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UM EXEMPLO PRÁTICO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Agenda 23/12/2019 às 08:58

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE DENÚNCIA CONTRA O ATUAL PRESIDENTE DA OAB.

UM EXEMPLO PRÁTICO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Rogério Tadeu Romano

 

O MPF denunciou o presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, pelo crime de calúnia contra o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.

O parquet imputa o crime a Santa Cruz por causa de uma afirmação feita por ele divulgada em matéria no site do jornal Folha de S.Paulo.

Em 8 de agosto, o presidente da OAB emitiu uma nota oficial sobre o assunto, na qual argumentou que a fala discutida seria uma crítica "jurídica e institucional, por meio de uma analogia e não imputando qualquer crime ao ministro".

Na denúncia, o MPF diz que, ao afirmar que a conduta do ministro da Justiça é parecida com a de alguém que exerce função de "chefe de quadrilha", o presidente da OAB imputou a Moro a prática de conduta criminosa tipificada no artigo 288 do CP.

"Nesse sentido, as justificativas apresentadas na defesa prévia, juntada ao Procedimento Investigativo Criminal que subsidia a presente denúncia, corroboram que, no momento da declaração, o Presidente do Conselho Federal da OAB tinha por intenção acusar, de maneira clara e dolosa, o Ministro da Justiça Sérgio Moro indicando que ele era, realmente, o chefe de uma organização criminosa que buscava destruir, de maneira ilícita, o material apreendido pelo Departamento de Polícia Federal no âmbito da Operação Spoofing", sustenta o parquet.

Por esta razão, o MPF alega que Santa Cruz incorreu no crime de calúnia, previsto no artigo 138 do CP, e pontua que incide no caso o aumento de pena, pois a suposta calúnia foi direcionada a funcionário público e em razão das funções que Moro exerce.

"O dolo fica ainda mais explícito quando analisado o contexto em que se deu a entrevista sendo que a fala de FELIPE SANTA CRUZ em que pese ter um fundo 'jurídico', já que estava imputando, de maneira dolosa e sem provas, a prática de uma conduta criminosa, nada teve de 'institucional', refletindo apenas a leitura pessoal do interlocutor quanto aos desdobramentos de uma operação policial cotejada a frações de informações publicadas pelos diversos meios de comunicação."

Segundo o parquet, a leitura do presidente da OAB, ao considerar jurídica e institucional sua fala, "além de apressada e carecedora de fundamento jurídico, demonstra uma profunda confusão entre as esferas institucionais e pessoais no âmbito do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ante ao fato de que o atual Presidente, FELIPE SANTA CRUZ, utiliza o manto de uma das principais instituições no Estado Democrático Brasileiro para agir como militante político e impor sua visão política pessoal ao arrepio dos deveres institucionais da OAB".

 Além da denúncia por calúnia, o MPF também solicitou o afastamento de Felipe Santa Cruz da presidência da OAB, por ter afirmado que Moro "banca o chefe da quadrilha ao dizer que sabe das conversas de autoridades que não são investigadas", em referência à operação Spoofing, que atingiu hackers que supostamente invadiram celulares de autoridades, entre elas Sergio Moro e procuradores da Lava Jato.

Pouco depois de dar a declaração que motivou a atual denúncia do MPF, Santa Cruz já havia negado qualquer intenção de imputar crime ao ministro.

“Minha afirmação não teve, em qualquer momento, a motivação de ofender a honra do ministro Sergio Moro. Ao contrário, a crítica feita foi jurídica e institucional, por meio de uma analogia e não imputando qualquer crime ao ministro”, disse na ocasião.

Questiona-se se houve ofensa à honra.

Na calúnia, a ação incriminada consiste em imputar a alguém falsamente a prática de um crime.

O fato atribuído, na calúnia, deve ser um crime, isto é, uma conduta penal vigente definida como crime. Assim, a imputação de contravenção pode se caracterizar em difamação. Nas mesmas penas do crime de calúnia incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala e divulga. Na redação do Anteprojeto, há que segue, no artigo 136,§ 1º: ¨Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a divulga."

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Na identificação do que se deva entender por honra, a doutrina, de forma tradicional, distingue dois diferentes aspectos: um subjetivo, outro objetivo. Subjetivamente, a honra seria o sentimento da própria dignidade; objetivamente, reputação, bom nome e estima no grupo social.

