O Tráfico de pessoas, segundo Ladeia, trata-se de um crime invisível, silencioso, que caminha de forma interligada ao tráfico de drogas, de órgãos e pele e de armas para diversas finalidades, seja para trabalhos forçados, servidão, escravidão, retirada de órgãos, casamento servil e exploração sexual, sendo que as principais vítimas são as mulheres1.
Depoimento2:
Em setembro de 1999 eu aceitei viajar junto com minha amiga. O taxista tirou todos os documentos para mim, comprou o bilhete da viagem e deu US$ 200 para cada, que seria para os gastos da viagem. Só que, todos os dias, ele adiava!
Um dia, às seis horas da manhã, chegou um recado que eu tinha que viajar naquele mesmo dia. Fui para o aeroporto... sem saber de nada como era lá.
Antes de viajar, o taxista disse que eu ia trabalhar em clube e ia ganhar muito bem, e não explicou nada mais.
Eu sabia que era prostituição... não sabia das condições desse trabalho!
Quando entrei no avião, eu pensei: eu estou indo, mas não sei se volto!
Tem clubes que é pior, pior, pior!
Eu nunca fiquei nesses.
A minha amiga estava em um que ela não podia passar mais de 5 minutos com um cliente! Leva multa!
Não pode sair até pagar a passagem! Só pode sair com um segurança acompanhando!
Eles têm medo da pessoa fugir e não pagar a passagem.
Até para ir a seu apartamento, tinha que ter um segurança!
Só fica liberada quando paga a passagem.
Fui embora com três meses!
E quando foi três meses, eu estava aqui de novo! É assim!
Quando tu começa, é um vício!
Dinheiro fácil é um vício!
Quando eu estava em Natal, liguei para o escritório.
Eles perguntaram se eu tinha algumas amigas. Se eu tivesse, podia mandar.
Todas as minhas amigas queriam viajar!
Eram muitas amigas minhas querendo ir!
A primeira chegou no Rio de Janeiro, desistiu da viagem e gastou o dinheiro para as despesas da viagem, que eu dei. Só não foi mais gente porque eu não queria ir com muita gente para não chamar atenção.
Mas eu disse tudo como era para elas. Vem quem quer!
Eu mandei umas amigas, só que eu não sabia que isso era tráfico, que era um delito. Eu não sabia! Eu viajei para Bilbao e, quando eu ligo para (minha) mãe... ela diz que a mãe de uma das meninas tinha ido lá em casa e disse... que eu estava traficando mulheres.
Eu fiquei louca! ‘O que eu vou fazer agora?
Eu sou traficante!
1. Características dos traficantes e aliciadores
Os traficantes de pessoas e os aliciadores são indivíduos que apresentam características variadas, podem ser pessoas ricas ou pobres, bem sucedidas ou não. Porém unanimemente entende-se que a maior motivação praticar este tipo de atividade é a financeira3.
Os fatores que envolvem essa rede partem das desigualdades sociais, da vulnerabilidade, da violência e da criminalidade, que na maioria das vezes essas mulheres e meninas enfrentam, as pessoas entram nos países com grandes facilidades, porém o cerne da questão está na existência da demanda pela exploração de seres humanos, e principalmente na rentabilidade. Os traficantes atraídos pelo lucro, os empregadores que pretendem com isso ascenderem socialmente através dos ganhos e por fim, porém não menos importante, aliás de onde oriunda a demanda, os consumidores desse sexo a partir de pessoas traficadas4.
Podem ser pessoas de grande proximidade com a vítima ou alguém que levou algum tempo para conquistar a sua confiança. Há também indivíduos que através de sites de relacionamentos, redes sociais entre outros, fazem convites tentadores com ganhos inimagináveis.
Sobre o aliciamento de menores, a melhor forma encontrada pelos recrutadores é o rapto, pois ele não precisa de supostamente ganhar a confiança da vítima. Já os adolescentes, os aliciadores conseguem enganá-los com mais facilidade.
Os recrutadores falam o que convém ouvir. E não mede esforços para enganar a vítima, tendo em vista que somente ele receberá algo pelo serviço realizado.
São pessoas com uma capacidade de convencimento muito grande, que não medem esforços para fazer com que a outra pessoa acredite em tudo o que elas dizem. Com uma promessa de obter lucros e ter uma carreira de sucesso, os recrutadores tiram os passaportes, documentos e vistos que as vítimas irão precisar, e quando chegam ao destino final retiram tudo que os mesmos deram para elas, trancafiando-as em locais desumanos e alegando que terão de trabalhar para pagarem as dívidas adquiridas se quiserem sair do local e voltar a ver seus familiares novamente.
