SUMÁRIO:Justificativa.1.Introdução.2.Histórico Institucional..3.A reorganização da indústria de gás natural.4.A Lei 9478/97: uma visão crítica.5.Projeto de Lei do Gás Natural. 5.1.Senado Federal ou Ministério de Minas e Energia? – Corte metodológico.5.2.Manutenção de dispositivos e não revogação da Lei nº 9478/97.5.3.Definições técnicas mais detalhadas atentas às peculiaridades da indústria de gás natural.5.4.Ratificação do transporte e da importação e exportação do gás como monopólios da União.5.5.Criação do Operador do Sistema de Transporte de Gás Natural – ONGÁS.5.6.Novas atribuições da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.5.7.Adoção do regime de concessão para a atividade de transporte.5.8.Princípios tarifários e critérios de cálculo e revisão.5.9.Livre acesso aos gasodutos de transporte.5.10Manutenção da faculdade dos Estados fixarem prazo de exclusividade nas atividades de distribuição e na comercialização.5.11.Alterações na Lei 9478/97.6.Sugestões da Associação Brasileira de Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado.7.Atualidades.8.Conclusão/ Referências Bibliográficas
JUSTIFICATIVA
O presente artigo foi solicitado aos alunos da 6ª Turma do Mestrado em Regulação da Indústria de Energia, da Universidade Salvador – UNIFACS –, pelo professor Eledir Vitor Sobrinho, enquanto trabalho final da disciplina Regulação da Indústria do Gás Natural.
Deveriam os alunos escolher um tema de seu interesse, o mais próximo possível de sua área de conhecimento, e sobre ele discorrer. Dessa forma, os autores destes escritos, com formação jurídica, optaram por fazer uma análise do quadro jurídico-institucional atual, bem como das possibilidades vindouras e suas respectivas conseqüências, em caso de aprovação de um novo marco regulatório para a indústria do gás natural.
Primeiramente, procurou-se uma abordagem crítica dos mecanismos legais vigentes, atinentes à indústria gasífera, apontando-se suas vantagens e desvantagens, bem como os anseios do mercado de gás natural, em busca de regras mais claras eficientes para o setor.
A posteriori, buscou-se uma análise pormenorizada do Projeto de Lei n.º 226/2005, de autoria do Senador Rodolfo Tourinho, considerado por muitos especialistas como o futuro marco regulatório para a indústria de gás natural.
Assim, o presente trabalho procurará, num exercício jurídico-institucional, fazer projeções das possibilidades de evolução para o setor, tendo sempre como contraponto a estrutura vigente, caso o mencionado projeto de lei venha a ser aprovado pelo Congresso Nacional.
1. Introdução
A indústria de gás natural no Brasil tem-se revelado de extrema importância no sentido de atingirmos as metas de desenvolvimento social e econômico sustentáveis, em razão de diversos fatores, tais como: flexibilidade de uso, facilidade de manipulação pelos consumidores e, sobretudo, pelo reduzido impacto ambiental, principalmente se comparado aos demais combustíveis de origem fóssil.
Com as mudanças advindas do modelo neoliberal na década de 90, que provocaram alterações estruturais de monta na indústria brasileira (vide setor elétrico e telecomunicações), culminando com a flexibilização do monopólio da Petrobrás (Emenda Constitucional nº 9) e a conseqüente edição da Lei nº 9.478/97, também conhecida como Lei do Petróleo, cumpre-nos, neste momento, trazer à baila alguns aspectos polêmicos, que, no entanto, revelam-se de suprema importância para o desenvolvimento desta infante indústria.
Nossa proposta consiste da análise crítica do modelo jurídico-institucional vigente, abordando, sobretudo, as conseqüências nefastas para o setor da ausência de um arcabouço legal mais consistente.
Além disso, propomos a análise do Projeto de Lei nº 226/05, de autoria do senador Rodolfo Tourinho, considerando suas vantagens para o cenário que se vislumbra neste segmento.
