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Sistema e modelo econômico na Constituição de 1988

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Agenda 07/01/2006 às 00:00

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1. Sistemas econômicos. 1.1. O capitalismo. 1.2. O socialismo. 2. Modelos econômicos. 2.1. Modelo centralizado. 2.2. Modelo descentralizado 3. Constituição econômica. 4. A ordem econômica na Constituição de 1988. CONCLUSÃO. Referências bibliográficas.

RESUMO: A Constituição Federal de 1988 é o marco jurídico da transição para a democracia e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Os direitos sociais foram expandidos e a disciplina da Ordem Social, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça-social, foi separada da Ordem Econômica, fundamentada na livre iniciativa e livre concorrência. Os diversos princípios, fundamentos e valores adotados pela Carta Constitucional, fruto dos conflitos ideológicos presentes quando da sua elaboração, apontam, num primeiro momento, para uma aparente contradição no texto constitucional, mas, na verdade, convergem para um sistema econômico capitalista e um modelo econômico misto, que ao mesmo tempo resguarda princípios de natureza liberal e ampara a atuação normativa e reguladora do Estado.

ABSTRACT: The Federal Constitution of 1988 is the legal landmark of the transition to democracy and the institutionalization of the human rights in Brazil. The social rights had been expanded and the precepts of the Social Order, whose purpose are welfare social-justice, had been separated from the precepts of the Economic Order, based upon free enterprise and competition. The Constitution adopted several principles, beddings and values, fruits of ideological debates during its elaboration, that point to an apparent contradiction, at a first moment, but in reality they converge to a capitalist economic system and a mixing economic model, as long as protects principles of a Liberal nature and supports the normative and regulating performance of the State.


INTRODUÇÃO

            Muito se tem questionado a respeito do sistema e modelo econômico adotados pela Constituição de 1988. Pode-se falar até mesmo de uma disparidade de entendimentos manifestado pela doutrina pátria com relação ao sentido assumido pela nossa ordem constitucional.

            Washington Peluso ressalta que a ordem econômica na Constituição de 1988 contempla a economia de mercado, mas, no entanto, de forma descaracterizada, ou seja, aponta para uma economia de mercado em moldes de neoliberalismo e não mais de liberalismo puro [01].

            Além disso, a Carta de 1988 protege a propriedade privada de bens e produção, e admite a livre concorrência, na iniciativa privada, mas, no entanto, confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado, ao mesmo tempo em que limita a liberdade com fundamento na justiça social. Segundo José Afonso da Silva, a Constituição, apesar de capitalista, abre caminho para transformações da sociedade com base em instrumentos e mecanismos sociais e populares [02].

            Desta forma, urge a discussão acerca do sistema e do modelo econômico adotado pela Constituição de 1988, que se afastou do modelo clássico para aproximar-se de um sistema híbrido, com a adoção de princípios privatísticos e publicísticos, que a primeira vista parecem contraditórios, quais sejam: inviolabilidade do direito de propriedade, livre iniciativa, livre concorrência, livre exercício de qualquer atividade econômica, função social da propriedade, desapropriação da propriedade por interesse social, planejamento central da economia, embora indicativo para o setor privado, manutenção de monopólios estatais, exploração direta da atividade econômica pelo Estado etc.

            Este trabalho tem como finalidade, em primeiro lugar, o estudo dos sistemas e modelos econômicos e do conceito de Constituição Econômica para, por fim, enfrentar a questão principal, qual seja, a existência de um modelo e um sistema econômico na Constituição Federal de 1988.


1.SISTEMAS ECONÔMICOS

            O sistema econômico é definido por Fábio Nusdeo como "um particular conjunto orgânico de instituições, através do qual a sociedade irá enfrentar ou equacionar o seu problema econômico" ou, em outras palavras, "é o conjunto de instituições destinado a permitir a qualquer grupo humano administrar seus recursos escassos com um mínimo de proficiência, evitando o quanto possível o seu desperdício ou malbaratamento" [03].

