4. “DESCUMPRIMENTO” DE PRECEITO FUNDAMENTAL POR ATO DO PODER PÚBLICO
A inconstitucionalidade objeto de ADIN é a ausência de compatibilidade da Constituição com as normas infraconstitucionais que regulam diretamente assuntos constitucionais, razão pela qual, afirma-se que é pressuposto de controle de constitucionalidade que a norma viole a Constituição de forma primária ou imediata.
Em princípio, na comparação entre o descumprimento do preceito fundamental e o controle de constitucionalidade da ADIN, cabe apontar duas peculiaridades da ADPF, quais sejam: 1) o parâmetro de controle é restrito aos preceitos fundamentais, conforme já foi apresentado; 2) presta-se à apreciação de atos do poder público.
Assim, o descumprimento tutelado pela ADPF apenas será verificado quando uma ação ou omissão estatal violar preceito fundamental. Ora, em contraposição à ADIN cujo parâmetro de controle é toda a Constituição, na ADPF este espectro estará cingido aos preceitos fundamentais.
Além do parâmetro, outro ponto de especial relevância é o objeto de controle, isso porque a ADPF foi prevista na Constituição Federal de 1988 como uma ação de defesa das normas essências à manutenção da sociedade. No entanto, o legislador infraconstitucional restringiu o objeto deste importante instituto, limitando-o ao controle dos atos do Poder Público e perdendo a oportunidade de abarcar os atos privados inerentes a eficácia horizontal das normas constitucionais.
A Lei nº. 9.882/99 apenas menciona no caput de seu art. 1º, a finalidade da ADPF de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental decorrente de ato do Poder Público, sem, no entanto, delimitar quais seriam esses atos.
A atividade de delimitar o campo de aplicação da ADPF coube à doutrina e de forma, altamente reducionista, à jurisprudência da Suprema Corte brasileira.
Em que pese tratarmos mais detidamente, no próximo tópico, acerca das limitações interpretativas do STF à importantíssima ADPF, cabe esclarecer em que consiste ato do Poder Público.
Poder Público é qualquer órgão ou entidade dos Poderes Legislativo e Executivo dos entes políticos, bem como o Poder Judiciário da União, dos Estados-Membros e do Distrito-Federal. Por sua vez, o ato do Poder Público suscitado na lei regulamentadora da ADPF refere-se aos quatro entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e pode ser traduzido como: 1) lei ou ato normativo; 2) ato concreto do poder público; 3) atos secundários de disciplina da norma constitucional; 4) direito pré-constitucional, e 5) as omissões controláveis.
Ocorre que o ato do Poder Público previsto na Lei nº. 9.882/99 tem seu âmbito frequentemente reduzido pelo STF e o direito pátrio tem perdido a oportunidade de utilizar o instituto da ADPF na potencialidade que poderia ter na defesa dos preceitos fundamentais.
Uma dessas restrições da jurisprudência do Supremo será objeto de análise e crítica no tópico seguintes, qual seja, o controle judicial dos atos políticos, tendo em conta a relevância do tema para o direito pátrio.
5. CONTROLE JUDICIAL DE ATOS POLÍTICOS
A doutrina majoritária[17] há muito tem rechaçado o controle judicial dos atos políticos e interna corporis sob o argumento central de que deveria ser preservada a separação dos poderes. Esta concepção decorre de uma adesão à doutrina francesa sem a devida observância da realidade jurisdicional brasileira, pois, diferentemente da França, onde desde a Revolução Francesa a jurisdição é dual, ou seja, existe a jurisdição comum e a jurisdição administrativa, esta última específica para as contendas envolvendo o Estado, no Brasil adotou-se a jurisdição una, em que, independente das partes do processo, o julgamento caberá ao Poder Judiciário[18].