Através desta abordagem, pretendemos contribuir para o aprimoramento e aprofundamento dos debates, haja vista a necessidade premente de um novo marco regulatório que, certamente, revelar-se-á de extremo valor para o desenvolvimento desta indústria.
2. Histórico Institucional
A participação do gás natural na matriz energética brasileira, a despeito das diversas vantagens comparativas em relação aos demais combustíveis, bem como dos indicadores de reservas crescentes, revela-se ainda incipiente, na ordem de 8%, ao passo que a média mundial é de 24%.
Neste contexto, e atento às curvas que sinalizam uma demanda em ascensão, bem como as aspirações ambientais que se têm revelado de suprema importância, sobretudo no cenário internacional, o governo brasileiro vem promovendo mudanças institucionais com vistas ao incremento da utilização deste insumo, na ordem de 14% até 2010 (vide o Programa Prioritário de Termeletricidade, bem como o Projeto de Massificação do Gás Natural).
Todavia, se fizeram necessárias alterações estruturais importantes, para que o objetivo de crescimento e diversificação da indústria gasífera encontrasse terreno fértil para fincar raízes e se consolidar.
Se observarmos o mercado para o gás, há menos de uma década, a Petrobrás fazia as vezes de toda a cadeia produtiva, operando do upstream (exploração e produção) ao downstream (distribuição e comercialização) [01].
Com as mudanças que se operaram, sobretudo nas economias capitalistas ao longo das décadas de 80 e 90, este modelo totalmente integrado tornou-se obsoleto, não atendendo mais aos anseios das diretrizes neoliberais que pugnavam pela redução do tamanho do Estado, principalmente nas atividades onde a iniciativa privada pudesse ser inserida, acreditando-se, com a adoção deste novo modelo, que se alcançaria maior eficiência alocativa e maximização dos recursos. Neste sentido, o Estado passa então de um modelo onde intervinha diretamente nas atividades econômicas, para um Estado regulador, cujas funções restringiam-se, na seara econômica, a regular e fiscalizar mercados.
No Brasil, não foi diferente. A década de 90 assistiu a mudanças profundas, sobretudo nos setores de infra-estrutura, culminando com a proposição de modelos que viriam a adequar-se ao novo papel do Estado na economia.
Neste sentido, foram promulgadas leis que vieram a reboque das novas diretrizes econômicas, cujo papel consistia em legitimar, à luz da legislação, o novo papel a ser desempenhado pelo Estado, ou seja, regular e fiscalizar segmentos de mercado, além de atuar enquanto mediador de conflitos entre os novos agentes inseridos em determinados pontos da cadeia produtiva.
No que toca ao setor de gás natural, destacamos, a seguir, os seguintes instrumentos legais:
__Lei nº 8.987/95: Também conhecida como "Lei das Concessões". Estabelece regras e princípios a serem observados quando da concessão de serviços públicos a terceiros.
__ Emenda Constitucional nº 5, de 1995: pôs fim ao monopólio da Petrobrás nos serviços de distribuição de gás canalizado. A referida emenda alterou os termos do artigo 25 da Constituição Federal, que passou a vigorar nos seguintes termos:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§1º [...]
§ 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação. (os grifos são nossos).
__Emenda Constitucional nº 9, de 1995: permitiu a entrada da iniciativa privada nas atividades que antes constituíam monopólio da Petrobrás. Neste sentido, a referida emenda alterou os termos do artigo 177 da Constituição Federal, que passou a vigorar da seguinte forma:
Art. 177. Constituem monopólios da União:
I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados.
§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei.
[...]