            Para Avelãs Nunes, "os sistemas distinguem-se uns dos outros pela afirmação de determinadas forças produtivas e determinadas formas de organização material da produção." [04] Para ele, o que distingue os sistemas, portanto, em última análise, é a natureza das relações sociais de produção, ou seja, a posição relativa dos homens em face dos meios de produção.

            Pode-se encontrar na doutrina pátria várias classificações de sistemas econômicos. No entanto, conforme ressalta Pinto Ferreira, os sistemas básicos que organizam a vida econômica são o capitalismo e o socialismo. O primeiro encontra-se "fundamentado na propriedade privada de bens e produção, na livre concorrência, na iniciativa privada, funcionando de um modo geral nos Estados que não se orientam pelo tipo de economia coletivizada" e o segundo está "fundamentado na propriedade coletiva dos meios de produção, implantado na extinta União Soviética e na China e durante muito tempo no Leste europeu". [05]

            1.1. O CAPITALISMO

            O capitalismo é o sistema econômico no qual as relações de produção estão assentadas na propriedade privada dos bens em geral e tem por pressuposto a liberdade de iniciativa e de concorrência.

            Para André Ramos Tavares, "o sistema capitalista aponta para a chamada economia de mercado, na medida em que são as próprias condições deste mercado que determinam o funcionamento e equacionamento da economia (liberdade). Daí a idéia da "mão invisível", a regular e equilibrar as relações econômicas, entre oferta e procura". [06] Na economia de mercado os preços dos produtos, serviços e dos meios de produção são determinados pela proporção entre a oferta e a respectiva procura, competindo ao Estado apenas garantir as condições para que esse sistema desenvolva-se livremente.

            Hoje é muito difícil vislumbrar-se sistemas exclusivamente de mercado. A crise econômica do capitalismo levou ao abandono da crença de que o sistema de mercado seria um regulador de si mesmo. Assim, passou-se a admitir e até mesmo a exigir a intervenção do Estado, para manter o equilíbrio entre a livre iniciativa e livre concorrência. Na realidade, embora isto seja dificilmente reconhecido pela doutrina, os modelos econômicos atuais são modelos mistos.

            1.2. O SOCIALISMO

            O socialismo, enquanto sistema de organização econômica do Estado, opõem-se frontalmente ao liberalismo, pois o mercado livre é considerado como a origem da desigualdade. Este sistema propõe não somente a intervenção do Estado, mas a supressão da liberdade da iniciativa privada e o comando do Estado na esfera econômica. [07]

            Segundo André Ramos Tavares, "o socialismo é um modelo econômico baseado na autoridade, pressupondo-a para alcançar sua sistemática própria. Mais claramente, exige-se uma autoridade centralizadora, unificante da economia". [08]


2.MODELOS ECONÔMICOS

            Os modelos econômicos distinguem-se dos sistemas econômicos. Nas palavras de André Ramos Tavares, "a forma econômica é o modo específico de estruturação de um determinado sistema, já que este pode formar-se sob vários critérios" [09], quais sejam: forma e dimensão da unidade de produção, desenvolvimento das forças produtivas, organização dos sujeitos econômicos, modo de coordenação.

            Avelãs Nunes apresenta uma definição clara de sistema econômico. Para ele sistema econômico é o "sistema afetado por determinado regime econômico". [10]

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            Os modelos econômicos podem ser classificados em centralizado e descentralizado.

            2.1. MODELO CENTRALIZADO

            O modelo centralizado adota como princípio vetor o planejamento central. A economia gira em torno de um plano, do qual depende toda a ação econômica, inclusive o preço final de bens e serviços.

            Neste modelo, a economia depende da ação de técnicos (tecnocracia/burocracia), pois exige cálculos prévios em torno dos objetivos a serem atingidos com o planejamento central. Diferentemente do modelo descentralizado, aqui não há sensibilização diante da figura do empresário, uma vez que a economia não é livre e não se baseia na oferta e procura: os preços são pré-fixados porque tudo depende do plano inicial, do qual são erradicados todos os vetores a serem realizados no âmbito da economia.

