Sumário: 1 Introdução. 2 Valor Venal de Referência. 3 A jurisprudência do TJSP. 4. A tese adotada pelo TJSP gera distorção inadmissível. 5 A tese sustentada pelo TJSP afronta a jurisprudência do STJ. 6 Conclusão
Palavras-chaves: ITBI; IPTU; base de cálculo; valor venal; transmissão imobiliária
1 Introdução
Continua grassando controvérsia nos tribunais acerca da base de cálculo do ITBI. É frequente a confusão entre a fixação de regras para a apuração da base de cálculo, tarefa cabente ao legislador, com a disponibilização do valor venal de cada imóvel cadastrado na Prefeitura com efeito vinculante ao contribuinte. Resta claro que a apuração da base de cálculo do imóvel objeto de transmissão é tarefa do fisco municipal, sempre dependente de efetiva ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.
A jurisprudência do TJSP, com base na legislação revogada desde 2006, fixou, recentemente, a tese da alternatividade da base de cálculo do ITBI – valor da transmissão do bem imóvel ou o valor venal do IPTU – prevalecendo o que for maior. É um grande equívoco, como mais adiante demonstraremos.
2 Valor Venal de Referência
A Municipalidade de São Paulo, com o manifesto propósito de aumentar o imposto sem lei, engendrou a figura do Valor Venal de Referência – VVR – como base de cálculo desse imposto.
Esse VVR resulta de pesquisas de mercado imobiliário feitas por burocratas da Secretaria das Finanças do Município que vão alimentando periodicamente o computador da Secretaria com o valor de mercado relativamente a todos os imóveis cadastrados na Prefeitura para fins de IPTU. Esse Valor Venal de Referência disponibilizado no computador do fisco municipal com efeito vinculante ao contribuinte é infinitamente superior ao Valor Venal do imóvel que resulta da aplicação da lei de regência da matéria para fins de lançamento do IPTU, ou seja, da Lei nº 10.235/86. É bom que fique claro, desde logo, que a lei não fixa o valor venal de cada imóvel; ela contém regras objetivas para apuração do valor venal de cada imóvel por ocasião do lançamento pela autoridade administrativa competente.
Os burocratas da Prefeitura confundiram ato de lançamento, quando se apura a base de cálculo do imposto, com a atividade legislativa cabente ao Poder Legislativo que consiste em fixar critérios objetivos para a apuração, pelo Executivo, do valor venal de cada imóvel a ser concretamente tributado.
Ora, não cabe ao burocrata da Prefeitura avaliar concretamente o valor de cada um dos milhares de imóveis cadastrados, por meio de pesquisa de mercado, inserindo o resultado dessas pesquisas no computador da Secretaria de Finanças para sua utilização compulsória por ocasião de cada operação de transmissão imobiliária. Não há como pretender preestabelecer in abstrato o valor venal de cada um dos milhares de imóveis, tendo em vista as futuras e possíveis operações imobiliárias. A apuração do aspecto quantitativo do fato gerador, por óbvio, é medida que se impõe apenas quando ocorrido no mundo fenomênico a situação abstrata e genericamente prevista na norma jurídica de incidência tributária, ou seja, quando houver subsunção do fato concreto à hipótese legal prevista.
Essa figura, que não tem apoio na ordem jurídica vigente, aproxima-se da figura da base de cálculo presumida do ICMS em que se apura antecipadamente o aspecto quantitativo do imposto que será devido no futuro, na subsequente etapa de movimentação da mercadoria.
Não se pode confundir critérios objetivos para a apuração do valor venal de cada imóvel, como faz corretamente a Lei nº 10.235/86, com a apresentação do valor venal concreto de cada imóvel para futura e eventual tributação. Não cabe ao fisco apontar o valor venal do imóvel antes de ocorrido o fato gerador. Cabe à administração tributária, em cada caso concreto, fixar o valor do imóvel objeto de tributação com base em critérios previamente definidos em lei.
Por tais razões, o Egrégio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo declarou a inconstitucionalidade do Valor Venal de Referência instituído pelo Município de São Paulo (Arguição de Inconstitucionalidade_nº 0056693-19.2014.8.26.000, Rel. Des. Designado Paulo Dimas Mascaretti, DJe de 23-4-2015).
3 A jurisprudência do TJSP
Afastado o VVR que exacerba o valor do ITBI a ser pago, o TJSP vinha perfilhando a tese da adoção do valor da transação, bem como o entendimento de que a base de cálculo desse imposto é o valor do negócio jurídico realizado ou o valor venal para fins do IPTU, prevalecendo aquele que foi maior, conforme ementas abaixo:
"APELAÇÃO CÍVEL – Embargos à execução – Município de São Paulo – ITBI - Cabimento do recolhimento do imposto com base no valor da transação – Arbitramento - Omissão ou má-fé da contribuinte não verificadas - Procedimento administrativo sem observância do contraditório e da ampla defesa – Inadmissibilidade - Inteligência do artigo 148 do Código Tributário Nacional - Sentença mantida – Recursos oficial não conhecido e voluntário da Municipalidade não provido." (Apelação nº 9000024-13.2011.8.26.0090, Rel. Des. Mônica Serrano, DJe de 20-12-2014).
