IV. À GUISA DE CONCLUSÃO
Seguindo a natureza cambiante de tudo quanto existe no Universo (mundo das coisas, dos valores e das idéias), o Direito do Trabalho evolui ao longo das décadas. Admitir essa evolução é se render às evidências dos tempos; negá-la, tencionando reproduzir "ad eternum" um determinado modelo histórico, é render-se à cegueira ideológica.
A letra da lei jamais será porto seguro para a investigação dos princípios. Mesmo que não sofra variações evidentes, pode ser imantada com novos princípios, hauridos de uma nova Lei Fundamental (caso brasileiro) ou da própria experiência com a aplicação da lei (autopoiese do sistema jurídico). Há que buscar o seu espírito.
A evolução do Direito do Trabalho ― de suas regras, institutos e jurisprudências ― reflete as transformações que a sua malha principiológica experimenta paulatinamente.
Numa leitura atualizada, o princípio da proteção deixa de ser um borralho paternalista, afirmando-se como "ratio" axiológica que deita raízes na primazia da dignidade humana e se rivaliza com o princípio da salvaguarda dos interesses de gestão (conquanto esse se subordine àquele nos quadros mais agudos de colisão). Somente a existência desse último explica a possibilidade de dispensa de empregados estáveis por motivos técnicos ou econômico-financeiros (artigo 165, caput, da CLT), o exercício do "jus variandi" e a plácida constitucionalidade das sucessivas reformas trabalhistas que precarizam circunstancialmente os contratos de trabalho (p. ex., os contratos por prazo determinado, a tempo parcial, o trabalho temporário e ― fora do Brasil ― a comissão de serviços e o "job sharing"). Obtém-se, com isso, um edifício dogmático mais coerente e democrático, sem perder de vista a dignidade da pessoa trabalhadora e as suas concreções nos planos da interpretação, da hierarquia de fontes (dinâmica) e da estabilidade do patrimônio jurídico-laboral (condição mais benéfica).
No mesmo encalço, o princípio da primazia da realidade deve se imiscuir na dimensão do pactuado, independentemente da efetiva execução de certa atividade, contemporizando com a tipicidade dos contratos de trabalho (determinada pela sua função social) e com a profusão dos instrumentos de consenso no Direito das Obrigações da sociedade pós-industrial. Aplicar-se-á, portanto, aos pré-contratos de trabalho como aos contratos de trabalho de execução deficiente, atraindo, em ambos os casos, a capa tuitiva da legislação trabalhista (no que couber).
De outra parte, impende reconhecer um princípio bipolar de autotutela laboral e desenvolvê-lo em todas as suas manifestações (o que pressupõe, em relação ao empregador, justificar axiologicamente o exercício do poder disciplinar e investigar os seus limites).
Já os princípios da boa-fé e da razoabilidade não têm especificidade juslaboral, conquanto relevem para dirimir dissídios concretos (individuais e coletivos). Nem por isso requerem construção teórica circunscrita aos escaninhos da Ciência do Direito do Trabalho.
Saber assimilar as novas texturas dos princípios gerais do Direito do Trabalho ― e, para além disso, testemunhar com serenidade a gestação dos novos princípios ― é a pedra de toque para a interpretação e a aplicação competente e humanizadora do arcabouço legislativo em vigor. O Direito é, sim, para o Homem; mas, tal como ele, é também, a um tempo, autor e seguidor dos caminhos do Mundo.
V. BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
01 Cfr., no Brasil, Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho, trad. Wagner D. Giglio, 4ª tiragem, São Paulo, LTr, 1996, passim.
02 Cfr. Américo Plá Rodriguez, op.cit., p.258: "Em outros casos, o princípio da racionalidade atua como obstáculo, como limite, como freio de certas faculdades cuja amplitude pode prestar-se à arbitrariedade. [...] As faculdades patronais não são concedidas para a arbitrariedade nem para que se cometam injustiças ou discriminações pessoais. O poder diretivo da empresa se legitima, na medida em que cada empresa deve ser conduzida e orientada, com um sentido de unidade, para a obtenção de seu fim econômico, que é o que justificou sua existência. Mas não pode servir para vinganças nem perseguições pessoais, nem para a atuação caprichosa ou irracional" (g.n.).
03 Cfr. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Harvard University Press, 1978, p.24.
04 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1999, p.1177.
05 Idem, pp.1086-1087. Para o mesmo binômio, cfr. ainda ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, 3. Aufl., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1996, pp.72-73: "Hier sollen Regeln und Prinzipien unter dem Begriff der Norm zusammengefaβt warden. Sowohl Regeln als auch Prinzipien sind Normen, weil beide sagen, was gesollt ist. Beide lassen sich mit Hilfe der deontischen Grundausdrücke des Gebots, der Erlaubnisun des Verbots formulieren".