(os grifos são nossos)
__Lei nº 9.478, de 1997: dentre os principais feitos, criou a Agência Nacional do Petróleo, órgão regulador da atividade, bem como o CNPE, órgão consultivo, ligado à Presidência da República. As atribuições conferidas à agência, à luz dos princípios e regras constantes do mencionado instrumento legal, consistem, preponderantemente, em:
- promover a competitividade entre os agentes econômicos;
- restringir a integração vertical;
- permitir o livre acesso à rede de transportes;
- desenvolver mercados secundários e criar condições para a entrada de novos agentes no mercado;
- implantar estrutura regulatória estável, clara, transparente e previsível, de forma a adaptar a regulação a condições de mudança, conferir poder à autoridade para manter a estrutura legal atualizada e oferecer procedimentos transparentes.
Destacamos, ainda:
__Portarias ANP nº 41 e 42 (trata das especificações do gás natural para efeito de comercialização);
__Portaria ANP nº 43 (trata das questões atinentes à importação do gás natural por empresas nacionais);
__Portaria ANP nº 169 (primeira tentativa no sentido de tratar as questões referentes ao livre acesso. Revogada);
__Portaria ANP nº 170 (regulamenta os dispositivos atinentes à construção, ampliação e operação de instalações de transporte ou de transferência de gás natural. Prevê que a autorização aconteça em dois momentos distintos: num primeiro momento, é conferida a autorização para a construção, observados os critérios devidamente estabelecidos pela ANP para, num segundo momento, desde que também observadas tais disposições, sejam conferidas as autorizações para operação);
__Resoluções ANP nº 27, 28 e 29 de outubro de 2005 (outra tentativa no sentido de regulamentar a questão do livre acesso aos gasodutos, bem como os critérios para a determinação de tarifas).
Cumpre ressaltar que, a despeito dos instrumentos legais supra, o mercado ainda ressente-se de uma regulação mais consistente para o setor gasífero, onde sejam devidamente contempladas suas características peculiares, sobre as quais discorreremos adiante.
3. A reorganização da indústria de gás natural
Com efeito, verifica-se que, ao longo dos últimos anos, a indústria do gás passou por um processo de reestruturação importante, mas que, no entanto, não atendeu aos anseios do mercado, desencorajando os investimentos advindos da iniciativa privada que se pretendia.
Segundo opiniões de especialistas, faz-se necessário que as autoridades governamentais sinalizem urgentemente com políticas públicas consistentes para o setor, bem como com um sistema regulatório eficiente, que contemple as particularidades e complexidades da indústria gasífera, no sentido de atrair investimentos, necessários à expansão e ao incremento da participação do gás natural na matriz energética brasileira.
Nesse sentido, asseveram Carmen Alveal e Edmar de Oliveira [02]
Uma indústria de gás nascente, como a brasileira, é caracterizada pela insuficiência de infra-estrutura de transporte e distribuição e, assim, pela alta interdependência entre as decisões de investimento dos agentes que operam nos diferentes segmentos da cadeia da indústria do gás natural. A razão econômica básica da elevada interdependência das decisões de investimento nos segmentos da cadeia da indústria de gás natural reside na evolução decrescente dos custos marginais de expansão, um atributo característico à evolução das indústrias de rede.
Na fase infante do ciclo de vida das indústrias de rede, o objetivo fundamental de uma política regulatória setorial é o de promover prioritariamente os investimentos em condições de custo que estimulem a demanda do produto/serviço a preços competitivos para os consumidores. Nesse intuito, o arcabouço regulatório não pode ignorar as restrições objetivas de incerteza e risco para a realização de investimentos, dado que as decisões de investimento em um dos segmentos só se viabilizam em concomitância às decisões de investimento nos outros segmentos da cadeia.
Além disso, questões como o livre acesso, de extrema importância para o desenvolvimento do setor, ainda não foram tratadas de forma a incentivar a participação privada, prejudicando, sobretudo, o desenvolvimento dos setores de comercialização e exploração do insumo.
