A CLÁUSULA DE ARBITRAGEM E OS EFEITOS DA SUB-ROGAÇÃO
Márcio Sebastião Aguiar[1]
Paulo Henrique Cremoneze[2]
Grande discussão tem sido causada por transportadores internacionais marítimos e aéreos em relação aos efeitos da Convenção de Arbitragem perante a seguradora sub-rogada.
Discussão casuística, pois não se lhes assiste razão alguma, primeiro porque a referida convenção é unilateral, imposta aos donos de cargas nos instrumentos contratuais de transportes, depois e, ainda mais importante, não são oponíveis de modo algum aos seguradores sub-rogados.
Em síntese e antes mesmo de prosseguir neste modesto estudo: as cláusulas compromissórias são em verdade impositivas e abusivas, portanto ilegais, sendo certo ainda que não aplicáveis aos seguradores sub-rogados, os maiores protagonistas de litígios judiciais versados sobre Direito dos Transportes.
Certa vez, o grande escritor inglês G.K. Chesterton disse, mais ou menos com estas palavras, que chegaria o tempo em que os homens de boa-fé teriam que explicar o porquê de a grama ser verde.
Parece que o tempo chegou, ao menos no Direito dos Transportes.
Quer nos parecer inaceitável uma discussão como a que ora consome nossa atenção, porque absolutamente insubsistente.
Ora, se a arbitragem exige ontologicamente a aceitação plena, prévia e formal dos seus participantes, não há como ser imposta unilateralmente por uma das partes contratantes.
E é exatamente isso o que acontece nos contratos internacionais de transportes marítimos e aéreos de cargas.
Com efeito, os transportadores impõem procedimentos arbitrais aos donos de cargas.
Imposição por meio de cláusulas impressas nos anversos dos instrumentos contratuais, sem qualquer manifestação de vontade dos donos das cargas.
Nem mesmo os embarcadores, os contratantes dos serviços de transportes expõem livremente suas vontades, quanto mais os consignatários das cargas, lembrando-se sempre que o contrato internacional de transporte de carga é, sempre, um contrato de adesão caracterizado por estipulação em favor de terceiro.
Logo, um contrato que não se ajusta, salvo em casos extraordinários, especiais, com observância rigorosa da Lei de Arbitragem brasileira ao compromisso (convenção) arbitral, pois onde se lê compromisso, leia-se, em verdade, imposição, dirigismo contratual.
Situação que se agrava sobremodo quando se tem como prejudicado direto o mercado segurador.
Os seguradores das cargas sequer são partes nas relações contratuais de transportes e os transportadores, mesmo assim, querem que sejam submetidos aos tais e supostos compromissos arbitrais, com renúncia involuntária, forçada, da garantia constitucional fundamental de acesso à jurisdição nacional.
Algo tão absurdo que não só fere a ortodoxia do Direito, mas também a própria ordem moral.
Explicando melhor:
O Código de Processo Civil de 2015 não alterou em nada a possiblidade de reconhecimento do compromisso arbitral, quando respeitados os requisitos da lei especial que disciplina a matéria.
O §1º do art. 3ª é claro ao permitir o uso da “arbitragem, na forma da lei”, ou seja, desde que observados rigorosamente os requisitos de admissibilidade previstos em norma especial, mais precisamente a Lei nº 9.307/96, que autoriza pessoas plenamente capazes utilizaram a arbitragem para dirimir conflitos.
Mesmo antes de prosseguir, muito aproveita enfatizar a voluntariedade é o elemento subjetivo mais importante da arbitragem. As partes interessadas, desde que capazes, têm que expressamente querer a arbitragem. Qualquer vício de vontade fere de morte seu uso.
Isso é especialmente importante ter em alça de mira quando o suposto compromisso arbitral se apresente em um contrato de adesão e/ou o titular de um direito é um segurador sub-rogado que sequer foi parte na relação jurídica anterior onde nasceu a arbitragem.
Fala-se isso porque muitos litígios envolvem seguradores sub-rogados nas pretensões originais dos seus segurados, vítimas de danos.
As seguradoras, grandes garantidoras do mercado logístico internacional de carga, emitentes de apólices cobrindo de pequenos a grandes riscos, estão sendo torpedeadas em lides que envolvem o ressarcimento em regresso contra transportadores aéreos e marítimos com base num duplo equívoco interpretativo em relação aos efeitos da sub-rogação e aos contratos de transportes de cargas,
A sub-rogação e o consequente direito de regresso garantem a saúde do negócio de seguro e buscam punir eficazmente causadores de danos e prejuízos. Direitos fortes e consagrados no art. 786 do Código Civil: “Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.”
Paga a indenização de seguro ao segurado (beneficiário), o segurador adquire o direito de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano e do prejuízo.
A redação do referido artigo é taxativa ao dispor que o pagamento da indenização transfere ao segurador direitos e ações, sendo certo que nenhum ônus pode ser oponível ao segurador, sob pena de descaracterização do direito e prejuízo não só ao segurador, mas ao próprio negócio de seguro, aos legítimos interesses de todo o colégio de segurados.