            A economia centralizada, segundo André Ramos Tavares, encontra-se baseada na sobrevalorização do coletivo e, por este motivo, identifica-se com o sistema socialista, uma vez que, neste modelo, o centro exclusivo para tomada de decisões econômicas é o próprio Poder Público. Assim, as chamadas "leis do mercado" são suprimidas ou mitigadas ao máximo, sendo substituídas pelo dirigismo, pelo controle, pelo planejamento e execução. Salienta o autor que esse sistema centralizado (também chamado de sistema de autoridade) acredita no planejamento racional como sendo o melhor substituto do mercado livre e irracional." [11]

            Pode-se apontar três formas de modelo centralizado: 1.modelo marxista soviético; 2. modelo da social-democracia de Weimer; 3. modelo nacional-socialista.

            O modelo marxista soviético é autoritário, tendo como base o planejamento integral do sistema econômico e a estatização dos meios de produção, de tal forma que o Estado passa a ser produtor, vendedor e empregador único.

            O modelo da social-democracia de Weimer fundamentou-se em uma economia planificada e centralizada, que buscou integrar os valores do Estado de Direito de inspiração liberal com o Estado comprometido com a justiça social, propugnado pelos socialistas. Assim, caracterizou-se por privilegiar a sociedade em face do indivíduo, ao mesmo tempo em que buscava compatibilizar os valores de liberdade e igualdade.

            Para Fábio Nusdeo, "a social democracia, movimento político e doutrina econômica difundidos a partir de fins do século passado, propugnava justamente pela manutenção do Estado de Direito e da democracia, mas com o seu direcionamento às necessidades sociais e, portanto, a uma mais eqüitativa distribuição de renda". [12]

            O modelo de Weimer tinha uma configuração corporativista, baseada no diálogo e na negociação com sindicatos e corporações.

            A convicção deste movimento político de que cabia ao Estado o papel de "socializador" do resultado do trabalho social, partilhando-o mais eqüitativamente, levou a que os direitos sociais fossem revestidos de caráter de exigências formuláveis perante o Estado. Assim, a Constituição de Weimer ampliou a proteção cometida ao cidadão, de forma a instrumentá-lo a enfrentar o Estado.

            A inexistência de mecanismos para controle da economia e o alto custo das demandas sociais, que não podia ser absorvido pelo Estado Alemão, acabou enfraquecendo o Estado, gerando uma grave crise política que acabou por permitir a ascensão do nazismo.

            O modelo nacional socialista tem o mesmo perfil autoritário do modelo marxista soviético, com a economia comandada do pólo central do Poder. A economia gira em torno de uma unidade de produção nacional, merecedora de controles político e sindical.

            2.2. MODELO DESCENTRALIZADO

            O modelo econômico descentralizado está baseado no princípio do free market. Fundamenta-se em um esquema multipolar, no qual existem múltiplos centros de produção das irradiações no mercado.

            Neste modelo, o mercado não depende de um plano econômico, mas da oferta e da procura. Ao contrário do modelo centralizado, ele privilegia e prestigia a empresa, que é a unidade econômica de produção, cabendo ao Estado apenas uma intervenção indireta e global, com vistas a resguardar o equilíbrio econômico exigido pelo free market.

            Assim, o Estado não estabelece preços, não há planilhas e não há possibilidade do Estado vir a efetuar um plano para a economia: o planejamento do Estado é, neste caso, meramente indicativo.

            O modelo descentralizado tem como características principais a livre iniciativa e a livre concorrência.

            A livre concorrência é o motor da economia de mercado. Ela exige: 1. atividade econômica livre; 2. pluralidade de empresas; 3. liberdade para que estas empresas possam oferecer um leque adequado de oportunidades e vantagens comerciais e 4. liberdade para os consumidores.

