. De igual sorte, a norma que obriga o poder público a licitar nas compras visa ao resguardo do patrimônio público. A norma jurídica, portanto, quer provenha do Estado (lei) quer se forme no seio da sociedade (costumes), dirige-se à consecução dos objetivos eleitos pelo tecido social.

A clássica divisão do Direito em dois grandes ramos, o Direito Público e o Direito Privado, tem origem romana e está assentada na natureza daqueles valores. Segundo conhecida passagem do Digesto (533 d.C), publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singolorum utilitatem. Ou seja, direito público é aquele que diz respeito ao estado ou coisa romana; privado, às utilidades dos particulares. O acento distintivo repousa, pois, na natureza dos valores: de um lado, o Direito protege os valores que interessam à comunidade abstratamente considerada; doutro, tutela os interesses dos particulares.

Discorrendo sobre o tema e inspirado nas idéias de HANNAH ARENDT, TÉRCIO FERRAZ JR. explica as origens da dicotomia Direito Público/Direito Privado, vinculando-a à estrutura sócio-econômica da civilização romana. Segundo o renomado professor, os romanos conheceram dois campos de poder: a esfera privada e a esfera pública. A primeira compreendia o terreno das necessidades e envolvia a atividade do homem voltada para sua sobrevivência, como a produção de alimentos v.g. Tal atividade era o labor e se exercia na própria casa. Ao lado dessa atividade, o homem livre, cidadão, exercia uma outra, chamada ação, que consistia no encontro com outros homens, na discussão de temas relevantes, troca de experiências e adoção de estratégias comuns. Essa atividade se exercia na polis ou cidade, donde a expressão animal político [01].

Partindo de tais premissas, afirma-se que aquela passagem do Digesto, ao estremar uma e outra esferas de interesse, tenha reputado como privadas as relações que se estabeleciam no seio doméstico, como as referentes à família, às sucessões e à propriedade. Todas essas situações compreendem-se no terreno da pessoa natural. O vocábulo privus, designando aquilo que é próprio, vai aplicar-se às relações travadas pela pessoa em seu âmbito de poder. Logo, o Direito Privado é aquele que regulamenta o papel da pessoa nessas relações.

O Direito Privado romano, com efeito, está centrado na família, na propriedade, no contrato e nas sucessões. Todos esses fenômenos, minudentemente regulamentados após a codificação de Justiniano, fundam-se no princípio da autonomia da vontade, de que se extrai a idéia de liberdade e a regra da não ingerência do poder público. De fato, o individualismo foi uma constante entre os romanos. Em relação à família, destaca-se o poder absoluto do pater, senhor de vida e morte sobre a mulher e os filhos. A propriedade, de seu turno, nasce do altar doméstico e das sepulturas, ao redor dos quais o romano passa a exercer poderes exclusivos, perpétuos e absolutos, inderrogáveis ao arbítrio do Estado. No âmbito dos contratos impera, além da autonomia das vontades e do pacta sunt servanda, a regra da intangibilidade das condições avençadas. E, finalmente, nas sucessões, vigem normas como a que permite a livre deserdação.

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Igual fenômeno não se passa com o Direito Público daqueles tempos. Aqui já não se fala em liberdade, autonomia ou poder individual. Cuida-se, antes, do jus imperii, da esfera de poder do governo ou da polis, cuja vontade é capaz de se impor ao interesse particular. É o que se vê, v.g., na lei que veda a autotutela; na norma que impõe o pagamento de tributos e no processo formular, a cuja sentença devem as partes obediência. O princípio fundante de tais situações é o da subordinação, que traz consigo a idéia da prevalência dos interesses de todos sobre a vontade individual. Parte-se da premissa de que as normas impostas ao particular devem ser obedecidas a bem da paz social, valor que, pertencendo a todos indistintamente, é superior ao interesse de um só indivíduo. Disso decorre a regra, constante no Digesto, segundo a qual jus publicum privatorum pactis mutari non potest (não pode o direito público ser alterado pelas convenções particulares).