Conhecida é a lição de Antolisei, citada por Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial, 7º edição, pág. 179), de que “a manifestação ofensiva tem um significado que, embora relacionado com as palavras pronunciadas ou escritas, ou com os gestos realizados, nem sempre é idêntico para todas as pessoas. O que decide é o significado objetivo, ou seja, o sentido que a expressão tem no ambiente em que o fato se desenvolve, segundo a opinião da generalidade das pessoas. Como bem esclarece o antigo professor da Universidade de Turim, o mesmo critério deve ser seguido, em relação ao valor ofensivo da palavra ou do ato, não se considerando a especial suscetibilidade da pessoa atingida. Isto, porém, não significa que não seja muitas vezes relativo o valor ofensivo de uma expressão, dependendo das circunstâncias, do tempo e do lugar, bem como do estado e da posição social da pessoa visada, e, sobretudo, da direção da vontade(animus injuriandi).”

Na difamação, a ação consiste em atribuir a alguém a prática de determinado fato, que lhe ofende a reputação ou o bom nome. A reputação é a estima que se goza na sociedade, em virtude do próprio trabalho ou de qualidades morais, da habilidade em uma arte, profissão ou disciplina, algo mais do que a consideração e menos do que o renome e a fama.

Por sua vez, a injúria refere-se à dignidade e ao decoro, que a doutrina interpreta no sentido de honra subjetiva.

As injúrias podem ser praticadas pelas mais variadas formas, por gestos, palavras, símbolos, atitudes, figuras etc, consumando-se desde que chegue a conhecimento do ofendido ou de qualquer outra pessoa.

Com o devido respeito, com todas as vênias, entendo que não se constata o elemento subjetivo dolo, próprio da ação de caluniar na conduta do atual presidente da OAB.

Tratou-se de uma crítica institucional onde, para interpretá-la, deve se levar em conta o conteúdo das palavras emitidas.

Pode ser o direito penal um instrumento para cerceamento da liberdade de expressão?

A meu ver, não.

A frase emitida não retrata uma conduta criminosa por parte do atual ministro da Justiça. Retrata, sim, uma crítica a sua atitude tomada em certo caso, trazendo ideias emitidas que devem ser levadas em conta num Estado Democrático de Direito, onde a divergência de opiniões é de sua essência.

O caso deve ser julgado dentro dos limites da liberdade de expressão.

A liberdade de opinião resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Daí que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida de outras, sendo a liberdade do indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento intimo, quer seja a tomada de uma posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se creia verdadeiro, como dizia José Afonso da Silva (Direito Constitucional positivo, 5ª edição, pág. 215).

De outro modo, a liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião. A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processo ou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.

A liberdade de manifestação de pensamento que se dá entre interlocutores presentes ou ausentes, tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir, de forma clara, a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.

 Ainda se fala em liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica e direitos conexos, de forma que não cabe censura, mas classificação para efeitos indicativos (artigo 21, XVI).

Deve-se respeitar a liberdade de expressão, o direito de se expressar livremente, a faculdade de apresentar um pensamento, um dos pilares da democracia.

Com o devido respeito, o Parquet não pode servir de instrumento para cerceamento da liberdade de expressão.

A postura do advogado, qualquer advogado, deve ser sempre de alerta, de debate, de crítica e essa foi a atitude de Felipe Santa Cruz, notadamente dentro dos limites que se espera em uma sociedade amadurecida. A advocacia, por imperativo constitucional, é indispensável à administração da Justiça e não deve se calar.  

No passado, a OAB foi atacada inclusive por atos de terrorismo, onde se procurou atingir a pessoa de seu então presidente, Eduardo Seabra Fagundes e acabou se matando a Senhora Lyda Monteiro da Silva que, ao abrir a correspondência, fez explodir a carta-bomba. Mesmo naquela época, o governo autoritário não ousou retirar o presidente da OAB do cargo.

O objetivo era, sem dúvida, interromper o processo de abertura política.   

Diante da Constituição-cidadã de 1988, não cabe cercear a opinião crítica, feita sem qualquer contexto de afrontar dolosamente por fato que seja entendido por criminoso.

Por fim, alerte-se que se não há a intenção de ofender a honra não há falar em crime de calúnia.

Num Estado Democrático de Direito, não se concebe o afastamento de um presidente da OAB por conta de manifestação de suas ideias. Isso é próprio de ditaduras.

O pleito de afastamento é medida, certamente, desproporcional e desnecessária, agredindo a proporcionalidade.

Concentram-se os requisitos na necessidade e adequação (artigo 282, I e II, do CPP), que estão intimamente ligados ao princípio da proporcionalidade. Assim, a análise com relação à gravidade real da conduta é o índice a ser levado em conta para atendimento da medida, ou seja, sua adequação.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida, e, ainda, uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins.

Tais ilações foram essencialmente de cogitação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ao externar um outro qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou da necessidade da medida. Conhecido ainda como princípio da menor ingerência possível, consiste no imperativo de que os meios utilizados para consecução dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É o que conhecemos como proibição do excesso.

Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, que se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

Aguarda-se o pronunciamento do Poder Judiciário, no sentido da absolvição sumária do acusado.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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