            O perigo desta liberdade está na possibilidade de formação de cartéis e na concorrência desleal, que precisam ser combatidos.

            Desta forma, há necessidade de regulação para manter o equilíbrio entre a livre iniciativa e livre concorrência, sem esquecer a proteção ao consumidor e meio ambiente.

            Podemos vislumbrar três tipos de economia descentralizada: 1. economia orientada, na qual existe um plano que é fator de ilustração, orientação econômica; 2. economia de consenso, baseada na negociação coletiva e 3. economia contratual, que é um modelo mais aprimorado da economia de consenso, na qual a relevância da negociação é elevada.


3. CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA

            A expressão ordem econômica constitucional pode ser entendida como conjunto de princípios e regras jurídicas que, funcionando harmonicamente e garantindo os elementos conformadores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia.

            Manoel Jorge e Silva Neto conceitua ordem econômica como "o plexo normativo, de natureza constitucional, no qual são fixadas a opção por um modelo econômico e a forma como deve se operar a intervenção do Estado no domínio econômico". [13]

            Para Vital Moreira "a economia não é um conjunto caótico de elementos e processos; possui uma estrutura, que os articula numa ordem: a ordem econômica. E na medida em que a economia se efetiva em relações entre os sujeitos econômicos - relações implicadas pela divisão social do trabalho -, essas relações podem ser objeto da ordem jurídica e a ordem econômica pode traduzir-se em ordem jurídica da economia". [14]

            É necessário, entretanto, distinguir a ordem econômica da Constituição econômica.

            A Constituição econômica é o segmento da Constituição que trata dos princípios e regras fundamentais da ordem econômica. Segundo Vital Moreira (1979, p. 67), a ordem econômica constitui-se de "todas as normas ou instituições jurídicas que têm por objeto as relações econômicas". Desta maneira, é lícito concluir que a ordem econômica é muito mais extensa do que a Constituição econômica, pois só algumas normas possuem caráter fundamental e se inserem, pois, no corpo da Constituição.

            Para Raul Machado Horta, "o constitucionalismo clássico, em suas diversas manifestações nos séculos XVIII e XIX, comportou-se dentro do modelo constitucional de duas dimensões – a organização dos poderes e a Declaração dos Direitos e Garantias Individuais – e as regras fragmentárias de natureza econômico-social que nele afloraram não alcançaram a estruturação sistematizada do ordenamento econômico, matéria ignorada nos textos daquele constitucionalismo. A Constituição refletia o liberalismo político econômico". [15]

            Já o constitucionalismo moderno ampliou as dimensões da Constituição, alargando seu conteúdo material, na medida em que introduziu em seu texto a chamada ordem econômica. As Constituições do México de 1917 e da Alemanha de 1919 foram as primeiras a incorporarem ao texto constitucional matéria relativa à ordem econômica, alargando a matéria e a dimensão da Constituição. Para Machado Horta, tais Constituições inauguraram novo período constitucional, o do constitucionalismo moderno, uma vez que "refletem mutação operada na posição do Estado e da Sociedade em relação à atividade econômica, abandonando a neutralidade característica do Estado Liberal, para incorporar a versão ativa do Estado intervencionista, agente regulador da economia". [16]

            A Constituição econômica pode ser definida como um conjunto de princípios, critérios, valores e regras fundamentais que presidem a vida econômico-social de um país [17]. Segundo Elival da Silva Ramos, a Constituição econômica "corresponde ao delineamento básico do sistema econômico ou produtivo". [18] Ela tem por objetivo tratar dos fatores de produção e da relação entre iniciativa pública e iniciativa privada, estabelecendo o modelo econômico e a finalidade da economia. [19]

            A Constituição econômica pode ser classificada em formal e material.