Se o sistema romano percebia com certa clareza a distinção entre a esfera pública e o domínio particular, igual nitidez não se verificará no período medievo. As incursões bárbaras forjarão uma nova condição política, cujo reflexo mais forte se dará na estrutura de produção. Isso é particularmente evidente na propriedade imobiliária, que, na prática, desaparece e dá lugar a um sistema baseado na idéia das concessões. Ninguém, senão o rei, é agora senhor das terras. Mas o rei pode conceder sua exploração a um duque, que a concederá a um marquês, que, por sua vez, a entregará a um conde, até chegar no senhor feudal, à semelhança de uma enfiteuse. Essa superposição de propriedades já não permite diferençar com segurança o público do particular. Essa situação é agravada pela absoluta incapacidade do rei de debelar os invasores, o que forçará as várias camadas sociais a defender-se por sua própria conta.

A Revolução Francesa é que fará ressurgir com vigor a dicotomia. Insurgindo-se contra o absolutismo, a classe burguesa retoma de certa forma o modelo romano ao estremar a esfera pública e o terreno privado. Essa época assinala o predomínio da liberdade de iniciativa, o princípio da igualdade formal de todos os homens e a idéia da não ingerência do Estado nos negócios particulares. O receio de um retrocesso à condição anterior faz plasmar um sistema em que o poder público não intervém senão em hipótese restritas, como para assegurar a paz social, por exemplo. É o triunfo da ideologia liberalista e do laissez faire. Contratos, família e propriedade, disciplinados no Código Napoleão de 1804, constituem o tríplice objeto de incidência do Direito Privado, agora sustentado no binômio igualdade/liberdade: uma vez que todos os homens nascem livres e iguais, então cada um é dotado de igual talento para buscar o que é melhor para si. Respeite-se, pois, a vontade de cada um.

O modelo napoleônico constitui a fonte em que se abeberaram os sistemas romano-germânicos, como é o caso dos Estados da Europa continental e das nações latino-americanas. Esses sistemas procuraram, de um lado, garantir ampla esfera de ação ao particular e, de outro, limitar o raio de ingerência do Estado. No caso do Brasil, o direito privado dos Séculos XIX e XX compreendeu, basicamente, a família, a propriedade, os contratos e a empresa, disciplinas marcadas por forte matiz individualista e despidas de qualquer comprometimento social. No que toca à legislação civil, vigeu até 2003 o Código de 1916, cujo conteúdo foi concebido nos idos de 1890; a disciplina empresarial, de sua parte, achava-se lastreada no velho Código Comercial de 1850, substancialmente derrogado em 2003, mas ainda em vigor.

A larga vigência temporal daqueles diplomas legislativos suscita a idéia de que o Código Civil, assim como a lei comercial, constituiriam os sistemas em torno dos quais orbitaria o direito privado. Essa noção implica em insular os Códigos, imunizando-os à incidência dos princípios de Direito Público. Esse raciocínio esteve entre nós no passado, mas hoje já não se sustenta, pois as fronteiras entre um e outro ramo do direito apresentam-se permeáveis o bastante para afastar a propalada completude dos estatutos privados. Nem os códigos são auto-suficientes nem a norma pública, notadamente a constitucional, deve ser afastada da interpretação das situações particulares.

Hoje não é possível nem razoável conceber a idéia de antagonismo entre Direito Público e Direito Privado, compartimentalizando-os. A classificação ainda permanece e se justifica. O Direito é uma ciência e, como tal, precisa ser estudado em suas várias manifestações. Para PAULO NADER, a distinção entre o Direito Público e o Direito Privado é útil no plano didático e benéfica do ponto de vista prático, pois favorece a pesquisa, o aperfeiçoamento e a sistematização de princípios de um gênero e outro [02]. Assim, é válido buscar critérios de distinção, mas essa tarefa, advirta-se, deve ser empreendida afastando-se duas falsas premissas: a idéia da contraposição entre aqueles ramos do direito e a noção de completude do Código Civil.

Segundo MIGUEL REALE, existem dois fatores a distinguir o Direito Público do Direito Privado. O primeiro leva em conta o conteúdo da norma; o outro atenta ao aspecto formal da relação jurídica. Logo, considerando seu conteúdo, as normas privadas são aquelas que regulamentam interesses particulares, enquanto as públicas são aquelas que visam ao interesse geral. No tocante ao aspecto formal, se a relação é de coordenação [03], tem-se Direito Privado; se a relação é de subordinação, trata-se do Direito Público [04]. A norma civil pertence ao ramo do Direito Privado, pois, em relação ao contrato, prevalece o interesse das partes e a relação se estabelece sem grau de subordinação entre elas. Já a norma tributária pertence ao Direito Público, não só porque tutela um interesse geral, consistente na arrecadação e distribuição de riquezas para a coletividade, como também porque implica uma relação de subordinação entre o poder público e o particular, consistente no imperium.