Não bastasse o equívoco genealógico do posicionamento majoritário, a Constituição brasileira de 1988 consagrou o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional[19], razão pela qual qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo pode ser levada à apreciação do Poder Judiciário. Assim, todos os atos do Poder Público, nestes já considerados os atos políticos e os atos interna corporis, estariam sujeitos ao controle jurisdicional.
Partindo-se dessa premissa, necessária a análise acerca da possibilidade do controle jurisdicional dos atos políticos propriamente ditos e dos atos políticos interna corporis.
Neste ponto, cabe aclarar que não se objetiva traçar as diferenças entre atos políticos e o que entendemos ser uma de suas espécies, os atos intena corporis[20]. Estes últimos entendidos como atos de organização e economia do Poder Legislativo e Judiciário e de órgãos colegiados em geral, dentre os quais: a eleição dos membros do órgão diretivo, verificação de poderes e incompatibilidade de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento do órgão legislativo, elaboração de regimento, constituição de comissões, organização de serviços auxiliares etc.) e a valoração das votações[21]. A doutrina apresenta como requisitos distintivo dos atos interna corporis em relação aos atos políticos e também como razões para a sua não apreciação pelo Poder Judiciário, os seguintes fundamentos: 1) o fato de serem disciplinados pelo regimento interno da casa legislativa ou do órgão colegiado; 2) a restrição dos efeitos do ato aos membros do órgão decisório[22], e 3) a possibilidade de serem praticados por órgãos administrativos.
Apesar dos referidos fundamentos, os atos políticos e os atos interna corporis do Poder Público apresentam uma relevante intercepção, que se insere, deveras, no objeto do presente estudo, uma vez que os atos interna corporis despidos da função administrativa são verdadeiros atos políticos, já quanto aos demais requisitos distintivos, entende-se em consonância com a doutrina de Wilson Alves de Souza que: 1) a irregularidade na aplicação do regimento interno também enseja o controle jurisdicional, e 2) existe a possibilidade de ameaça de lesão ou lesão a direito subjetivo de terceiros ou dos próprios membros do órgão colegiado, o que seria o bastante a ensejar o controle do Poder Judiciário[23].
Delineado que o objeto desse estudo são os atos políticos, mesmo quando praticados no seio de órgãos colegiados, estes são compreendidos como os atos de competência da alta cúpula dos poderes constituídos, que decorrem de diretrizes ideológicas adotadas pelo Estado em um dado momento. Tratam-se de atribuições expressamente estabelecidas na Constituição para os agentes estatais e que não apresentam aspecto de ato administrativo[24]. São exemplos de atos políticos: a sanção de lei, o veto jurídico, a iniciativa de lei, a decretação de estado de defesa e de estado de sítio, os atos de deliberação do Congresso Nacional, dentre outros.
Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro pontifica que o ato político
implica uma atividade de ordem superior referida à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e em sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado, a assinalar as diretrizes para as outras funções, buscando a unidade da soberania estatal[25].
Ora, os atos políticos estão relacionados à conveniência e à oportunidade política dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, razão pela qual são atos praticados pelo Poder Público.
Por sua vez, o objeto da ADPF é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, portanto, sendo os atos políticos espécies desses, a ação constitucional deveria prestar-se a seu controle. No entanto, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento por afastar esses atos de sua sindicabilidade, por meio de ADPF.
Dirley da Cunha Jr. pondera que a Suprema Corte brasileira perdeu importante oportunidade de garantir a normatividade plena à Constituição Federal de 1988 e afastá-la da sina de se tornar uma Constituição nominal ou de “fachada”, conforme a classificação de Carl Loewenstein[26].
A jurisprudência do Supremo restou consolidada logo na ADPF nº. 01-RJ movida pelo Partido Comunista do Brasil – PcdoB em face do Prefeito do Município do Rio de Janeiro, uma vez que este não motivara o ato de veto de uma lei que havia elevado o valor do IPTU para o exercício de 2000. Ocorre que, embora a Constituição estabeleça que o veto político do chefe do Poder Executivo deva ser motivado (Art. 66, §1º, da CF/88), o STF decidiu por não conhecer a ADPF, uma vez que se tratava de ato político[27].