2. Características das vítimas
De acordo com Leal e Leal5, não há um perfil exato que estabeleça um único padrão de escolha para quem serão as vítimas do tráfico de pessoas. As pessoas podem ser seduzidas por vários fatores, como pertencerem a classes sociais populares, baixa escolaridade e viverem em condições de vida precárias. Estas características, entre outras, podem chamar a atenção para o aliciamento por parte dos traficantes.
O sonho da maioria das vítimas do tráfico de seres humanos é terem uma situação econômica melhor do que possuem e crescerem profissionalmente em um país desenvolvido. Segundo a Organização Internacional para Migração (OIM) e os dados da PESTRAF,
o perfil da maioria das mulheres aliciadas para o mercado internacional do sexo é o de mulheres com baixa renda, jovens, negras, com baixo nível de escolaridade, de classes populares, com filhos e que exercem atividades laborais com baixa remuneração. A profissão das vítimas é variada. Além disso, a desigualdade de gênero está fortemente ligada as desigualdades raciais, e todas as dificuldades citadas anteriormente criam barreiras para que estas superem a situação de pobreza em que vivem. Diante desta situação as propostas de trabalho fora do lugar em que vivem se mostram bem interessantes6.
Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT), acrescenta que além dos motivos apresentados pela OIM e pelo PESTRAF, há outros fatores que devem ser levados em consideração para o tráfico de pessoas para fins sexuais, como: “instabilidade política, econômica e civil em regiões de conflito, emigração não legalizada, violência doméstica e ausência de oportunidades de trabalho”7.
Nota-se que a vulnerabilidade social e econômica faz com que muitas pessoas se deixem levar por ameaças, coações, abusos de autoridade ou promessas, como ofertas de emprego.
De acordo com o I Diagnóstico sobre o tráfico de pessoas8, no Brasil, as mulheres, principalmente jovens, tem sido levadas para outras cidades e para outros países com a promessa de poderem resgatar a sua cidadania, realizar os seus sonhos e terem melhores condições de vida. Com isso, são levadas pelos traficantes para os países da Europa, como Espanha, Portugal e Itália por causa da proximidade dos idiomas.
Trata-se de uma questão de consentimento, que pode ser medido através de uma escala de vitimização como propõem Ramina e Raimundo9, para demonstrar os diferentes graus de consentimento:
o primeiro nível dessa escala, e mais grave, é o da total coerção das vítimas, manifesto por meio do rapto, no qual não existe nenhuma forma de consentimento e nem de conhecimento por parte dessas mulheres. O segundo nível de vitimização é o das vítimas que escolhem emigrar para trabalhar no exterior, mas não com a prostituição e nem com a indústria do sexo. O consentimento impróprio destas mulheres é obtido através do engano e da fraude. O terceiro nível é manifesto pelas vítimas que sabem que vão trabalhar na indústria do sexo, mas não diretamente com a prostituição. E por último, e dito como menos grave, é o quarto nível, manifesto no caso das mulheres que consentem em trabalhar no exterior e com a prostituição, mas desconhecem o quanto serão controladas e exploradas no exercício desta atividade.
Para estes autores, torna-se difícil avaliar qual o grau de vontade própria da vítima tendo em vista a situação de controle no qual ela foi submetida. Mesmo elas tendo conhecimento que algumas das práticas, como a imigração ilegal, as condições precárias de trabalho e as atividades ligadas ao sexo não são situações legais ou eticamente corretas de se viver, prevalece a dúvida sobre o real motivo que as levaram a sujeitar-se a tal situação.
2.1. Intimidação das vítimas
Depois de feito o recrutamento e o transporte, as pessoas chegam no local onde serão exploradas sexualmente. É a partir deste momento que a verdade vem à tona e as elas percebem que foram enganadas. E desde então são submetidas a várias sessões de violências e espancamentos para forçá-las a obedecer-lhes.
A forma com que cada grupo criminoso utiliza para controlar suas vítimas varia, incluindo chantagem, intimidação, ameaça e violência física e psicológica. Algumas redes, para manter a obediência das vítimas utilizam métodos de coação, como castigo, além de fazer uso de muita violência tanto física quanto psicológica. Já outras, além da intimidação e ameaça, exercem o controle criando situações de servidão por dívida. Há também as redes de grupos de traficantes que adotam o controle de suas vítimas a base de drogas e bebidas alcoólicas, tornando-as tóxico-dependentes, deixando-as completamente dependentes de que as escravizam10.