Sem embargo de tais distinções e da validade de estremar um e outro ramo do direito, é certo que o Direito Público vem ganhando espaço no âmbito das relações privadas, a ponto de hoje falar-se no fenômeno da publicização do Direito Civil. O fenômeno ocorre da inserção, no plano da norma constitucional, de situações antes restringidas à órbita da lei ordinária, como se dava com o contrato, a família, a propriedade e a empresa. Tais institutos não deixaram seu sítio natural, porque conservam um conteúdo predominantemente privatista, porém vêm sendo gradativamente atraídos pela norma constitucional. Trata-se de uma tendência visível em nível mundial e saber por que e como isso tem ocorrido é tarefa que se impõe ao estudioso do direito.


2. A Crescente Publicização do Direito Privado

A idéia de completude, como virtude inerente às codificações em geral, mostrou-se uma inviabilidade histórica. Sabe-se que a era das codificações, que sucedeu à queda dos regimes ditatoriais na Europa, assinala uma evolução no campo da técnica jurídica, pois representa uma forma de delimitação ao arbítrio estatal. A queda desses regimes é marcada pelo advento do constitucionalismo, uma técnica destinada a coligir, num texto político, os direitos fundamentais do homem, máxime a propriedade e o direito de livre contratar, conferindo assim ao indivíduo grande raio de liberdade. Limita-se, desta forma, a atuação do Estado.

Essa técnica não teve outro escopo senão o de impedir o retorno ao regime absolutista. A Revolução Francesa abre o caminho para as codificações, as quais culminaram por impregnar os sistemas ocidentais de preceitos, regras e instrumentos que hoje não têm o menor sentido e aplicabilidade prática, embora assimilados por boa parte da cultura jurídica. As codificações, empreendidas em consonância com o liberalismo, fundam-se nos ideais da igualdade e da liberdade, reservando ao Estado o papel de simples fiscalizador e garantidor da ordem, não sendo outro o sentido da expressão Estado gendarme. Como anota PAULO ADIB CASSEB, segundo essa concepção, a atividade privada é exercida livremente em matéria econômica e a liberdade de indústria e comércio, que só sofrerão restrições oriundas da lei e das normas que garantem os direitos individuais, proíbe o Estado e seus órgãos de intervirem na concorrência industrial e comercial [05].

O Código Austríaco, por exemplo, publicado em 1810, vedava a interpretação não literal de seus enunciados, mostrando-se coerente com o modelo napoleônico de 1804, informado pela regra in claris cessat interpretatio. Um e outro Código pretendiam-se auto-suficientes e centro regulador da vida do ser humano, razão por que valorizaram sobremodo a liberdade, a literalidade e o formalismo. Nesse modelo legislativo egocêntrico, idéias como a da autonomia da vontade, da propriedade absoluta e do casamento dirigido pelo marido são erigidas ao estado de princípios do direito privado e, em nome de uma suposta igualdade entre os homens e de uma pretensa segurança nas relações jurídicas, toleram-se situações iníquas.

Até pouco tempo atrás vigia entre nós o Código Civil publicado em 1916 e elaborado nos estertores do Século XIX. Poucos estatutos jurídicos, é bem verdade, gozaram de vida tão longeva, a ponto de assistirem a duas viradas de século e sobreviverem a seis textos constitucionais. Mas, concebido numa época em que o liberalismo, embora deformado, lavrava infrene na cultura latino-americana, o Código de 1916 foi inspirar-se no modelo napoleônico, centrado no paradigma da completude, segurança jurídica e exegese estreita.

Decorrência disso é que uma abordagem precipitada do sistema civil positivo fez-nos crer no Código como centro do sistema privado, ao redor do qual gravitariam outras normas jurídicas só aplicáveis nos casos de lacuna ou antinomia. Logo, a idéia de que o contrato faz lei entre as partes, o aforismo de que o combinado não é caro, o princípio de que a propriedade é um direito absoluto, levados à condição de dogma, faziam parte do universo cultural de não escassas obras de Direito Civil do Século XX.

A noção do Código como centro nevrálgico do Direito Civil começa a ruir em meados do Século XIX, quando vêm à tona os fenômenos da constitucionalização e da publicização das relações privadas, a teoria do abuso do direito e a concepção social da propriedade. É o que se vê, por exemplo, com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar, de 1919. Ambas disciplinaram o direito de propriedade, exigindo-lhe uma função social. Essa nova postura rompe com o paradigma anterior, pois, ao qualificar um direito individual, exigindo-lhe uma funcionalização, está a permitir a ingerência do Estado nas situações privadas.