06 Idem, p.1087.
07 Apar da função sistêmica, também referida por CANOTILHO: "têm uma idoneidade irradiante que lhes permite «ligar» ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional" (idem, p.1089) — no caso, o subsistema constitucional dos direitos sociais.
08 Cfr., por todos, José Eduardo Martins Cardozo, "Princípios Constitucionais da Administração Pública (de Acordo com a Emenda Constitucional nº 19/98)", in Os 10 Anos da Constituição Federal: Temas Diversos, Alexandre de Moraes (coord.), São Paulo, Atlas, 1999, pp.149-183 (especialmente pp.178-180). O autor ainda refere, como princípios constitucionais implícitos, os princípios da especialidade, do controle administrativo ou tutela, da autotutela (Súmula 473/STF) e da continuidade, além dos princípios da razoabilidade/proporcionalidade.
09 Cfr., por todos, Robert Alexy, op.cit., pp.100-104 ("Prinzipientheorie und Verhältnismäβigkeitsgrundsatz"). No Brasil, cfr. Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995, passim.
10 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em julgados que demonstram a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por contrariedade a princípio constitucional (explícito ou implícito). Cfr., e.g., ADIn n. 1.458-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 20/09/1996, e ADIn n. 1.439-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 30/05/03. Na última, lê-se: "Desrespeito à Constituição — modalidades de comportamentos inconstitucionais do poder público. O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação" (g.n.). Já são vários os casos em que o STF reconheceu a inconstitucionalidade de lei por violar o princípio da proporcionalidade e/ou o princípio da razoabilidade (ambos princípios constitucionais implícitos); vejam-se, por todos, a MC-ADIn n. 1511/DF,Min. Carlos Velloso, 16/10/1996 (admissão "in tese" da inconstitucionalidade por ferimento ao princípio da proporcionalidade, malgrado não reconhecida na hipótese) e o REx n. 266994/SP, Min. Maurício Corrêa, 31/03/2004: "Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente".
11 Contradição aparente que hoje não causa qualquer espécie. Como pondera MIGUEL REALE, "cada «região jurídica» pressupõe [...] diretrizes ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógica dos institutos e figuras que a compõem. É mister, por conseguinte, estudar os princípios gerais do Direito Civil, do Direito Processual, do Direito do Trabalho etc., e, mais particularmente, do Direito de Família, do Direito Cambial etc." (Lições Preliminares de Direito, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, pp.312-313 – g.n.). Ou, na dicção de PALMA RAMALHO, os princípios fundamentais do Direito do Trabalho "são princípios gerais, embora a característica da generalidade seja aqui reportada ao domínio do subsistema laboral (ou seja, são princípios gerais autónomos do Direito do Trabalho)" (Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho: Dogmática Geral (Parte I), Coimbra, Almedina, 2005, p.486).
12 J. J. Gomes Canotilho, op.cit., p.1087. O autor distingue entre princípios jurídicos e princípios hermenêuticos; os últimos "desempenham uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição [...] ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito (Richterrecht, analogia juris)". Para nós, os princípios específicos do Direito do Trabalho (proteção, irrenunciabilidade, primazia da realidade, continuidade) são, a rigor, as duas coisas: desempenham função hermenêutica, mas também têm função propriamente normativa (= impositiva de otimização de valores e abstenção de condutas).
13 Clóvis Beviláqua, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado, 8ª ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1949, v. I, p.115 (g.n.). Os comentários referem-se ao artigo 7º da LICC original (1916), que tinha a seguinte redação: "Applicam-se, nos casos omissos, as disposições concernentes aos casos analogos e, não as havendo, os principios geraes de direito".
14 Miguel Reale, op.cit., p.311.
15 Idem, pp.311-312 (g.n.).
16 A expressão é de MIGUEL REALE (op.cit., p.311).
17 Possibilidade jurídica que, sobre ter positividade em um diploma da primeira metade do século passado, tem raríssimo emprego entre os operadores do Direito do Trabalho, possivelmente pela ausência de referenciais: qual direito comparado? Dadas as limitações de espaço, escusamo-nos de desenvolver o palpitante tema neste trabalho, para reservar-lhe atenção mais cuidada em escritos futuros.
18 Diversamente da norma jurídica, que é um critério material de decisão. Cfr., por todos, José de Oliveira Ascensão, O Direito: Introdução e Teoria Geral, 13ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pp.243-236.
19 Cfr. Miguel Reale, op.cit., p.310. Para REALE, "a pessoa é o valor fonte", e as "constantes ou invariantes axiológicas [que lhe dizem respeito] formam o cerne do Direito Natural, delas se originando os princípios gerais de direito, comuns a todos os ordenamentos jurídicos" (pp.309-310).
