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O ingresso em local isolado para perícia e o novo crime de fraude processual aludido pela Lei Federal nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019

Agenda 11/01/2020 às 10:30

Estuda-se o papel legal, individual e coletivo de cada coadjuvante no local a ser examinado pelos experts da polícia judiciária.

Dentre os novos regramentos trazidos pela norma que alterou dispositivos da lei penal e processual penal no Brasil, o parágrafo 2º do novo art. 158-C do Código de Processo Penal passa a estabelecer que é proibida a entrada em locais isolados, bem como, a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da liberação por parte do perito responsável, sendo tipificada como fraude processual a sua realização.

Resta saber, assim, quais serão as condutas puníveis nesse delito, originalmente previsto no art. 347 do Código Penal e punido com detenção de três meses a dois anos e multa, majorada em dobro no caso da inovação ser destinada a produzir efeito em processo penal.

Num primeiro exame, o tipo traz dois núcleos. O primeiro é entrar no “local isolado”. O segundo, remover quaisquer vestígios de “locais de crimes” antes da liberação por parte do perito responsável. É óbvio que se trata de infração dolosa, consubstanciada no escopo de fraudar o local. Sem a finalidade específica, não vemos como a infração penal, segundo essa linha de raciocino, possa persistir.

Importante destacarmos a diferença técnica entre “local de crime” e “local isolado”. Antes dos peritos, agentes públicos outros, por dever de ofício inclusive, terão obrigatório acesso ao “local de crime” (ainda não oficialmente cerrado), inclusive para isolá-lo e, consequentemente, preservá-lo. Dessa forma, o primeiro agente que chegar ao “local de crime”[1] deverá isolar e preservar adequadamente a área, cuidando para que não ocorram modificações que comprometam a perícia, impedindo o acesso de pessoas que não façam parte da cadeia persecutória do Estado. Até que isso ocorra, não há o que se falar, não formalmente, em “local isolado”, condição de vedação do acesso.

Mas será a mera entrada no local isolado uma ação equivalente a fraude? Se operado o ingresso por simples negligência, cremos que não, afinal o tipo é doloso. No mais, ainda que ingresso ocorra, se não for ele tencionado a fraudar o sítio, entendemos ausente a voluntariedade apta a caracterizar a infração, já que ela somente se concretizaria com a retirada de vestígios ou a tentativa intencional de o fazê-lo. O crime de fraude processual (aludido pelo parágrafo 2º do art. 158-C) visa a inovação artificiosa e idônea, isto é, a alteração ou modificação do lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de induzir a erro juiz ou perito e não punir uma simples ação de presença, cuja nocividade não pode ser presumida. Se assim não fosse, o legislador teria criado um tipo específico e autônomo para definir o simples ingresso/permanência em local isolado, mas, ao que parece, não o fez. Dessa forma, não vemos como a mera entrada no sítio possa equivaler, expressa ou tacitamente, a uma espécie de fraude processual. Essa foi a nossa primeira impressão, que não está imune a entendimentos diversos, haja vista a dinâmica interpretativa do Direito, mormente em tipos novos.

E na prática, haverá alterações no processo de isolamento/preservação de local de crime? Para melhor entendermos o tema, urge verificarmos o papel legal, individual e coletivo de cada coadjuvante no local a ser examinado pelos “experts” da polícia judiciária, pois a única finalidade objetivada por todos deve ser a pública, qual seja, a do Estado.

Por imperativo legal (art. 6º do Código de Processo Penal), logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial (delegado de polícia) deverá dirigir-se ao local (isto é, o “local de crime”), providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas (isto é, o “isolamento”), até a chegada dos peritos criminais. E após a liberação destes, deverá apreender os objetos que tiverem relação com o fato, cuja guarda e controle ficará, doravante, com uma central de custódia dos institutos de criminalística. No dia a dia, geralmente os agentes da autoridade, civis ou militares, são os primeiros a chegar ao local. Acionam a polícia judiciária, direta ou indiretamente, e esta, na sequência, os peritos criminais, que aportam no sítio com ele já isolado e minimamente levantado.

Pergunta-se: com o advento da nova lei, o que mudará para os policiais civis, militares e municipais que atuam nessa empreitada? Na prática, salvo as necessárias ações de cadeia de custódia (novidade no sistema), pouca coisa. Vejamos o papel legal de cada um desses servidores nesse importante contexto:

a) Policial Militar, Policial Civil (estadual ou federal), Policial Penal ou Guarda Civil Municipal: Por ser, em regra, o primeiro a chegar ao local do crime, resta claro que o agente mediato ou imediato da autoridade, seja ele civil ou militar, terá obrigatório acesso o sítio, cabendo-lhe, contudo, agir de modo a deflagrar o imediato isolamento e não alterar intencionalmente o cenário, sob pena, aí sim, de esbarrar no tipo penal. É prudente, entretanto, entender que a presença desses agentes deve ser apenas necessária para isolar o local e colher informações prévias, de modo a não contaminá-lo e assim prejudicar o importante trabalho dos peritos criminais[2]. Os guardas municipais, por força legal inclusive (Lei Federal nº 13.022/14, art. 5º, XIV), devem preservar o local de crime quando possível e sempre que necessário, acerca das prisões em flagrante que efetuarem.