Tal concepção é um sintoma da decadência do Estado burguês. O Século XIX assinala o aparecimento do Estado Social, que nasce da convergência de uma série de fatores políticos, sociais e econômicos. Os estamentos dominantes, ao optarem pelo modelo liberal e conduzirem NAPOLEÃO ao poder, logram assegurar seus interesses, mas fracassam em manter a ordem. A grande massa da população, iludida pelo romantismo de 1789 e sentindo-se traída pelos burgueses, a quem apoiara na queda da Bastilha, clama por reformas e exige a ação do Estado. Delineia-se um quadro preocupante: de um lado, tem-se o aperfeiçoamento dos métodos de produção, com conseqüente aumento da riqueza; doutro, assiste-se à proliferação da miséria.

Para MICHELE GIORGIANNI, um dos principais fatores das transformações por que passou o Direito Privado no Século XIX é o advento da idéia moderna de Estado, segundo a qual a este devem ser atribuídas funções antes deixadas a cargo do particular. De fato, esta evolução corresponde exatamente às idéias filosóficas do Século XIX: o criticismo Kantiano, o idealismo, o romantismo, e o historicismo dão novo valor ao ‘grupo’, à ‘sociedade’, à ‘nação’, ao Estado, acabando por atribuir a este último a função de equilibrar a ‘liberdade’ dos indivíduos com a ‘necessidade’ da sociedade [06].

O Século XIX é, com efeito, particularmente caro ao historiador, dada a multiplicidade de eventos sociais e econômicos que nele se verificam. A Revolução Industrial gera a urbanização e a expansão da economia, mas traz consigo graves problemas, como a concentração de renda. Criam-se postos de trabalho, mas o trabalho é mal remunerado e exige esforços ingentes do operário [07]. Ou seja, a ordem pós-revolucionária satisfaz a burguesia, que enriquece, porém descontenta a grande massa da população, que vive precariamente. Movimentos sociais não tardarão a surgir, como as rebeliões irrompidas no sul da França em 1831, na Inglaterra em 1840 e na Boêmia em 1844.

No âmbito da família, importantes movimentos reclamam maior participação no contexto político e na administração do lar. Em 1840, aparece nos Estados Unidos a Equal Rigths Association. Entidades semelhantes surgem em 1859 na Rússia e em 1865 na Alemanha. Em 1866, STUART MILL, o filósofo, manifesta-se a favor do voto feminino. Digno de nota, porém, em razão da repercussão que obteve, foi a greve das operárias têxteis de Nova Iorque, no ano de 1857, a exigir a igualdade de condições com os operários. O modelo napoleônico, portanto, assentado na família de orientação marital, já não se sustenta senão com pesadas críticas. No Século XIX, Suécia e Nova Zelândia estendem às mulheres o direito de voto.

O modelo liberal está sob xeque. Despontam na Europa teorias como a da comunização, nacionalização, democratização e humanização dos meios de produção, todas elas tendo como pano de fundo a propriedade e defendendo uma mesma idéia: a intervenção do Estado nas relações privadas. Parte-se da constatação de que os conceitos de igualdade e liberdade, tônicas do movimento de 1789, não devem ser vistos em sua acepção literal, como idéias absolutas. Os homens não nascem iguais nem vivem em condições de igualdade. Uns, por possuírem maior inteligência ou recursos materiais, estão em posição privilegiada em relação a outros, dotados de menor tirocínio ou carentes de recursos materiais. Para uns, as oportunidades de crescer são maiores; para outros, escassas. Uns podem investir e especular; outros contentam-se com o papel de meros coadjuvantes na produção de riquezas.

Se os homens são materialmente desiguais, a liberdade nas relações privadas não pode ser levada ao extremo; seu excesso pode gerar iniqüidades, especialmente no contrato, em que uma das partes, materialmente mais forte, aproveita-se da fraqueza e sujeição alheia para captar-lhe a vontade. É razoável, portanto, que o sistema trate as pessoas como desiguais e, nas relações privadas, proteja a parte mais fraca a fim de propiciar uma situação de equilíbrio entre elas e impedir a prevalência de interesses unilaterais. O ente encarregado de impor esse tratamento é o Estado; o instrumento para a consecução desse objetivo é o Direito. A releitura dos conceitos de liberdade e igualdade projeta o Estado Social, mais comprometido com a coletividade, em reação ao Estado Burguês, aparelhado para atender aos interesses de uma minoria.