20 Op.cit., pp.88-89. Os complementos dos itens "b" e "d", entre parênteses, são de nossa lavra.
21 Idem, p.489.
22 O que ocorre, por exemplo, no sistema jurídico brasileiro, em face do que dispõem o artigo 9º, caput, da CRFB e os artigos 1º e 2º da Lei 7.783/89, que asseguram o direito de greve (= suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador), mas não exprimem um princípio geral de autotutela laboral. Não por outra razão, a doutrina repele outras formas de protesto coletivo, como as "greves de zelo" — na qual os trabalhadores "continuam em serviço, porém esmeram-se na sua execução para provocar propositado atraso"—, e tem reservas quanto às greves que não girem em torno de reivindicações profissionais típicas, como as greves políticas e de solidariedade (cfr., por todos, Amauri Mascaro Nascimento, Direito Sindical, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, pp.443 e 447-448). Curiosamente, a Constituição do Estado de São Paulo caminhou em outro sentido, admitindo greve (na acepção do artigo 2º da Lei 7.783/89) em caso de risco grave ou iminente no local de trabalho (artigo 229, §2º, da CE), até a normalização das condições do meio ambiente de trabalho — ainda que não haja, aí, matéria passível de negociação propriamente dita, para os fins do artigo 3º, caput, da Lei 7.783/89, por envolver direitos indisponíveis a cujo respeito os trabalhadores não poderiam transigir (vida e integridade psicossomática). Observe-se, enfim, que o reconhecimento doutrinal de um princípio geral de autotutela laboral favorece um novo ângulo cognitivo, pelo qual se entrevê a legalidade da autotutela patronal para além do "lock-out" (que é proibido na maior parte dos países): "No que se refere à natureza do princípio da autotutela laboral, deve ficar claro que se trata de um princípio bipolar, no sentido de que emerge não só da função de tutela directa dos interesses dos trabalhadores, mas também da outra figura que permite ao empregador prosseguir os seus interesses sem recorrer aos mecanismos comuns de reintegração efectiva dos diretos e dos negócios jurídicos ― ou seja, o poder disciplinar laboral" (Palma Ramalho, op.cit., p.509 ― g.n.). A própria autora observa, em nota de rodapé (idem, ibidem, nota n. 356), que "o ponto merece uma referência porque classicamente a ideia de autotutela é reportada apenas ao direito de greve".
23 Palma Ramalho, op.cit., pp.492-493.
24 Cfr. Palma Ramalho, op.cit., p.253. Mal comparando, o princípio do "favor laboratoris" corresponde ao princípio da proteção tal como enunciado por PLÁ RODRIGUEZ (op.cit., pp.28-65), enquanto as suas três manifestações, no escólio de PALMA RAMALHO, correspondem às três "regras" de PLÁ RODRIGUEZ: respectivamente, o "in dubio pro misero", a norma mais favorável e a condição mais benéfica.
25 Nesse sentido, leia-se, por todos, ARTHUR NIKISCH, para quem o contrato de trabalho cria um vínculo pessoal estreito entre trabalhador e empregador, a ponto de se poder falar em uma comunidade de relações ("Gemeinschaftsverhältnis") estranha ao regime contratual do BGB (Código Civil alemão), que nasce da admissão do trabalhador na empresa ou no âmbito da vida privada do empregador (como, e.g., no trabalho doméstico) e engendra deveres comunitários de fidelidade, assistência e colaboração. Cfr. Arbeitsrecht: Allgemeine Lehren und Arbeitsvertragsrecht, 3. Aufl., Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1961, I Band, p.162. Na mesma linha, PALMA RAMALHO refere-se à natureza comunitário-pessoal da relação laboral (Da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, pp.457-465). Em sentido contrário, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO aponta o abandono progressivo da idéia de "Gemeinschaftsverhältnis" no próprio Direito do Trabalho alemão (citando, e.g., HERBERT WIEDEMANN em 1966, ERNST WOLF em 1970 e PETER SCHWERDTNER em 1970); e, para mais, contesta que o contrato de trabalho seja "intuitu personae", porque "o moderno Direito do trabalho está massificado, havendo uma total substituibilidade entre os trabalhadores de iguais habilitações". Cfr., respectivamente, Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, v. I, t. I, pp.196-197 e nota n. 612, e Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1999 (reimpressão), p.520. Para nós, se essas ilações são verdadeiras do ponto de vista técnico-sociológico, ainda não o são do ponto de vista estritamente relacional, ao menos no que diz com a posição do trabalhador: o empregado não pode se fazer substituir por quem quer que seja sem a anuência do empregador, o que denuncia a essencial pessoalidade; e, se clausularmente avençassem que o empregado pudesse a qualquer momento enviar terceiro para laborar em seu posto, mesmo sem a concordância prévia do tomador de serviços, já não se trataria de relação de emprego "stricto sensu". Ademais, os deveres de fidelidade, assistência e colaboração de trabalhadores e empregadores são implicações necessárias da função social do contrato de trabalho (mesmo nos contextos desintegradores da sociedade pós-industrial) e derivam do próprio princípio da boa-fé (infra), o que desautoriza quaisquer construções que reduzam o Direito Individual do Trabalho ao Direito dos Contratos e ignorem o seu feitio comunitário-pessoal.
