UM DIREITO ESSENCIAL QUE NÃO PODE SER OBJETO DE LIMITAÇÃO
Rogério Tadeu Romano
Segundo o Folhapress, o governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso um projeto de lei que praticamente acaba com a política de cotas para pessoas com deficiência ou reabilitadas. O PL 6.195/2019 permite que as empresas substituam a contratação pelo pagamento de um valor correspondente a dois salários mínimos mensais.
Para a vice-presidente da Ampid (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos), a subprocuradora-geral do trabalho Maria Aparecida Gurgel, todo o projeto de lei é grave para as pessoas com deficiência.
"Ele desconfigura toda a ação afirmativa que é a reserva de cargos", afirma.
O projeto traz ainda outras mudanças em relação às cotas, como a contagem em dobro quando da contratação de um trabalhador com deficiência grave, e a inclusão de aprendizes nessa verificação.
"Essa regra [da deficiência grave] parece boa, pois as pessoas com deficiência grave são as que mais têm dificuldades para serem incluídas, mas, no final das contas, quem é que vai dizer se é deficiência grave ou moderada?", afirma Tabata Contri, da Talento Incluir, empresa que presta consultoria para inclusão.
A questão se regre dentro do que chamamos ações afirmativas.
Sabemos que as ações afirmativas são discriminações lícitas que podem amparar e ainda resgatar fatia considerável da sociedade que se vê tolhida no direito fundamental de participação na vida pública e privada. Permitimos acesso a cargos e empregos públicos e privados, garante-se o acesso à educação, à saúde, como exemplo.
Como observou Charles Taylor(Multiculturalism and the politcs of recognition, New Jersey, 1992, pág. 26) reconhece-se que o problema é absolutamente indispensável para a sua solução. Admitir a discriminação, especialmente, quando ela se faz de modo não consciente, fundada em tradições socioculturais, não é coisa simples. É mover a maioria em favor de ações afirmativas geradoras, de custos socioeconômicos e políticos, é uma tarefa espinhosa e que certamente envolve riscos de erros e desacertos. Contudo, esse risco somente é assumido quando, admitimos sua indispensabilidade na configuração de uma sociedade democrática.
No Brasil, a despeito da situação de exclusão social pelos portadores de deficiência, não há como negar a existência de um número expressivo de normas de existência de um número expressivo de normas de conteúdo afirmativo em seu favor, o que não ocorre com as demais minorias. Todavia, o mais comum é que essas normas não tenham reconhecimento pelo Estado de sua efetividade jurídica, via de regra, por argumentos calcados no princípio da razoabilidade, no princípio da legalidade e pela prévia dotação orçamentária.
O núcleo desses direitos pode se ver na Lei nº 7.853/89, e seu regulamento, o Decreto nº 3.298/99 que, em seu conjunto, dispõem sobre a política nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Essa lei institui a Coordenadoria Nacional para a Integração do Deficiente(CORDE), bem como a validade do manejo de ações coletivas no âmbito estrito desses direitos.
Tem-se na área do trabalho:
“Apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação profissional.
Garantia de emprego às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
Promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privados, de pessoas portadoras de deficiência;
Adotar leis específicas para reserva de mercado de trabalho para pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado.”
Especificamente temos o artigo 9º daquela Lei:
Art. 9º A Administração Pública Federal conferirá aos assuntos relativos às pessoas portadoras de deficiência tratamento prioritário e apropriado, para que lhes seja efetivamente ensejado o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, bem como sua completa integração social.
§ 1º Os assuntos a que alude este artigo serão objeto de ação, coordenada e integrada, dos órgãos da Administração Pública Federal, e incluir-se-ão em Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, na qual estejam compreendidos planos, programas e projetos sujeitos a prazos e objetivos determinados.
§ 2º Ter-se-ão como integrantes da Administração Pública Federal, para os fins desta Lei, além dos órgãos públicos, das autarquias, das empresas públicas e sociedades de economia mista, as respectivas subsidiárias e as fundações pública
Tal se dá no sentido da admissão de portadores de deficiência nos cargos públicos.
É correto nesses casos, ter-se a definição prévia do total de vagas e do percentual reservado aos portadores de deficiência. Assim, por exemplo, se tivermos 50 vagas e 10% reservadas as pessoas portadoras de deficiência, o correto seria, dentro dos limites da razoabilidade, seria condicionar a nomeação de candidatos deficientes.