Como informa PAULO BONAVIDES, o velho liberalismo, na estreiteza de sua formulação habitual, não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise. A liberdade política como liberdade restrita era inoperante. Não dava nenhuma solução às contradições sociais, mormente daqueles que se achavam à margem da vida, desapossados de quase todos os bens [08].

Mercê desse fenômeno, ganham força o dirigismo contratual, a função social do contrato e a funcionalização do direito de propriedade. As titularidades jurídicas já não são vistas apenas como bens de interesse individual, porém como detentoras de uma potencialidade social. A propriedade já não é mais direito absoluto e perpétuo; segue como um direito individual, mas sem esquecer os anseios coletivos. O contrato, fundado na autonomia da vontade, segue obrigando as partes, porém submetido ao princípio da supremacia da ordem pública, relatividade e boa-fé. A mulher casada já não é simples coadjutora da administração familiar; passa a exercer papel de maior relevo.

A visão social das relações privadas impõe nova postura do poder público. Se o Estado é agora garantidor do equilíbrio na ordem privada, então alguns institutos básicos do direito particular devem ser disciplinados pela Constituição, que é o instrumento delimitador e regulador das funções estatais. Disso decorre a previsão, em nível constitucional, de situações antes reguladas apenas pelo Direito Privado. Contrato, propriedade e família e, em menor grau, a empresa, são atraídos para a órbita constitucional. O Direito Civil está agora constitucionalizado, o que torna mais tênue os limites entre norma pública e norma privada. Como se viu acima, a norma privada romana destinava-se à disciplina dos interesses individuais. Agora, os mesmos interesses são também disciplinados pela norma pública.

Não se trata de negar o caráter preponderantemente privado das titularidades, como o contrato, a propriedade, a família e a empresa. Todas elas se conservam como institutos de Direito Privado. Mas, levadas à norma constitucional, impregnam-se de caráter público. Sua publicização qualifica-as como portadoras de uma função social, porque o Estado, frente ao enfraquecimento do liberalismo, torna-se um Estado de social-democracia. O egoísmo, o individualismo, o afã de poder e riqueza, cedem diante de um interesse maior, representado pela ordem social. Nascem o que se convencionou chamar direitos de segunda geração, oriundos da intervenção do Estado nas relações sociais.

Não é verdade, ademais, que o Código Civil venha sendo substituído pela Constituição. Pensar assim é desvalorizar um e outro ramo do Direito. O Código conserva seu papel e espaço, disciplinando a essência das relações jurídicas privadas. Mas estas, agora, tornaram-se qualificadas pela norma pública, circunstância que, a rigor, não delimita a vontade, antes a valoriza, emprestando-lhe relevo maior, na medida em cumpre agora dois objetivos: satisfazer os particulares e preservar o interesse social. No passado, o operário trabalhava apenas para pane lucrando; agora, trabalha para preservar a dignidade.

É inegável, porém, tenha o Código perdido sua função de centro nevrálgico do sistema. Fora da Constituição, vêem-se os microssistemas, núcleos normativos sob cuja égide encontram-se várias situações privadas. É o caso do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), da locação de prédios urbanos (Lei 8245/91) e da titularidade intelectual (Lei 9610/98). Recuando no tempo, vê-se a disciplina dos condomínios edilícios (Lei 4591/64). Os microssistemas não afastam o Código Civil, mas com ele convivem, podendo ambos, microssistema e Código Civil, ser chamados a solucionar uma mesma situação jurídica. Como pondera TEPEDINO, configura-se, de um lado, o direito comum, disciplinado pelo Código que regula, sob a velha ótica subjetivista, as situações jurídicas em geral; e, de outro, o direito especial, cada vez mais relevante e robusto, que retrata a intervenção do legislador em uma nova realidade econômica e política [09].

Constituição, Código Civil e microssistema não se excluem; antes, convivem e permitem a unificação do sistema.

Sobre o autor
Roberto Wagner Marquesi

mestre em Direito, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Civil da Universidade Estadual de Londrina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUESI, Roberto Wagner. Fronteiras entre o direito público e o direito privado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 908, 28 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7788. Acesso em: 23 dez. 2024.

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