26 Para a dimensão desse subprincípio no contexto legislativo português, como manifestação hodierna do "princípio do rendimento", cfr., infra, a nota n. 36.
27 Palma Ramalho, op.cit., p.499.
28 Idem, p.500.
29 Bernd Rüthers, "35 Jahre Arbeitsrecht in Deutschland", in Recht der Arbeit. Zeitschrift für die Wissenschaft und Praxis des gesamten Arbeitsreechts, München, C. H. Beck, 1995, p.328.
30 Gérard Lyon-Caen, "La crise du droit du travail", in In memorian Sir Otto Kahn-Freund, Munich, C.H. Beck, 1980, pp. 515-517.
31 Jean-Claude Javillier, Droit du Travail, 7e ed., Paris, L.G.D.J., 1999, pp.55-57.
32 Cite-se aqui, por todos os outros enunciáveis, o princípio do coletivo, que "reflecte a orientação geral do Direito Laboral para valorizar, na concepção e na disciplina dos fenómenos laborais (incluindo o contrato de trabalho), uma componente colectiva ou de grupo", o que "permite reconduzir o Direito do Trabalho a um direito de grupos (entendendo aqui o termo grupo não em moldes restritos, reportados a entidades colectivas, mas em termos amplos, ou seja, abrangendo realidades, conceitos e entidades colectivas) e reconhecer a dimensão colectiva como o traço mais original desta área jurídica" (Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, p.501).
33 Miguel Hernainz Marquez, Tratado Elemental de Derecho del Trabajo, 10ª ed., Madrid, Instituto de Estúdios Politicos, 1969, pp.88-91.
34 Para HERNAINZ MARQUEZ, consubstanciaria a impossibilidade de o empregado privar-se ampla, voluntária e antecipadamente dos direitos conferidos pela legislação laboral, conquanto pudesse, na ótica do mesmo autor, transigir com alguns deles em caráter individual, concreto e posterior ― o que remete à distinção entre direitos relativamente irrenunciáveis e direitos absolutamente irrenunciáveis. Os direitos absolutamente irrenunciáveis não são transigíveis em qualquer hipótese, sendo dessa ordem todos os direitos trabalhistas visceralmente ligados à dignidade da pessoa humana, no seu núcleo mais fundamental (vida, integridade física e liberdade espácio-corporal). O empregado não pode, e.g., transigir concretamente quanto ao fornecimento de determinado equipamento de proteção individual cuja concessão seja obrigatória "ex vi legis".
35 Descoberto no Direito do Trabalho, liga-se ao sentido histórico de proteção dos economicamente débeis que prestam serviço por conta alheia (hipossuficiência econômica), manifestando-se ora como princípio de interpretação favorável de uma norma única, ora como princípio de resolução de conflitos aparentes de normas trabalhistas (o que pressupõe a sua pluralidade), ora ainda como princípio de aquisição das condições mais benéficas.