Antes mesmo da entrada em vigor do atual Código Civil, o sistema legal brasileiro já dispunha exatamente a mesma coisa, a ponto de que o assunto fosse alvo de Enunciado de Súmula do Supremo Tribunal Federal. Fala-se aqui da Súmula nº 188, cuja dicção é a seguinte: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”.
Sob esse prisma, os direitos de natureza material são transferidos com o pagamento da indenização de seguro, ao passo que questões processuais não irradiam efeitos perante o segurador.
O art. 786 não impõe limites ao direito do segurador buscar o que efetivamente indenizou por força da apólice de seguro contratada e o §2º do mesmo artigo afirma que “É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador (...)”.
É preciso destacar que o segurador, ao buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano, não defende apenas seus legítimos direitos e interesses, mas os de todo o colégio de segurados.
Aliás, importante frisar que invariavelmente não há acordo de vontades entre o segurado e o transportador internacional de cargas, apenas a imposição da cláusula de compromisso arbitral em sede de contrato de adesão, até porque o ordenamento jurídico brasileiro não aceita o dirigismo contratual e tem por inválidas e ineficazes, senão nulas de pleno Direito, as cláusulas abusivas.
Pela mesma razão, o foro estrangeiro e a cláusula de arbitragem impostas à parte aderente de um contrato de adesão não pode vingar, sob pena de grave violação da garantia constitucional de acesso à jurisdição brasileira, bem como das regras processuais de jurisdição e competência.
Além disso tudo, pode-se dizer, especificamente nos casos envolvendo Direito dos Transportes, que o art. 25 do Código de Processo Civil não se ajusta ao contrato internacional de transporte marítimo de carga, porque as cláusulas de foro estrangeiro não são eleitas pelas partes contratantes, mas imposta ao embarcador e ao consignatário da carga pelo transportador, emissor do instrumento contratual.
Ora, nos contratos de adesão somente podem conter cláusulas compromissórias de arbitragem se a Lei de Arbitragem brasileira (Lei nº 9.307/1996) for devidamente observada, sob pena de nulidade absoluta.
A Lei de Arbitragem é incontroversa ao dispor no artigo 4º, § 2º[3] que, em contratos de adesão, o compromisso arbitral há de ser destacado em meio ao clausulado ou disposto em termo apartado do conteúdo contratual, sendo necessária em ambos os casos a assinatura de todos os interessados.
Ora, a seguradora sub-rogada não adere ao compromisso arbitral, e não pode ser obrigada a suportar o inglório reflexo de uma imposição que limita direito ao ressarcimento em regresso.
O que é manifestamente injusto ao dono da carga é ainda mais oneroso ao seu segurador, pessoa jurídica que pagou integralmente a indenização de seguro e tem sua garantia constitucional de acesso à jurisdição eventualmente prejudicado por conta de interpretação casuística e equivocada do espírito da arbitragem.
Nos contratos internacionais de transportes de cargas, nunca é demais repetir, não se tem um verdadeiro compromisso arbitral, mas imposição do transportador. Nem mesmo o dono da carga, segurado, anui com a arbitragem, quiçá o segurador.
Por isso – com base na lei e na ordem moral – que se diz categoricamente que a arbitragem disposta unilateralmente no contrato internacional de transporte de carga não é exigível ao segurador, sob pena de esvaziamento do conceito legal de sub-rogação e do próprio enunciado de Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal.
A rigor, o Poder Judiciário entende da mesma forma, felizmente.
Existem algumas poucas decisões em sentido contrário, mas prepondera o melhor Direito e o bom senso, pois é importante se ter bem claro que a arbitragem exige adesão voluntária, manifestação expressa de vontade e jamais pode ser imposta.
Não existe renúncia tácita ou às avessas da garantia constitucional fundamental de acesso à jurisdição, donde se infere com mais razão quão corretos são os presentes argumentos.
Os autores:
Márcio Sebastião Aguiar, advogado, membro do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, com atuação nas áreas de Direito do Seguro e Direito dos Transportes, especialista em Direito Marítimo e Portuário pela Universidade Católica de Santos, autor de artigos publicados em revistas jurídicas.
Paulo Henrique Cremoneze, advogado com atuação nas áreas de Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, graduado, pós-graduado em Direito “lato sensu” e Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, autor de livros e artigos jurídicos publicados, professor convidado da FUNENSEG – Fundação Escola Nacional de Seguros, membro do Conselho (consultivo) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos e do Colégio Liceu Santista), pós-graduado (com reconhecimento Pontifício) em formação teológica pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca e membro da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência. Colunista do Jornal A Tribunal de Santos (colunas Porto & Mar e Conexão Internacional).
[1]Advogado, pós-graduando em Direito Marítimo e Portuário pela Universidade Católica de Santos. E-mail: maguiar@mclg.adv.br
[2] Advogado, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência. Email: cremoneze@mclg.adv.br
[3] Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
(...)
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.