"APELAÇÃO - Base de cálculo de ITBI - Município que utiliza padrão de base de cálculo diferente da do valor venal do imóvel para fins de IPTU - Ofensa ao princípio da legalidade - Utilização, para fins de tributação, do valor venal utilizado para a cobrança do IPTU ou valor do negócio traduzido no instrumento de compra e venda, o que for maior - Precedentes - Sentença reformada - Recurso provido." (Apelação nº 1005199-36.2014.8.26.0053, Rel. Des. Mônica Serrano, DJe de 07/01/2015).
"APELAÇÃO - MANDADO DE SEGURANÇA ITBI - Base de Cálculo. Valor venal do imóvel ou o valor da transação, prevalecendo o que for maior. Ilegalidade da apuração do valor venal como previsto no Decreto Municipal 51.627/2012 - Ofensa ao princípio da legalidade tributária, artigo 150, inciso I da CF - Precedentes RECURSO DE OFÍCIO. Sentença sujeita ao reexame necessário, nos termos do art. 14, § 1°, da Lei 12.016/09. Recursos não providos." (Apelação nº 1016503-66.2013.8.26.0053, Rel. Des. Claudio Marques, DJe de 20-12-2014).
"APELAÇÃO. Mandado de segurança. Imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis. Base de cálculo. Valor venal consignado no último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou o valor de aquisição do bem, o que for maior. Ilegalidade da apuração do valor venal como previsto no Decreto Municipal 46.228/05 e no artigo 7º-A da Lei Municipal 11.154/91, com a redação dada pela Lei Municipal 14.256/06 (São Paulo). Aplicação do estatuído no artigo 38 do Código Tributário Nacional, bem como nos artigos 7º e 8º da Lei Municipal 11.154/91. Recurso provido." (Apelação nº 0024603-66.2009.8.26.0053, Rel. Des. Geraldo Xavier, DJe 03-12-2014).
Como se verifica a maioria dos julgados fixou a tese da alternatividade da base de cálculo do ITBI. Essa estranha alternatividade, abolida desde 2006 do ordenamento jurídico municipal, por configurar norma tendenciosa que fere o princípio da neutralidade da legislação tributária, não encontra guarida no sistema constitucional tributário.
Todavia, em recente julgamento em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, por maioria de votos, o TJSP uniformizou a sua jurisprudência no sentido da prevalência do maior valor, conforme ementa abaixo:
“EMENTA: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - ITBI - BASE DE CÁLCULO - Deve ser calculado sobre o valor do negócio jurídico realizado ou sobre o valor venal do imóvel para fins de IPTU, aquele que for maior, afastando o “valor de referência” - Ilegalidade da apuração do valor venal previsto em desacordo com o CTN - Ofensa ao princípio da legalidade tributária, artigo 150, inciso I da CF - Precedentes - IRDR PROVIDO PARA FIXAR A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO, PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR” (IRDR nº 2243516-62.2017.8.26.0000/SP, Relator Designado Des. Burza Neto, j. 23-5-2019).
O voto minoritário da lavra do Desembargador Eutálio Porto, com sólido apoio na Jurisprudência do STJ, firmou a tese de que o valor da base de cálculo do ITBI é o valor real da venda do imóvel, sendo que nos casos de divergência deve se proceder nos termos do art. 148 do CTN.
De fato, a matriz constitucional do ITBI é a transmissão onerosa, inter vivos, de bens imóveis ou de direitos reais sobre bens imóveis que pressupõe a existência de um preço. Em sendo assim, nenhuma lei infraconstitucional pode fixar a base de cálculo desse imposto em dissonância com o preço da transmissão, normalmente, consignado na escritura de compra e venda, um documento que merece fé pública, nos exatos termos do art. 19, II da CF [1]. Na hipótese em que o preço consignado na escritura pública de transmissão da propriedade imobiliária for notoriamente inferior ao valor de mercado cabe ao fisco proceder ao arbitramento desse valor de conformidade com o disposto no art. 148 do CTN, e não o contrário, isto é, o fisco consignar um valor venal de forma arbitrária e sujeitar o contribuinte a requerer avaliação contraditória, como vem acontecendo na prática.
Esclareça-se, outrossim, que a alternatividade que estava no art. 8º da Lei nº 11.154/91 que rege o ITBI no Município de São Paulo, posteriormente revogado pela Lei nº 14.256/2006, não tinha o menor amparo no sistema constitucional tributário, porque a relação jurídico-tributária material e processual rege-se pelo princípio da neutralidade ou da imparcialidade. A legislação tributária não pode ser pró contribuinte, nem pró fisco, mas tão somente pró lege.