36 Por esse princípio, a interpretação da lei laboral deveria ter em conta uma visão conjunta da produção, inspirada por valores de tipo nacional e coletivo, que sobrepassam os valores puramente particulares dos componentes da relação de emprego. Ambos os pólos, empregados e empregadores, deveriam realizar o máximo esforço para incrementar e impulsionar a produção nacional, a ponto de o desempenho laboral abaixo de certo minimum configurar violação contratual (cfr. Américo Plá Rodriguez, op.cit., pp.266-267), reputando-se ilícitas as estratégias de luta operária que implicassem diminuição do rendimento normal (como, e.g., as greves típicas, as "operações-padrão" e as greves de "braços cruzados"). O princípio do rendimento atuaria, para alguns, como um "princípio compensatório" de todos os anteriores (o que é veementemente negado por HERNAINZ MARQUEZ ― op.cit., p.89). Na verdade, tal princípio associa-se à idéia de prevalência do interesse público-estatal sobre os interesses de classe, que tinha um sentido muito particular nos regimes políticos autoritários de inspiração fascista, em que se concebia o Estado como elemento mediador/neutralizador da luta de classes. Fora invocado por copiosa doutrina até a década de setenta: PÉREZ BOTIJA, CABANELLAS, MENÉNDEZ PINDAL, ALMANSA PASTOR, TISSEMBAUM, etc. (para um relação completa, com indicações bibliográficas, cfr. Plá Rodriguez, op.cit., p.265, nota n. 468) ― coincidentemente ou não, quase todos autores espanhóis cujas obras são contemporâneas ao governo de FRANCISCO FRANCO (1939-1975). No Brasil, a idéia (não o princípio) foi vazada no artigo 8º, caput, in fine, da CLT, sob a égide do governo ditatorial de GETÚLIO VARGAS. Hodiernamente, a se admitir a existência de um princípio do rendimento, cumprirá fazer-lhe a releitura à luz das finalidades e dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, escapando à esfera restrita da produção e acumulação nacional de riquezas e assentando-se num conceito prudencial de interesse público primário, que corresponde ao interesse geral do povo tal como se apresenta ao intérprete, segundo o foco da realização objetiva do bem comum. Contrapõe-se à noção de interesse público secundário, que é o interesse geral do povo visto pelas lentes dos aparelhos de Estado (governo), tal como revelado nas políticas públicas dos órgãos da Administração (cfr., para a distinção, Renato Alessi, Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1960, pp.197-198). Convergindo para esse "conceito novo", merece particular menção a obra de PALMA RAMANHO, referida no tópico anterior (II), que enuncia, entre os princípios gerais do Direito do Trabalho, o princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho, e logo depois o desdobra no princípio da proteção do trabalhador e no princípio da prevalência dos interesses de gestão (supra). Esse último corresponderia à necessidade de "assegurar ao empregador as condições necessárias ao cumprimento dos deveres amplos que lhe incumbem e, indiretamente, viabilizar este mesmo vínculo [laboral]", fazendo-o por meio da prevalência, dentro de certos limites, dos interesses do empregador sobre o acordo negocial. Como visto alhures, a autora ilustra um tal princípio referindo o regime de adaptabilidade dos horários dos empregados (artigos 164º e ss. do Código do Trabalho), o regime de mobilidade funcional (artigo 314º do Código do Trabalho), os poderes modificativos do contrato de trabalho por iniciativa do empregador ("jus variandi") e as próprias "limitações ao princípio da segurança no emprego" (como nos casos de admissibilidade de contratos de trabalho precário ― a termo, temporário, a comissão de serviço, etc. ― ou de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador com fundamento em causas objetivas ou na inadaptação do trabalhador). Tudo, enfim, justificando-se em prol da subsistência global dos vínculos empregatícios (interesse público primário), contemporizando com as limitações factuais da empresa. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, pp. 489-492 e 498-501. De nossa parte, cremos que a enunciação dessa idéia como princípio geral é razoável, mas desafia maiores cuidados (a precarização contratual, por exemplo, não pode derivar de princípio, mas de exceção).
37 Corresponde à inclinação ostensiva e manifesta do Direito do Trabalho para os vínculos com caráter de permanência, tendendo à continuidade indefinida (contratos de trabalho por prazo indeterminado) e relegando à excepcionalidade os contratos de trabalho temporários ou por prazo determinado. Assim, na dúvida, impõe-se a "praesumptio hominis" da contratação por prazo indeterminado.
38 Hernainz Marquez, op.cit., p.28. Entre os alemães, cfr. Walter Kaskel, Herman Dersch, Derecho del Trabajo, trad. Ernesto Krotoschin, Buenos Aires, De Palma, 1961, p.32 ("princípio protetor").
39 No Brasil, confira-se, e.g., a Súmula 338/TST: "É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário". Em Portugal, MOTA PINTO denuncia a carência de positividade da regra "in dubio pro operario", mas parece considerá-la necessária ou pelo menos útil, uma vez que propõe a aplicação, aos contratos individuais de trabalho, das normas interpretativas do Decreto-lei n. 446/85 (que disciplina as chamadas cláusulas contratuais gerais), como forma de engendrar uma prática de interpretações mais favoráveis ao hipossuficiente econômico no que se refere às cláusulas contratuais gerais que o empregador agrega ao pacto (i.e., cláusulas que têm foros de generalidade na estrutura da empresa e não são negociadas com os empregados). Cfr. Alexandre Mota Pinto, "O contrato de trabalho de adesão no Código do Trabalho: notas sobre a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais ao contrato de trabalho", in Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Centro de Direito do Consumo, 2003, n. 5, p.261).