Há de se adotar-se critérios que permitam um tratamento prioritário para a minoria em questão, impedindo, inclusive, fraudes.
É certo que, no mundo dos fatos, há o obstáculo ao acesso por parte de deficientes ao mercado de trabalho e que se dá na falta de qualificação profissional.
De toda sorte, o projeto de lei representa um retrocesso.
Ora, há pela Constituição de 1988, de índole democrática, a proibição do retrocesso.
A matéria foi objeto de apreciação por J.J.Gomes Canotilho.
Com base nas lições de Canotilho, para quem os direitos sociais apresentam uma dimensão subjetiva, decorrente da sua consagração como verdadeiros direitos fundamentais e da radicação subjetiva das prestações, instituições e garantias necessárias à concretização dos direitos reconhecidos na Constituição, isto é, dos chamados direitos derivados a prestações, justifica-se a sindicabilidade judicial da manutenção de seu nível de realização, restando qualquer tentativa de retrocesso social.
Assumem, pois, a condição de verdadeiros direitos de defesa contra as medidas de natureza retrocessiva, cujo objetivo seria a sua destruição ou redução.
Nessa linha, o Tribunal Constitucional português reconheceu a existência do princípio da proibição de retrocesso social. Em 11.04.84, o tribunal proferiu o paradigmal Acórdão nº 39/84, que declarou a inconstitucionalidade de lei infraconstitucional que revogara parte considerável da Lei nº 56/79, que instituíra o Serviço Nacional de Saúde daquele país. O relator da questão, Conselheiro Vital Moreira, rejeitou a tese de inconstitucionalidade formal e passou à análise da inconstitucionalidade material do art. 17 do Decreto-lei nº 254/82. Entendeu o Conselheiro que, ao instituir o SNS, a Lei nº 56/79 era um meio de realização do direito fundamental à proteção à saúde com consagração no art. 64º da Constituição e que, mediante o art. 17º do Decreto-lei nº 254/82, o Governo legislara sobre direito à saúde e extinguira o SNS. Ao proferir seu voto, Vital Moreira tratou dos direitos sociais, especialmente os de proteção à saúde, como direitos fundamentais, observando que estes não possuem natureza semelhante a dos direitos, liberdades e garantias, isto é, dos direitos de liberdade, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Em relação aos direitos sociais, aduziu o relator que se acentua o seu caráter positivo ao exigir prestações positivas do Estado, sem que se negue a jusfundamentalidade desses direitos sociais. Partindo dessas manifestações, o relator desenvolveu os argumentos da proibição de retrocesso social, afirmando a inconstitucionalidade do debatido art. 17º do Decreto-lei nº 254/82.
Os direitos sociais fundamentais são direitos elementares, que remetem à própria natureza do ser humano. Privar alguém de direitos fundamentais significa, em última análise, privá-lo da vida ou do direito de pertencer à sociedade na qual se integra. Conforme a lição de Dallari, “esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”, como observou Dalmo de Abreu Dallari(Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1988, p.7).
Ainda Canotilho(Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Almedina, pág. 332) dizia que o principio da democracia econômica e social aponta para a proibição do retrocesso social.
A ideia tem sido designada como proibição de contra-revolução social ou da evolução reacionária. Com isso quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos, uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. Disse Canotilho: “A proibição do retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas, mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos(segurança social, subsídios de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança do cidadão”.
No entanto, lembro a palavra de M. Afonso Vaz(Lei e reserva de lei. A causa da lei na Constituição de 1976, 1992, pág. 385) quando critica também a tese da irretroatividade dado que a reserva da Constituição pressupõe a autonomia do legislador em matérias que a Constituição não reservou nem pode reservar o conteúdo material. Assim o legislador “cria” os direitos sociais, o legislador “dispõe” dos direitos sociais. Mas fica por demonstrar o essencial, em que medida se dispõe autonomamente do núcleo essencial dos direitos sociais efetivado na lei. Existe, sim, um poder legislativo de auto-reversibilidade” abstrato.
O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas, deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estatais que sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios se traduzem na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples daquele núcleo essencial. Como ensinou ainda Canotilho, não se trata, pois de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou de garantir em abstrato um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.
Nesse enfoque deve ser analisada a questão.
O problema é que o atual governo federal, dentro de uma linha neoliberal que não se adequa ao texto constitucional, vê a questão como simples imperativo das regras de mercado, no sentido de que é ele quem governa as relações econômicas, pura e simplesmente.