            A Constituição econômica formal corresponde ao conjunto de normas, regras, princípios etc, inseridos na Constituição. Segundo Elival da Silva Ramos é "o conjunto de disposições contidas no documento constitucional, destinadas a regular a vida econômica". [20]

            A Constituição econômica material é, nos dizeres de Vital Moreira, a "estrutura de relações sociais de produção traduzida em normas jurídicas". [21] Ela pode estar formalmente na Constituição, mas também pode se apresentar de forma expandida, abarcando normas que não estão na Constituição, mas tratam dos quatro temas acima mencionados.

            A ausência de dispositivos constitucionais que regulem as relações econômicas não impede, entretanto, a caracterização do modelo econômico adotado pelo país, pois é possível reconhecê-lo através da integração dos princípios constitucionais. [22]


4. A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

            A Constituição de 1988 pode ser considerada como marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Ela consolida a ruptura com o regime autoritário militar, caracterizado, segundo Flávia Piovesan, "pela supressão de direitos constitucionais, pela hipertrofia do Poder Executivo em relação aos demais Poderes e pelo centralismo federativo na União, em detrimento da autonomia dos Estados". [23]

            Além de expandir consideravelmente os direitos sociais, a Constituição de 1988 dispôs sobre a Ordem Econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa.

            Para Flávia Piovesan o sistema constitucional de 1988 traz o delineamento de um Estado Intervencionista, voltado ao bem-estar social, na medida em que reforça a idéia de que a participação estatal é imprescindível sob muitos aspectos, em especial no campo social. [24]

            Como bem lembra Raul Machado Horta, a Ordem Econômica, identificando setor próprio e um conjunto de regras de conteúdo econômico, ingressou no domínio da matéria constitucional brasileira associada à Ordem Social a partir da Constituição Federal de 1934. [25]

            A Constituição de 1988 separou a Ordem Social da Ordem Econômica, sendo que a esta se agregou o Sistema Financeiro Nacional (Título VII).

            Analisando a realidade constitucional brasileira, Paulo Henrique Rocha Scott identifica dois elementos fundadores da ordem econômica: a valorização do trabalho e a livre iniciativa. Ressalta o autor que "a sua presença no caput do artigo 170 da Constituição, cabe destacar, não consubstancia mero enunciado descritivo, mas a intenção clara de construção de uma norma condicionadora, por meio da qual ficassem legitimamente fixados - sem possibilidade de novos debates, novos questionamentos de ordem política e jurídica - os pontos de partida, os alicerces, o ‘lugar comum retórico de essência’ sem o ´´qual não se pode falar da existência de uma ordem econômica institucional brasileira’ ". [26]

            É correto, pois, afirmar, que, ao tratar dos princípios gerais da atividade econômica, a Carta de 1988 aponta para a estruturação de um sistema econômico descentralizado ao declarar que a ordem econômica é fundada na valorização de trabalho e na livre iniciativa, consagrando os princípios da propriedade privada, ainda que compreendida em sua função social, e da livre concorrência (art. 170, caput, e incisos II, III e IV).

            Ressalte-se que a garantia do direito de propriedade perpassa inúmeros dispositivos da declaração de direitos (Título II), compreendendo a propriedade dos meios de produção, inclusive a terra, a propriedade dita intelectual e até mesmo o direito de herança.

            O art. 5º, XIII, declara "livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" e o inciso XVIII do mesmo artigo conjuga a liberdade de empresa com a liberdade de associação, no sentido de propiciar a organização empresarial de feições societárias.

            No entanto, como bem lembra Elival da Silva Ramos, para que seja possível alcançar os objetivos fundamentais previstos no art. 3.° da Carta de 1988 (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; e reduzir as desigualdades sociais e regionais), instrumentalizados, em parte, pela efetivação dos direitos sociais previstos do art. 6.°, caput, da Constituição, há necessidade "de uma ampla e coordenada atuação do Estado, na ordem econômica, a qual, efetivamente, é agasalhada no título pertinente". [27]

            Desta forma, a Carta de 1988 conferiu ao Poder Público competência para planejar a atividade econômica global, sendo esse planejamento meramente indicativo para o setor privado, porém determinante para o setor público. Conferiu, ainda, ao Poder Público, no campo da atividade regulatória estatal, competência para reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

            Isto porque, como já foi dito anteriormente, o modelo descentralizado, caracterizado pela livre iniciativa e a livre concorrência, traz consigo o perigo da possibilidade de formação de cartéis e da concorrência desleal, que precisam ser combatidos.