Não pode o fisco optar pelo maior valor, da mesma forma que não cabe ao contribuinte optar pelo menor valor. Tributo é um conceito certo e determinado não podendo existir dois valores distintos à opção do fisco ou do contribuinte. O valor do tributo há de resultar exclusivamente da aplicação da lei que define a base de cálculo de cada tributo, e não da vontade do fisco ou do contribuinte. E não pode haver duas definições dessa base de cálculo, ainda que em termos alternativos por implicar descaracterização do tributo como um conceito certo e determinado. Não existe, nem pode existir tributo de valor X ou Y à escolha do fisco. Por isso, o art. 8º da Lei nº 11.154/91 foi revogado pela Lei nº 14.256/2006.
Passados mais de uma década da revogação da lei, na verdade inconstitucional, o TJSP fixou o entendimento segundo o qual deve-se promover a aplicação do critério alternativo de fixação da base de cálculo do ITBI, em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, acreditando ser uma boa política tributária para favorecer a Fazenda.
É muito ruim para o cidadão, para a sociedade e para o Estado Democrático de Direito quando um órgão imparcial, ou que deveria ser imparcial, começa a decidir com vistas ao interesse da Fazenda, invariavelmente contrário ao interesse do cidadão-contribuinte. Não se pode confundir interesse do Estado, sempre voltado para o fim de interesse público, com o interesse privado do poder público representado pela Fazenda. O conflito de interesses entre o fisco e o contribuinte, assim como entre os particulares ou entre os poderes públicos, cabe ao Estado dirimir por meio de seu órgão jurisdicional que é ou deveria ser necessariamente imparcial, por exercer a jurisdição em regime de monopólio estatal.
4 A tese adotada pelo TJSP gera distorção inadmissível
Um detalhe que tem passado despercebido pelos ínclitos magistrados do TJSP, bem como pelos estudiosos da matéria em geral é que a adoção indiscriminada do valor venal do IPTU como sendo a base de cálculo do ITBI gera uma distorção inadmissível, pela gritante injustiça que esse fato provoca em algumas situações peculiares. Quando a injustiça decorre da lei a solução a ser buscada é a reformulação da lei. Mas, quando a injustiça decorre da errônea aplicação da lei cabe ao órgão competente corrigir o equívoco.
Suponha-se a transmissão de unidades de garagens autônomas situadas em um prédio residencial de alto luxo. O metro quadrado da unidade autônoma, no caso, terá um valor infinitamente superior ao valor do metro quadrado de uma unidade autônoma de prédio residencial de baixo padrão construtivo.
Pois bem, para os proprietários de unidades autônomas e das respectivas vagas nas garagens aplica-se o princípio o acessório segue o principal. Assim, transpõe-se o valor do metro quadrado da unidade autônoma para as vagas das garagens situadas nos subsolos, normalmente de padrão rústico (pisos cimentados, paredes e tetos sem revestimentos de massa corrida, encanamentos à mostra, iluminações deficientes etc.). Pagarão o IPTU das garagens mais caro do que deveria resultar da apuração do valor venal de acordo com o padrão rústico da construção. Entretanto, por ser uma diferença de pequeno valor, tendo em vista a diminuta área das vagas, não se tem visto contestação desse fato em juízo.
O problema surge quando o proprietário das garagens situadas nos prédios residenciais de alto luxo não for proprietário de unidades autônomas. Hoje, é comum as construtoras de prédios luxuosos destinar garagens nos subsolos para o fim de comercialização com terceiros não proprietários de unidades autônomas que passam a explorar o serviço de estacionamento.
Patente que nessa hipótese não cabe a aplicação do princípio acessório segue o principal. Impõe-se a apuração do valor venal das vagas dessas garagens de acordo com o padrão rústico de construção, nada tendo a ver com o valor do metro quadrado da unidade autônoma de elevado padrão construtivo.
A Prefeitura de São Paulo não vem fazendo essa distinção, utilizando o valor do metro quadrado da unidade autônoma de elevado padrão construtivo para calcular o valor venal das vagas de estacionamentos situadas nos subsolos rústicos e aplicando a alíquota de 1,5%, porque consideradas de natureza comercial essas vagas autônomas.
Como sustentamos em nossa obra, de duas uma: “ou essas garagens são acessórias e como tais devem ser tributadas como unidades residenciais, ou são independentes, devendo ser classificadas no tipo e padrão próprio” [2].
A astuta Prefeitura de São Paulo considera essas garagens autônomas como acessório da unidade autônoma do prédio de luxo para fins de aplicação do valor do metro quadrado das unidades autônomas, porém para fins de aplicação da alíquota diferenciada de 1,5% contra 1% considera as mesmas garagens como unidades independentes. Cabe ao Judiciário reprimir esse tipo de conduta que além de ilegal é imoral.