40 Quanto a essa regra, a vetusta lei brasileira prossegue silente. Já o Código do Trabalho português consagrou expressamente o princípio de hierarquia dinâmica em seu artigo 4º ("princípio do tratamento mais favorável"), notadamente no n. 3: "As normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se delas não resultar o contrário". Diga-se, porém, que o Tribunal Constitucional português decidiu, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade do artigo 4º, 1, que "ao prever que as normas não absolutamente imperativas nem supletivas […] do Código (que é um acto legislativo) possam ser afastadas por regulamentos de condições mínimas (que são actos de natureza não legislativa), o questionado art. 4º, nº 1, viola irremissivelmente o disposto no art. 112º, nº 6, da CRP" (acórdão n. 306/2004, rel. Mário José de Araújo Torres, in Diário da República, I-A, 18.07.2003 ― g.n.), o que levou à alteração desse artigo, com o acréscimo do n. 2. O Tribunal baseou-se na regra de "congelamento do grau hierárquico" do artigo 112º, 6, da CRP. Mas seria de se indagar se a proibição do n. 2 do artigo 4º ("As normas deste Código não podem ser afastadas por regulamento de condições mínimas") aplicar-se-ia até mesmo aos casos em que o regulamento de condições mínimas concedesse tratamento mais favorável ao trabalhador. Pela "ratio decidendi" do acórdão, supõe-se (equivocadamente) que sim.
41 Como no caso brasileiro, em que o artigo 7º, XIII, da CRFB prevê duração normal de trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Note-se, porém, que "a comparação das normas deve levar em consideração a situação da coletividade trabalhadora interessada e não de um trabalhador tomado isoladamente" e que "a questão de saber se uma norma é ou não favorável aos trabalhadores não depende da apreciação subjetiva dos interessados", devendo ser resolvida objetivamente, em função dos motivos que inspiraram as normas (Plá Rodriguez, op.cit., p.57, recorrendo a PAUL DURAND).
42 ANDRADE MESQUITA identifica esse princípio no artigo 560º do Código do Trabalho português, denominando-o princípio do tratamento mais favorável no tempo e derivando-o "do princípio do não retrocesso social, assentando no pressuposto de que o contínuo progresso permite sempre melhorar as condições de vida dos trabalhadores" (José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2ª ed., Lisboa, AAFDL, 2004, p.309 ― g.n.).
43 Plá Rodriguez, op.cit., pp.66-67.
44 Vide, e.g., o artigo 7º, XV, da Constituição brasileira e o artigo 205º do Código do Trabalho português.
45 Aspecto que é mais verdadeiro em Portugal, que ratificou a Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho ("Cessação do trabalho por iniciativa do empregador") pela Resolução AR n. 55/94, de 27.08.1994, e menos verdadeiro no Brasil, que chegou a ratificar a referida convenção no plano internacional, mas jamais a transpôs efetivamente para a ordem interna; ao depois, acabou por denunciá-la (prosseguindo, agora como antes, o direito potestativo do empregador à denúncia vazia do contrato de trabalho, condicionada à obrigação de indenizar).
46 Plá Rodriguez, op.cit., pp.227-228.
47 Mario de la Cueva, Derecho Mexicano del Trabajo, 2ª ed., México, Porrúa, 1943, t. I, p.381.
48 Não, porém, em Portugal: dispõe o artigo 410º, 1, do Código Civil português (1966) que "à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa" (g.n.). O estudo minucioso dos contratos-promessa de trabalho e de suas conseqüências jurídicas, no Brasil e em Portugal, ocupou-nos em monografia própria (a ser oportunamente publicada).
49 O exemplo, aqui adaptado, está em PLÁ RODRIGUEZ (op.cit., p.261). Trata-se de fraude recorrente no cenário brasileiro de meados da década de noventa, a ponto de haver doutrina juslaboral séria a cunhar e empregar expressões como "fraudoperativas" e "coopergatos" («gato» é a expressão popular para designar o "marchand" de mão-de-obra, i.e., o intermediário que mercancia a força de trabalho alheia).
50 Plá Rodriguez, op.cit., p.269.
51 Op.cit., pp.267-269.
52 Idem, p.268.
53 Eugenio Pérez Botija, Curso de Derecho del Trabajo, Madrid, TECNOS, 1948, p.176.
54 Plá Rodriguez, op.cit., p.272.
55 Dessa ordem, se bem que restrita ao Direito privado (mas, ainda assim, com inclinação globalizante), é a tese "Da Boa Fé no Direito Civil", que valeu a ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO seu Doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Cfr. António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2001 (2ª reimpressão), passim.