            Além disso, há que se destacar a atividade estatal de fomento, genericamente mencionada no caput do art. 174 ("incentivo"), com desdobramento para alguns empreendimentos específicos nos §§ 2º, 3º e 4º desse mesmo dispositivo.

            Estes dispositivos constitucionais levaram alguns doutrinadores a apontar a coexistência de valores do liberalismo e do socialismo econômicos na Constituição de 1988.

            Paulo Henrique Rocha Scott, ao comentar o art. 170 e seus incisos, observa que existe, nesses dispositivos, uma composição de valores provenientes de diversas ideologias, algumas liberalistas e outras socialistas, o que poderia, para alguns, representar tão somente uma "tentativa infrutífera de conciliação de projetos e objetivos opostos, cuja maior conseqüência seria apenas a de gerar uma situação de conflito entre os muitos interesses dos grupos e classes que compõem a estrutura social, mas que, contrariamente, expressa a variedade de interesses e posturas ideológicas que estiveram presentes no processo constituinte para possibilitar uma consolidação normativa útil, formadora de uma única ordem econômica brasileira". [28]

            Para o autor, na realidade essa contradição "sequer existe, não podendo, por isso, servir de argumento inviabilizador da normatividade pretendida pelo artigo 170 da CF, nem da sua implementação pelos diversos grupos sociais, hegemonizadores ou não da política dominante". [29]

            José Afonso da Silva, ao tratar da ordem econômica, ressalta que são os elementos sócio-ideológicos que revelam o caráter de compromisso das constituições modernas entre o Estado liberal – que consagra uma declaração de direitos do homem com a finalidade de proteger o indivíduo contra a usurpação e abusos do poder - e o Estado social intervencionista – que busca suavizar as injustiças e opressões econômicas e sociais. Do embate entre estas duas ideologias, surgem, nos textos constitucionais, princípios de direitos econômicos e sociais, formando o chamado conteúdo social das constituições. [30]

            Apesar da aparente contradição da Carta de 1988, para José Afonso da Silva, não significa a adoção de outro sistema econômico que não o capitalista, posto que, no Brasil, a ordem econômica está apoiada inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170), o que "caracteriza o modo de produção capitalista, que não deixa de ser tal por eventual ingerência do Estado na economia nem por circunstancial exploração direta de atividade econômica pelo Estado e possível monopolização de alguma área econômica, porque essa atuação estatal ainda se insere no princípio básico do capitalismo que é a apropriação exclusiva por uma classe dos meios de produção, e, como é essa mesma classe que domina o aparelho estatal, a participação deste na economia atende a interesses da classe dominante". [31]

            Sob esse ponto de vista, a atuação do Estado é apenas uma tentativa de pôr ordem na vida econômica e social, de arrumar a desordem que provinha do liberalismo, por meio da imposição de condicionamentos à atividade econômica, não sendo correto afirmar que seus beneficiem as classes populares, vez que a função do Estado "consiste em racionalizar a vida econômica, com o que se criam condições de expansão do capitalismo monopolista, se é que tudo já não seja efeito deste". [32]