Nas palavras de Fernando Tavares Camacho [03],
Um outro ponto importante é que o livre acesso carece, todavia, de regulamentação definida pela ANP. Como o transporte do gás nacional é controlado pela firma brasileira (Petrobrás), ela poderá utilizar seu poder de mercado para discriminar agentes e a quantidade de gás que escoará por seus dutos. [...], existe o trade off entre aumentar a receita da transportadora com a maximização do fluxo de gás através do gasoduto e diminuir a receita da produtora em função da entrada de novos fornecedores de gás. Caso seja mais vantajoso manter seu mercado cativo, haverá medidas, por parte da Petrobrás, no sentido de impedir a entrada de novos agentes no setor.
Devido a isso, o mercado brasileiro deve apresentar uma regulamentação de livre acesso clara e eficiente, pois de nada adiantará a presença de produtores se eles não puderem transportar o gás até os city gates para a distribuição aos consumidores finais.
A presença forte da Petrobrás em todos os segmentos do mercado, mesmo após a flexibilização do monopólio advinda da Emenda constitucional nº 9, reforçam a tese de que as mudanças não se operaram de forma a inibir o monopólio na indústria gasífera. Verifica-se que a estatal possui participação expressiva em todos os segmentos da cadeia, seja na produção, transporte ou distribuição.
Neste sentido, a arquitetura do mercado de gás produzido no país tem elevado grau de verticalização, pois a produção e o transporte do gás até os city gates são realizados pela Petrobrás (a operação dos dutos de transporte é realizada por sua subsidiária, a Transpetro), enquanto a distribuição do produto aos consumidores finais fica a cargo de firmas em que a empresa brasileira possui forte participação.
Tabela 1: Participação da Petrobrás nas Distribuidoras
DISTRIBUIDORAS ESTADUAIS |
% DE PARTICIPAÇÃO |
Algás (AL) |
41, 5 |
BahiaGás (BA) |
41, 5 |
Cebgás (DF) |
32, 0 |
CEG Rio (RJ) |
25, 0 |
Cegás (CE) |
41, 5 |
Compagás (PR) |
24, 5 |
Copergás (PE) |
41, 5 |
Emsergás (SE) |
41, 5 |
Gásmar (MA) |
23, 5 |
Gaspisa (PI) |
37, 25 |
Goiásgás (GO) |
28, 17 |
GVD-ES (ES) |
100, 0 |
MSGás (MS) |
49, 0 |
PBGás (PB) |
41, 5 |
Potigás (RN) |
41, 5 |
Rongás (RO) |
41, 5 |
SCGás (SC) |
41, 0 |
SulGás (RS) |
49, 0 |
Fonte: Portal Gás Energia, 2004.
A empresa ainda adota uma política de desconto para o óleo combustível (chegando a 30%), que inviabiliza a entrada do gás natural em parte para o setor industrial. Esta política de descontos, a despeito do óleo combustível ser altamente poluente, foi a forma encontrada pela Petrobrás para manter parte do mercado que estava perdendo com o aumento da participação do gás natural no mercado industrial.
Neste sentido, asseveram Carmem Alveal e Edmar de Oliveira [04]:
Ademais de exigir pesados investimentos na infra-estrutura necessária ao fornecimento do consumidor final, o gás natural é um energético que enfrenta forte concorrência, em especial do óleo combustível. Desta forma, o desenvolvimento do mercado para o gás natural pressupõe um preço final que permita deslocar outros insumos energéticos.
Verifica-se ainda que a Petrobrás detém praticamente toda a rede de gasodutos, determinando preços e limitando o acesso de terceiros, prejudicando sobremaneira a implantação de um modelo que contemple o livre acesso, além de dominar praticamente todo o setor de exploração (na ordem de 94%). Se observarmos o sistema GASBOL, a presença da Petrobrás apresenta-se de forma ainda mais latente, uma vez que, segundo CAMACHO (2005) [05]:
a empresa passou a produzir, distribuir e comercializar o insumo boliviano que sai de seus campos (em sociedade com a Repsol e Totalfina), atuando em todas as pontas. Isso significa que, com o gás da Bolívia, ela vende dois subprodutos, o BTU (medida do gás para geração de energia) ou os megawatts (MW) das suas usinas.