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b) Delegado de Polícia: O delegado de polícia, no Brasil, cabe conduzir a investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais[3]. Tem ele o dever de, tão logo seja cientificado da prática de infração penal, dirigir-se ao local (de crime), a fim de providenciar que não se alterem o estado e conservação das coisas (isolá-lo), até a chegada dos peritos[4]. Durante a investigação, cabe a ele, geralmente através de meios telemáticos, requisitar perícia ao diretor da repartição[5] (em São Paulo, a Superintendência da Polícia-Técnico Científica), a fim de que um perito criminal seja acionado. Desse modo, se parte do delegado de polícia a requisição (ordem) para exame de local de crime, é óbvio que ele, não apenas pela teoria dos poderes implícitos (meios necessários para o exercício da persecução penal), mas pela própria lei, tem irrestrito acesso ao local, mesmo que isolado, pois é ele, delegado, que efetuará os quesitos que deverão ser respondidos pelo perito criminal.

c) Perito Criminal: No Estado de São Paulo, o perito criminal é integrante de carreira policial civil[6], estando ele classificado na Superintendência da Polícia-Técnico Científica, órgão previsto na Seção II – “Da Polícia Civil” – da Constituição do Estado. Legalmente, no exercício da atividade de pericia oficial de natureza criminal, o perito criminal tem autonomia técnica, científica e funcional[7] no que tange a análise de vestígios, o que não lhe subtrai a condição de agente mediato da autoridade de polícia judiciária, na medida em que está adstrito a uma requisição e aos quesitos por ela formulados, aos quais, com a expertise que profissionalmente lhe cabe, deverá responder nos termos do art. 160 do Código de Processo Penal. Cabe ao perito criminal liberar o local de crime (ou seja, “levantar” o isolamento), impendendo a ele, preferencialmente, o múnus de colher os vestígios e encaminhá-los para a central de custódia.

d) Pessoas estranhas ao trabalho policial imediato: nesse particular, quer nos parecer que o primeiro núcleo do tipo se refere apenas às pessoas estranhas ao trabalho policial, quais sejam, populares, profissionais outros e policiais avessos à atividade de isolamento ou que não tenham ligação direta com a apuração dos fatos. É óbvio que, ainda que alguém seja surpreendido no interior do sítio isolado, é necessária a comprovação de que o ingresso se deu para fins de fraude (insistimos, foi essa a nossa primeira impressão), sob pena de incongruência da nomeclatura do tipo, que alude a uma “fraude”. A mera entrada, por culpa ou sem finalidade específica, nos parece, em princípio, atípica. Liberado o sítio, não vemos impedimento para o ingresso de outros profissionais, salvo nos casos de restrição legal alusiva a inviolabilidade de domicílio. Entretanto, optando-se as autoridades pela necessidade da realização de outros exames, o ambiente continuará isolado.

Diante disso, embora o tipo ainda não tenha entrado em vigor, é certo que eventuais dúvidas quanto a sua aplicabilidade só serão dirimidas com a pacificação do tema através da jurisprudência, cuja tendência pode pender para este ou para aquele lado. Importante frisarmos que o que a nova lei parece vedar é o ingresso imoderado nos locais de crime preservados, mirando com isso acautelar a prova e otimizar a ação persecutória do Estado.

Em resumo, podemos chegar aos seguintes postulados:

a) O isolamento do local de crime cabe ao primeiro agente mediato ou imediato da autoridade policial que nele aportar, devendo ele zelar pelo respectivo controle de acesso;

b) O perito ciminal é acionado por requisição do delegado de polícia, cabendo àquele, concluídos os trabalhos periciais, liberar o sítio;

c) O delegado de polícia (e respectiva equipe de persecução imediata), responsável pela requisição de perícia e pela elaboração dos quesitos que serão enfrentados, tem livre acesso ao local de crime, assim entendido como o ambiente controlado (isolado) por ordem sua, haja vista ser ele o titular da condução da investigação criminal;

d) Numa primeira análise, o tipo de fraude processual em local isolado ou de crime requer especial fim de agir para ser configurado;

É mister que, independente do importante trabalho técnico-pericial dos peritos criminais, a autoridade policial, no local de crime, também realiza a chamada “recognição visuográfica” do mesmo, de modo a carrear ao inquérito todas as observações efetuadas no sítio que tenham interesse policial, conjugando-se a lógica com as impressões carreadas “in loco”.

Destarte, cada órgão público, irmanado e em conjunto, deve agir de maneira a fazer cumprir os postulados vigentes, de modo a fortalecer o processo investigativo e a busca da verdade atingível. 


Notas

[1] “Art. 18. Local de crime é todo o sítio onde tenha ocorrido um evento que necessite de providência da polícia, devendo ser preservado pelo policial que comparecer até sua liberação pela autoridade” (Resolução SSP-382/99).

[2] Observar, no que for aplicável, o disposto na Resolução SSP-382/99.

[3] Lei Federal nº 12.830/13. 

[4] Arts. 6º, I e 169 do Código de Processo Penal. 

[5] Art. 6º, VII e 178, ambos do Código de Processo Penal e art. 2º, parágrafo 2º da Lei Federal nº 12.830/13.

[6] Lei Complementar nº 1.151/11, alterada pela Lei Complementar nº 1.249/14.

[7] Art. 2º da Lei Federal nº 12.030/09.

Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. O ingresso em local isolado para perícia e o novo crime de fraude processual aludido pela Lei Federal nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6037, 11 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78673. Acesso em: 21 nov. 2024.

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