            Celso Ribeiro Bastos também observa esta aparente contradição na Carta de 1988, afirmando que o Título VII da Constituição Federal contém normas disciplinadoras de comportamentos diametralmente opostos, no âmbito da atividade econômica, uma vez que o texto constitucional alberga, no artigo 170, os princípios da livre iniciativa (caput) e o da livre concorrência (inciso IV), ao mesmo tempo em que acata e mantém um setor monopolizado pela União (art. 177).Tal fato decorre do entrechoque das tendências ideológicas que contribuíram para a elaboração da Carta Política de 1988 e aponta para a necessidade de alterações que, segundo o autor, "vão ajustando seus preceitos aos fins maiores preconizados pelo Texto Constitucional, contribuindo não só para sua permanência como um todo sistêmico, mas conferindo mais racionalidade ao próprio entendimento de sua teleologia, fundamento de uma ordem jurídica homogênea". [33]

            Assim, para a compreensão do texto constitucional deve-se conferir primazia aos princípios gerais, interpretando-se as exceções em seus estritos limites.

            Eros Roberto Grau afirma que, sendo a Constituição um sistema dotado de coerência, não se presume contradição entre suas normas, pois, caso contrário, estaríamos admitindo o absurdo de que na Constituição de 1988 haveriam duas ordens econômicas, uma neoliberal e outra intervencionista e dirigista. [34] Para elucidação deste ponto, o autor parte da identificação dos princípios constitucionais, assim enumerados:

            "- a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e como fim da ordem econômica (mundo do ser) (art. 170, caput);

            - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV) e - valorização do trabalho humano e livre iniciativa - como fundamentos da ordem econômica (mundo do ser) (art. 170, caput);

            - a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, I);

            - o garantir o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, II);

            - a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, III) - a redução das desigualdades regionais e sociais também como princípio da ordem econômica (art. 170, VII);

            - a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º); - a garantia do direito de greve (art. 9º);

            - a sujeição da ordem econômica (mundo do ser) aos ditames da justiça social (art. 170, caput);

            - a soberania nacional, a propriedade e a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte, todos princípios enunciados nos incisos do art. 170;

            - a integração do mercado interno ao patrimônio nacional (art. 219)". [35]

            Além desses princípios, Eros Roberto Grau ressalta a importância dos princípios gerais não positivados, dentre eles o princípio da ordenação normativa através do Direito Econômico, cujo primeiro passo no sentido de sua concreção é consignado no art. 24, I do texto constitucional. A partir da interação de tais princípios pode-se afirmar que a ordem econômica na Constituição de 1988 define uma opção pelo sistema capitalista.

            Com relação ao modelo econômico, Eros Roberto Grau conclui que a Constituição de 1988 projeta a instalação de uma sociedade estruturada segundo o modelo do Welfare State, visando, justamente, à consolidação da democracia. Para ele "há um modelo econômico definido na ordem econômica na Constituição de 1988, desenhado na afirmação de pontos de proteção contra modificações extremas" que descreve "como modelo de bem-estar". [36]

            Há que se ter em vista que entre direitos econômicos, sociais e culturais e direitos, liberdades e garantias existe uma relação indissociável, como bem aponta Canotilho, pois "se os direitos econômicos, sociais e culturais pressupõem a ‘liberdade’, também os direitos, liberdades e garantias estão ligados a referentes econômicos, sociais e culturais". O Estado como distribuidor de prestações sociais surge diante da incapacidade do mercado de, por si só, conduzir a uma distribuição/redistribuição justa dos "bens sociais".

            Torna-se necessário, pois, em uma sociedade democrática, o exercício, pelo Estado, de uma atividade conformadora e planificadora [37] das estruturas sócio-econômicas.

            Abandonando-se a crença no sistema de mercado como regulador de si mesmo, passa-se, hoje, até mesmo a exigir uma intervenção do Estado, como agente necessário ao bom funcionamento e ao equilíbrio necessário ao sistema econômico, chegando-se a um modelo econômico misto, que, segundo Rossetti, passou a ser adotado "exatamente para superar os problemas gerados pelos extremos do liberalismo sem planejamento e da planificação sem liberdade". [38]

Sobre a autora
Adriana Maurano

procuradora do Município de São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAURANO, Adriana. Sistema e modelo econômico na Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 918, 7 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7797. Acesso em: 23 dez. 2024.

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