UM EXEMPLO DE FALTA DE DECORO PARLAMENTAR
Rogério Tadeu Romano
O deputado Coronel Tadeu (PSL) pediu que um assessor gravasse o momento em que ele arrancava da parede uma placa exposta num dos corredores do Congresso. A imagem mostrava um homem negro algemado e morto diante de um policial, que andava com uma arma fumegante.
O parlamentar certamente não gostou da referência que o cartaz fazia ao "genocídio da população negra", associado à PM. Em vez de protestar como qualquer ser humano, atirou a placa ao chão e partiu ao meio. Depois, publicou um vídeo nas redes sociais para se vangloriar.
Há um crime de dano e ainda de injúria racial em concurso material somado a que se trata de um ato que fere o decoro parlamentar.
O artigo 163 do Código Penal preceitua: ¨Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.¨, prevendo pena de detenção de um a seis meses ou multa. As ações típicas alternativamente incriminadas consistem em: a) destruir(arruinar); b) inutilizar(tornar inútil, emprestável); c) deteriorar(estragar, corromper). No ensinamento de Nelson Hungria1 , na destruição, a coisa cessa de existir na sua individualidade anterior, ainda mesmo que não desapareça a matéria de que se compõe; na inutilização, a coisa não perde, individualmente, a sua individualidade, mas é reduzida, ainda que temporariamente, à inadequação ao fim a que se destina; com a deterioração, a coisa sofre um estrago substancial, mas sem desintegrar‐se totalmente, ficando apenas diminuída na sua utilidade ou desfalcada em seu valor econômico. Só existe crime de dano quando o fato constituir fim em si mesmo; desde que é meio para o outro crime, perde a sua autonomia e passa a ser elemento de crime complexo ou progresivo(RT 547/403)
A injúria racial é a mais aguçada e eficiente forma de segregação de grupos minoritários existentes em sociedade. Basta verificar que todos os tipos penais da Lei 7.716/89 são inócuos, exceto o art. 20 (uma singela conferência à jurisprudância nacional verá a quase total ausência de condenações com fundamento na Lei 7.716/89.
Com a injúria é atingida a honra subjetiva (sentimento que cada pessoa tem a respeito do seu decoro ou da dignidade). Exige-se, como tal, o dolo específico como elemento do tipo.
Se a injúria consiste no emprego de elementos preconceituosos ou discriminatórios relativos à raça, cor, etnia, religião ou origem, há uma injúria com preconceito. A introdução desse parágrafo ao artigo 140 do Código Penal, pela Lei nº 9.459/97 é extremamente louvável, objetivando combater o preconceito racial e religioso em geral, algo que é contrário, inclusive, à índole e tradição brasileiras. A sanção cominada (igual à do homicídio culposo, artigo 121, § 3 do Código Penal) é alta, com reclusão de um a três anos e multa.
O Anteprojeto do Código Penal previu a injúria preconceituosa ou injúria qualificada, num conceito mais amplo do que o atual (artigo 138,§ 2º do Anteprojeto) se a injúria consiste em referência à raça, cor, etnia, sexo, identidade ou opção sexual, idade, deficiência, condição física ou social, religião ou origem. Aqui, o ideal, é a que a previsão legal seja, pelo menos, de ação penal pública condicionada, como se vê da Lei 12.033/09, em que as ações penais nos crimes de injúria qualificada por discriminação passaram a ser de natureza pública condicionada (à representação da vítima). Pela gravidade da conduta, a pena sobe de prisão de um a três anos.
A modalidade básica do crime é a ação livre, dolosa, sendo absolutamente irrelevante a circunstância de se tratar, como na espécie, de ofensa proferida no limitado âmbito de comunicação direta e imediata entre o agressor e a vítima.
O crime de injúria por preconceito consiste, já se tem decidido, em ultraje à outrem, por qualquer meio, em especial por palavras racistas e pejorativas, deixando-se patenteada a pretensão de, em razão da cor da pele, se sobrepor à pessoa de raça diferente (RT 752/504).
Para além de criar uma qualificadora do crime de injúria devido ao preconceito embutido na ofensa, aumentando a reprovabilidade da conduta mediante a previsão de uma pena mais rigorosa, operou o legislador um sistema mais severo para o xingamento preconceituoso, afastando-se o reconhecimento para essa conduta de infração de menor potencial ofensivo, de modo a trazer óbices à concessão de benefícios aos autores do fato que são oferecidos no Juizado Especial Criminal. Assim, inviabiliza-se a transação penal, permite-se a prisão em flagrante e não mera lavratura de Termo Circunstanciado. Por certo, cabe fiança, como forma de contracautela à prisão cautelar que for realizada, nos termos da Lei.
A partir da Lei nº 12.033/09, basta a simples representação para que a Autoridade Policial possa atuar na fase investigatória e o Ministério Público seja legitimado para ajuizar ação penal pública sem qualquer ônus para o ofendido.
Houve falta de decoro parlamentar.
Com a Constituição-cidadã de 1988, após a redemocratização, temos o artigo 53, que, de forma ampla e irrestrita, assim prescrevia:
¨Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos¨
Ao contrário do preceito constitucional anterior, não é necessário que, por ocasião do fato, o congressista se encontre no exercício de suas funções legislativas no momento do evento criminoso ou que a manifestação constitutiva do fato ilícito penal verse sobre matéria parlamentar.
Já entendeu o Supremo Tribunal Federal ( RT 648/318.) que mesmo não fazendo a Constituição Federal referência expressa ao exercício das funções legislativas, não se dispensa a existência de nexo entre a manifestação de pensamento do congressista e sua condição.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que a garantia da inviolabilidade estava adstrita ao exercício do mandato ou da prática de ato dele decorrente. Opiniões, palavras e votos que se distanciarem das funções parlamentares não serão amparados pelo artigo 53, caput, da Constituição Federal.
Anoto que a inviolabilidade penal parlamentar não pode albergar abusos manifestos. Não foi certamente pensada para abrigar discursos e manifestações escabrosos, desconectados totalmente do interesse público e patentemente ofensivos inclusive ao decoro parlamentar (RT 648, p. 321; STF, Inq. 803-SP, Pleno, Octavio Gallotti, DJU de 13.10.95, p. 34249).
Decoro parlamentar é a conduta individual exemplar que se espera ser adotada pelos políticos, representantes eleitos de sua sociedade.
O decoro parlamentar está descrito no regimento interno de cada casa do Congresso Nacional brasileiro. Na constituição federal brasileira, no artigo 55, parágrafo 1.º diz: "É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas (art. 53) asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas".
Do que ocorreu houve uma verdadeira falta de sensatez, algo que é inadmissível na própria casa do povo, a Câmara dos Deputados, onde estão seus representantes.
Aqueles que mergulham em comportamento desvairado como o narrado devem ser vistos como pessoas que não respeitam a democracia.
O espetáculo travado foi no mínimo indecente.
Isso é algo que só pode ser explicado no “esgoto da civilização”.