56 Em sentido inverso, PALMA RAMALHO considera que a existência de princípios próprios é uma decorrência da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, pendendo para uma argumentação autonomizante que privilegia os institutos, não os princípios propriamente ditos (Direito do Trabalho, pp. 466 e 485). Cremos, porém, que são os princípios que conferem aos institutos as suas singularidades (propiciando, na leitura de HABERMAS, a sua renovação funcional ― infra) e não o contrário. Os institutos mesmos, se mais ou menos presentes na casuística juslaboral, são normalmente reconhecidos pelo Direito Civil. Assim, as convenções coletivas de trabalho (op.cit., pp.468-472) têm correspondência nas convenções coletivas de consumo (veja-se, e.g., o artigo 107 do CDC brasileiro, que as admite entre entidades civis de consumidores e associações de fornecedores, para "estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo", com força obrigatória sobre os filiados à época do registro do instrumento); da mesma forma, o direito de greve, como direito de resistência ou de autotutela coletiva dos trabalhadores, tem correspondência, para o indivíduo, no desforço pessoal do Direito brasileiro (artigo 1210, §1º, do NCC) e português (artigo 1277º do CC), bem como, em geral, nas ações diretas do Direito português (artigo 336º do CC ― de que é espécie o desforço para defesa da posse) e, ainda, nos institutos universais da legítima defesa e do estado de necessidade, que transcedem o plano juscivilístico e relevam inclusive para o Direito Penal.
57 Havendo, em ambos os países, cortes superiores de jurisdição extraordinária para a matéria trabalhista (respectivamente, o Tribunal Superior do Trabalho e o Bundesarbeitsgericht).
58 Respectivamente, os tribunais do trabalho (cfr. artigos 85º, 86º e 87º da Lei 3/99) e os juzgados de lo social (cfr. artigos 2º e 6º do Real Decreto Legislativo 2/1995, de 07.04).
59 A ponto de justificar, há poucos anos, a (re)afirmação da autonomia dogmática do Direito do Trabalho em sólida e extensa dissertação de Doutoramento de PALMA RAMALHO na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Da autonomia dogmática do Direito do Trabalho, cit., passim). Cfr. ainda, da mesma autora, Direito do Trabalho, pp. 463-483 e 487-488. Em contrapartida, na mais recente edição de seu Tratado de Direito Civil Português (a terceira), MENEZES CORDEIRO obtempera ― após fazer menção à tese de PALMA RAMALHO, de quem foi orientador ― que "dentro do universo patrimonial privado, o Direito do trabalho lida com elementos que, embora regulados pelo Direito civil, se apresentam, aí, como mais intensos. Pense-se na especial tutela que os direitos de personalidade do trabalhador podem merecer e, ainda, nas disposições que asseguram elevado nível de protecção. A grande questão laboral reside, todavia, na atribuição, ao empregador, de um direito à actuação do trabalhador. Ora, essa atribuição ocorre, em geral, no Direito das obrigações. Não há uma particularidade dogmática" (Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., v. I, t. I, pp.195-196 ― g.n.). Isso significa que o Direito do Trabalho teria uma autonomia meramente sistemática (dada pela especificidade de suas fontes, pela existência de um desenvolvido nível coletivo e pela proliferação de regras imperativas), mas não uma autonomia dogmática, porque seria, ao cabo e ao fim, "uma relevante disciplina que integra a grande família unitária do Direito privado ou do ius civile: o Direito dos cidadãos" (Menezes Cordeiro, idem, p.199). Divergimos desse pensamento, como se fará constar a seguir, no texto principal.
60 Em acréscimo, endosse-se tudo quanto demonstrado por PALMA RAMALHO ao tratar da "improcedência da construção dogmática de recondução do direito laboral ao direito civil em razão das suas deficiências metodológicas": improcedente por prescindir da "pesquisa de valorações materiais específicas alternativas, a partir da análise do conjunto dos institutos laborais e do sistema laboral positivo, que o problema da autonomia da área jurídica e que a sua unidade interna possibilita" (Da autonomia dogmática…, pp.528-532).
61 Idem, pp.499-516.
62 Tratado de Direito Civil Português, 2ª ed., v. I, t. I, p.197. Cfr., supra, nota n. 25.
63 Vê-se, com efeito, intermediação lucrativa nas cooperativas de mão-de-obra que ocultam relações subordinadas de trabalho (Brasil), no tráfico de pessoas para fins de prostituição ou trabalho precário (Bolívia/Brasil) e até mesmo no "dumping" social como estratégia de competitividade nos mercados globais (China).
64 Não se deve confundir, nessa linha, o objeto jurídico da prestação contratual com o objeto físico da atividade material. Num contrato de prestação de serviços médicos de reparação e cirurgia estéticas, o objeto da prestação é o serviço médico em si mesmo (incluindo a intervenção cirúrgica e os cuidados pré/pós-operatórios) ― ou o seu resultado útil, em se admitindo tratar-se de obrigação de fim. O corpo do paciente é tão-só o objeto físico da atividade material do esculápio (ou, se quisermos, o objeto material da prestação contratual, tal como é a mercadoria na prestação do vendedor em contratos de compra e venda, sobretudo nos sistemas de inspiração germânica). Já no contrato de trabalho, o objeto jurídico da prestação contratual ― a força de trabalho ― é inseparável do corpo e da própria personalidade do contraente (como o é, também, no caso dos serviços médicos), com um elemento diferenciador: a subordinação jurídica, que permite, pela instância contratual, a interferência lícita e consentida de terceiros na esfera da dignidade humana (assim, e.g., nas revistas pessoais, na modulação do trabalho humano e, em geral, em todos os supostos lícitos de exercício dos poderes de fiscalização e de punição do empregador).