A respeito da reação das vítimas durante a experiência traumática do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e econômica, tem-se:
Vítimas que sofreram abusos brutais de traficantes, como estupro grupal ou amputação de dedos como punição por desobediência, não conseguem encaixar as agressões dentro de qualquer sistema de valores de comportamentos humanos aceitáveis, perdem a capacidade de racionalizar sobre o ocorrido e entram em um processo de negação de que tenham passado por essas experiências -uma condição psicológica conhecida como "dissociação".
A dissociação atrapalha a capacidade das vítimas de reagir e é acompanhada por uma série de sintomas:
As vítimas podem reagir aos abusos de maneira extremamente indiferente e apática, o que é mais um sinal de que podem estar incapacitadas de perceber que a violência foi cometida contra elas mesmas;
As vítimas "despersonalizam" a experiência e passam a crer que ela aconteceu com outra pessoa;
As vítimas podem ficar com a noção de tempo alterada e sofrer danos na memória;
As vítimas podem sofrer fragmentação de percepção, sentimentos, consciência e memória;
As vítimas podem não ser capazes de recordar e descrever a experiência de maneira coerente e em detalhes. Em muitos casos, as vítimas somente conseguem narrar sensações e fragmentos de memória desconexos;
As vítimas podem sofrer "flashbacks", em que imaginam que os abusos estão mais uma vez sendo infligidos a elas. Esse processo pode ser despertado por coisas pequenas como um cheiro ou ruído específicos;
A experiência traumática permanece por anos e, em muitos casos, pelo resto da vida das vítimas, como um fator psicológico capaz de provocar pânico, terror, medo, tristeza ou desespero e se manifestar em fantasias, pesadelos traumáticos e recriações psicóticas das agressões11.
Diante desta realidade de opressão, independentemente da estratégia de controle, o principal objetivo dos traficantes de pessoas é denegrir a sua autoconfiança tornando-as complemente dependente deles.
Lembrando-se que a vítima pode apresentar a síndrome pós-traumática, que é a somatização de todas as situações de extremas de ameaças e violências vividas por ela. Situações de estupros, assaltos, testemunho da morte de outro indivíduo, podem causar um choque muito intenso na pessoa, deixando incapaz de compreender a natureza do que ocorreu com outra pessoa ou de aceitar o que aconteceu com ela mesma.
Notas
1LADEIA, Ansyse Cynara Teuxeira. Tráfico internacional de mulheres e seu enfrentamento no âmbito nacional e internacional. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/pesquisa/trafico-internacional-de-mulheres-e-seu-enfrentamento-no-ambito-nacional-e-internacional>. Acesso em 23 out. 2019.
2Márcia Buccelli Salgado, Delegada de Polícia Dirigente do Setor Técnico de Apoio às Delegacias de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo apud Dias, 2005.
3 Dias, op. cit., p. 24.
4RODRIGUES, Eliana Cacique Romano. O tráfico de seres humanos, com ênfase no tráfico de mulheres para exploração sexual: Uma análise da rota do Brasil para a Espanha e o avanço das políticas públicas de governo, 2017. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/6749/1/Monografia%20Eliana%20Cacique.pdf>. Acesso em 10 out. 2019.
5LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima. Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil. Brasília: CECRIA, 2002. Disponível em: <https://www.namaocerta.org.br/pdf/Pestraf_2002.pdf>. Acesso em 18 ago 2019.
6RODRIGUES, Eliana Cacique Romano. O tráfico de seres humanos, com ênfase no tráfico de mulheres para exploração sexual: Uma análise da rota do Brasil para a Espanha e o avanço das políticas públicas de governo, 2017. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/6749/1/Monografia%20Eliana%20Cacique.pdf>. Acesso em 10 out. 2019.
7RODRIGUES, Eliana Cacique Romano. O tráfico de seres humanos, com ênfase no tráfico de mulheres para exploração sexual: Uma análise da rota do Brasil para a Espanha e o avanço das políticas públicas de governo, 2017. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/6749/1/Monografia%20Eliana%20Cacique.pdf>. Acesso em 10 out. 2019.
8RODRIGUES, Eliana Cacique Romano. O tráfico de seres humanos, com ênfase no tráfico de mulheres para exploração sexual: Uma análise da rota do Brasil para a Espanha e o avanço das políticas públicas de governo, 2017. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/6749/1/Monografia%20Eliana%20Cacique.pdf>. Acesso em 10 out. 2019.
9RAMINA, Larissa; RAIMUNDO, Louise. Tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual: dificuldades conceituais, caracterização das vítimas e operacionalização. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 162-180, julho/dezembro de 2013.
10RAMINA, Larissa; RAIMUNDO, Louise. Tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual: dificuldades conceituais, caracterização das vítimas e operacionalização. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 162-180, julho/dezembro de 2013.
11 DIAS, op. cit. p. 32-33.