Este episódio constitui ofensa direta ao princípio da inafastabilidade do controle pelo Poder Judiciário, direito fundamental constante do art. 5º, inciso XXXV, da CF/88. Acredita-se que este entendimento deve ser superado à semelhança do já admitido controle judicial dos atos administrativos discricionários, ou seja, aqueles em que a Administração Pública atua por razões de conveniência e oportunidade.
A aplicação desse entendimento aos atos administrativos deve ser estendida aos atos políticos até porque se tratam de espécies de atos do Poder Público. Por esta razão, ambos têm como requisitos necessários: forma, competência, objeto, motivo e finalidade. O Poder Judiciário, quanto aos atos administrativos discricionários, tem admitido a análise da legalidade desses requisitos, o que se defende, mutatis mutandis, deva também ser aplicado aos atos políticos.
Assim, episódios como o da ADPF nº. 01-RJ deveriam ser admitidos e a análise meritória circunscrever-se à análise dos requisitos forma, competência, objeto, motivo e finalidade. Em especial, na hipótese do referido julgamento, a ação constitucional deveria ter sido conhecida e julgada procedente, em virtude da ausência do atendimento ao requisito constitucional motivo.
Situações semelhantes têm chegado à corte Suprema e têm recebido o mesmo tratamento da ADPF nº. 01-RJ. Neste sentido, pode-se mencionar a ADPF nº. 372-DF, de Relatoria da Ministra Rosa Weber, ajuizada pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil - Atricon contra o veto total da Presidência da República ao Projeto de Lei do Senado 274/2015, que versava sobre a aposentadoria compulsória dos servidores efetivos e vitalícios aos 75 (setenta e cinco) anos de idade[28]. Um dos motivos apresentados pela ministra para não conhecer a ADPF foi a inadequação do objeto, uma vez que não se subsome ao requisito legal do art. 1ª, caput, da Lei nº. 9.882/99, qual seja, “ato do Poder Público”, tratando-se de um ato político, que, conforme os fundamentos da decisão monocrática, ainda poderia ser objeto de rejeição do veto pelo Congresso Nacional, o que aliás acabou por se ultimar, dando origem à Lei Complementar nº. 152/2015.
Episódio semelhante aconteceu na ADPF nº. 73, quando o Ministro Eros Grau não conheceu da ação, uma vez que impugnava veto parcial do Presidente da República oposto a Lei nº. 10.934/2004, Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2005[29].
A questão da apreciação de atos políticos pelo Poder Judiciário reside, sobretudo, na proteção aos preceitos fundamentais. Esta possibilidade viria a sedimentar o entendimento de que a finalidade de evitar ou reparar a lesão a preceitos fundamentais está acima da grande maioria dos atos que possam ser praticados pelo Poder Público.
O controle judicial dos atos políticos pode ser dividido em três correntes com entendimentos diversos, quais sejam: primeiro, o atual entendimento do STF, segundo o qual os atos de natureza política não podem ser sindicados; segundo, a posição da doutrina que admite que alguns atos políticos estariam sujeitos ao controle do Poder Judiciário e outros estariam apenas relacionados à conveniência e oportunidade política do Poder responsável[30] e, em terceiro lugar, o posicionamento que aderimos, segundo o qual, todo e qualquer ato político pode ser sindicado, com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental.
Ora, a constituição é a lei fundamental do Estado e os preceitos fundamentais lhe emprestam o espírito, ou seja, são as normas indispensáveis à conservação jurídica e política da ordem constitucional, razão pela qual esses preceitos devem prevalecer em face de qualquer ato do Estado, quando atentem contra os requisitos de formação do ato ou possam ser adotadas medidas menos gravosas ou mais benéficas para a sociedade.