A tabela abaixo demonstra a participação da Petrobrás nas Termelétricas:
Tabela 2: Participação da Petrobrás nas Termelétricas
USINA |
% DE PARTICIPAÇÃO |
Ibiritermo (MG) |
50 |
Norte Fluminense (RJ) |
10 |
Nova Piratininga (SP) |
80 |
VEG Araucária (PR) |
20 |
Canoas (RS) |
100 |
Termo Gaúcha (RS) |
25 |
Três Lagoas (MS) |
100 |
Termoaçú (RN) |
30 |
Term. Sergipe (SE) |
20 |
TermoBahia (BA) |
49 |
FAFEN (BA) |
20 |
Termo Rio (RJ) |
43 |
CCBS-RPBC (SP) |
27 |
Termo Alagoas (AL) |
20 |
Paraíba (PB) |
25 |
Fonte: Petrobras, 2004
Não obstante, verifica-se que a reforma não contemplou de forma satisfatória as características peculiares do setor, uma vez que a legislação abarca, de forma premente, a indústria do petróleo, que possui características um tanto distintas da indústria do gás natural.
Dentro da nova estrutura, a necessidade da autoridade regulatória deveu-se, sobretudo, às atividades dos segmentos de transporte e distribuição de gás, que guardam características de monopólio natural, quais sejam:
- atividades de capital intensivo;
- investimentos irreversíveis;
- economias de escala e de escopo;
- inexistência de alternativas intermodais.
Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira Neto [06]:
Em primeiro lugar, é fundamental que haja uma nítida separação entre as atividades tipicamente monopolistas (i.e. transporte e distribuição) e as atividades potencialmente mais concorrenciais (i.e. produção e comercialização). Tal separação deve se refletir tanto na estrutura tarifária estabelecida para o setor, quanto na organização jurídica e contábil das empresas, permitindo que órgãos reguladores, consumidores e demais agentes do mercado visualizem claramente a distinção entre o produto gás natural e o "serviço de entrega" desse produto.
Em segundo lugar, a regulação incidente sobre os controladores da rede física de transporte e distribuição deve permitir o livre acesso de terceiros aos dutos, mediante o pagamento de uma tarifa de acesso. Esse "livre acesso" à rede física permite a desvinculação efetiva entre o produto gás natural e o transporte deste produto ao consumidor final, abrindo espaço para que terceiros (produtores e comercializadores) utilizem a rede física, independentemente de quem as controle.
Em outras palavras, a indústria do gás natural, de forma bastante similar ao setor elétrico, caracteriza-se por uma indústria de rede, ou seja, constitui-se de atividades potencialmente competitivas, dependentes da utilização das redes de transporte e de distribuição, atividades estas que configuram monopólios naturais.
As características de uma indústria de rede, segundo Cesário [07] são:
- necessidade de equilíbrio instantâneo entre a oferta e a demanda, dadas as dificuldades técnico-econômicas de estocagem;
- requisito de grandes investimentos de capital, cuja grande parcela apresenta-se como projeto específico, revestindo-se, assim, de custos irrecuperáveis;
- presença de economias de escala, principalmente no transporte e na distribuição, o que caracteriza estes segmentos como exemplos clássicos de monopólio natural;
- existência de custos comuns e conjuntos que resultam em economias de escopo na provisão de múltiplos serviços;
- imprevisibilidade da demanda, o que obriga a manutenção de uma certa capacidade ociosa, que somada à existência de uma descontinuidade técnica na expansão, requer o crescimento da oferta à frente da demanda;
- combinam segmentos de monopólio natural e atividades potencialmente competitivas (compra e venda de produto), que podem ou não estar sendo exploradas de forma competitiva, e que dependem essencialmente de acesso à rede.