65 Pense-se, aqui, nas aberrações do sensualismo de "fin de siècle", como as práticas consensuais de sadomasoquismo (que podem ser "pagas", à maneira de serviços, ou graciosas, e chegam ao limite da disposição voluntária da vida e/ou da saúde, como nos casos de contaminação sexual espontânea com o vírus HIV ― o "gift” ― ou de mutilação e morte consentidas, como se deu recentemente na Alemanha, com o "canibal de Rotemburgo"). Ainda que se admita ou se comprove algum consenso lúcido, é indiscutível que, nos extremos, tais "contratos" não têm qualquer amparo jurídico, servindo, quando muito, como atenuantes genéricas da pena criminal (e, não raro, sequer a isso).
66 Referido por MENEZES CORDEIRO (Tratado de Direito Civil Português, 3ª ed., v. I, t. I, p.199), in verbis: "O actual Direito do trabalho deixou de ser o mero instrumento de tutela dos pobres e desprotegidos. […] Vectores tradicionais como o favor laboratoris ou princípio da tutela do trabalhador, que fizeram a sua época no Direito do trabalho, são hoje abandonados a favor de um levantamento mais preciso e desinibido dos valores civis concretamente ameaçados por eventuais lógicas mecanizadoras do mundo empresarial. Postas as coisas nestes termos, consegue-se uma protecção menos vocabular e ideológica, mas mais eficaz". Reconhecendo, porém, as implicações notáveis do Direito do Trabalho na realização da plena cidadania, confira-se, do mesmo autor, "Direito do Trabalho e cidadania", in III Congresso Nacional de Direito do Trabalho: memórias, António Moreira (coord.), Coimbra, Almedina, 2000, passim.
67 Num sistema social meritório e patrimonialista, inerente às sociedades de consumo, as pessoas realizam-se pelo que têm, pelo que aparentam ter e pelo que podem ter. A incapacidade de ter induz à falsa percepção da impotência do ser ― daí porque o desemprego involuntário torna-se, para o homem comum, fonte de humilhação e discriminação. O sucesso dos comuns mede-se pela visibilidade e pelo poder aquisitivo e os que necessitam de tutela do Estado assumem-se como desvalidos ou desfavorecidos, em espontânea "capitis deminutio". Isso se reproduz no plano das relações contratuais empregatícias, forjando a idéia de que a proteção do Estado não é essencial e o emprego reflete o mérito pessoal do trabalhador: os que não têm "mérito" são excluídos do sistema liberal-capitalista (das contrapartidas econômicas, do poder de consumo, da dignidade pessoal e, por último, das próprias estatísticas de desemprego ― que não computam aqueles que já não mais procuram trabalho). A bem dizer, esse sistema tende a ser ainda mais nefasto para as pessoas que os sistemas anteriores ― da servidão medieval e da escravidão antiga e moderna ―, porque os servos e escravos ainda eram, em alguma medida, parte dos respectivos sistemas socioeconômicos, o que lhes permitia conservar alguma dignidade (ainda se como coisa, qual nos regimes de escravidão). Já quem está excluído não vale como nada, em parte alguma. Para um exercício mental, pense-se, "ad argumentandum tantum", na condição social de um escravo grego ou romano, comparando-se-a à condição de um mendicante sem-teto latino-americano.
68 Jürgen Habermas, Direito e Democracia: entre facticidade e validade, trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p.134 (g.n.).
69 Os direitos de personalidade dizem fundamentalmente com a vida, a integridade (física, mental, moral) e a liberdade (corporal, intelectual, de expressão, etc.). Esses bens também são intensamente afetados pelo Direito Civil dos incapazes (interdições e inabilitações, disciplina familiar e pública das condutas infanto-juvenis ― notadamente na esfera dos atos infracionais ―, internações, etc.) e por certas medidas do Direito de Família (e.g., a separação de corpos, a prisão do alimentante inadimplente e as ordens de restrição pessoal). Já o Direito das Obrigações cuida precisamente do patrimônio, seja em face da "exigência de que a prestação debitória revista necessariamente natureza económica, quer dizer, susceptibilidade de avaliação pecuniária", seja ainda porque "no direito moderno, ao contrário dos sistemas antigos, o inadimplemento confere unicamente ao credor a possibilidade de agir contra o património do devedor e não contra a sua pessoa" (Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, pp.25-26).