Desta forma, utilizando-nos do modelo implantado no setor elétrico com a reforma do Estado, podemos traçar alguns paralelos entre as duas indústrias (gás natural e energia elétrica), uma vez considerado o alto grau de similaridade existente entre elas. Senão vejamos:
1.O transporte de gás natural se dá mediante autorização da administração pública, instrumento este que não confere segurança ao investidor, uma vez que não se verifica a ocorrência de certame licitatório prévio, manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato caso a administração altere unilateralmente as cláusulas contratuais, bem como a inexistência de cláusulas que prevejam indenização em caso de extinção unilateral do contrato. O mesmo não ocorre com o setor elétrico, onde o instrumento legal para a entrega do serviço de transmissão à iniciativa privada é a concessão, que, segundo a lei nº 8.987/95, além de exigir licitação prévia, estabelecendo, portanto, critérios isonômicos quanto à participação no certame, contém inúmeros dispositivos que conferem mais segurança e estabilidade à relação estabelecida, conferindo, desta forma, atratividade ao investimento privado.
2.Atualmente, no setor gasífero, as tarifas e as condições técnicas são negociadas entre usuários e proprietários do gasoduto, o que, ao longo do tempo, se mostrou pouco eficaz diante do poder de mercado dos transportadores e das características de monopólio natural que marcam essas instalações. No setor elétrico, as tarifas são previamente estabelecidas, quando da licitação para as respectivas linhas de transmissão, sistema que confere mais segurança ao investimento. Cumpre salientar que, no tocante ao setor gasífero, a ANP só é instada a manifestar-se quando da inexistência de acordo das tarifas entre os agentes (regulação tarifária indireta). Tal modelo tende a favorecer o agente mais forte no setor (Petrobrás), que, conforme já mencionado, domina praticamente toda a rede de gasodutos no país. Nas palavras de Carmen Alveal e Edmar de Oliveira [08]:
Além do aspecto estrutural do transporte do gás, o sistema tarifário a ser adotado é de fundamental importância para o interesse dos investidores na implantação da rede de infra-estrutura de transporte. Somente com o estabelecimento de regras claras sob as quais os serviços de transporte deverão ser prestados, bem como o mecanismo de manutenção do seu valor ao longo do tempo de duração do projeto, ficam garantidas as condições de financiamentos e as receitas a serem auferidas pela execução do serviço de transporte, a fim de permitir a recuperação e a adequada remuneração dos capitais envolvidos.
3.Com a desverticalização das atividades inerentes à indústria gasífera, surgem no cenário novos atores e, conseqüentemente, novas relações contratuais são travadas. Neste sentido, faz-se necessária a presença de um órgão que coordene de forma eficaz os contratos, a fim de que o modelo se opere de forma a não beneficiar alguns agentes em detrimento de outros, além de sempre observar os interesses dos consumidores. Não existe, ao contrário do setor elétrico (ONS), um órgão que coordene as diversas relações contratuais celebradas ao longo da cadeia.
4.O risco é transferido aos carregadores (contratos ship-or-pay). Os transportadores assumem risco contratual, em razão da fragilidade das autorizações, bem como o risco operacional, ao passo que, no setor elétrico, os transmissores assumem somente o risco operacional, inerente à atividade.
Além das características mencionadas supra, cumpre trazer à tona outro fator que se apresenta como mais um complicador para o desenvolvimento da indústria gasífera, qual seja: a convivência de duas esferas de competência (federal e estadual) sobre diversos segmentos da indústria. Desta forma, exploração, produção, importação e transporte estão sob a esfera de competência federal, sendo regulados pela ANP. Já a distribuição, a teor do que determina o art. 25 da Constituição Federal, encontra-se sob a esfera de competência estadual.
Cumpre salientar que, neste contexto, as legislações estaduais existentes não são uniformes, provocando uma profusão de dispositivos condizentes com a atividade de distribuição, bem como as demais que lhe são conseqüentes, além de verificar-se, no cenário nacional, a inércia de alguns Estados em legislar sobre o assunto, provocando, desta forma, diversos conflitos a serem encaminhados ao Judiciário, demandando tempo e recursos, já escassos.