Dentre os novos regramentos trazidos pela norma que alterou dispositivos da lei penal e processual penal no Brasil, o parágrafo 2º do novo art. 158-C do Código de Processo Penal passa a estabelecer que é proibida a entrada em locais isolados, bem como, a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da liberação por parte do perito responsável, sendo tipificada como fraude processual a sua realização.
Resta saber, assim, quais serão as condutas puníveis nesse delito, originalmente previsto no art. 347 do Código Penal e punido com detenção de três meses a dois anos e multa, majorada em dobro no caso da inovação ser destinada a produzir efeito em processo penal.
Num primeiro exame, o tipo traz dois núcleos. O primeiro é entrar no “local isolado”. O segundo, remover quaisquer vestígios de “locais de crimes” antes da liberação por parte do perito responsável. É óbvio que se trata de infração dolosa, consubstanciada no escopo de fraudar o local. Sem a finalidade específica, não vemos como a infração penal, segundo essa linha de raciocino, possa persistir.
Importante destacarmos a diferença técnica entre “local de crime” e “local isolado”. Antes dos peritos, agentes públicos outros, por dever de ofício inclusive, terão obrigatório acesso ao “local de crime” (ainda não oficialmente cerrado), inclusive para isolá-lo e, consequentemente, preservá-lo. Dessa forma, o primeiro agente que chegar ao “local de crime”[1] deverá isolar e preservar adequadamente a área, cuidando para que não ocorram modificações que comprometam a perícia, impedindo o acesso de pessoas que não façam parte da cadeia persecutória do Estado. Até que isso ocorra, não há o que se falar, não formalmente, em “local isolado”, condição de vedação do acesso.
Mas será a mera entrada no local isolado uma ação equivalente a fraude? Se operado o ingresso por simples negligência, cremos que não, afinal o tipo é doloso. No mais, ainda que ingresso ocorra, se não for ele tencionado a fraudar o sítio, entendemos ausente a voluntariedade apta a caracterizar a infração, já que ela somente se concretizaria com a retirada de vestígios ou a tentativa intencional de o fazê-lo. O crime de fraude processual (aludido pelo parágrafo 2º do art. 158-C) visa a inovação artificiosa e idônea, isto é, a alteração ou modificação do lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de induzir a erro juiz ou perito e não punir uma simples ação de presença, cuja nocividade não pode ser presumida. Se assim não fosse, o legislador teria criado um tipo específico e autônomo para definir o simples ingresso/permanência em local isolado, mas, ao que parece, não o fez. Dessa forma, não vemos como a mera entrada no sítio possa equivaler, expressa ou tacitamente, a uma espécie de fraude processual. Essa foi a nossa primeira impressão, que não está imune a entendimentos diversos, haja vista a dinâmica interpretativa do Direito, mormente em tipos novos.
E na prática, haverá alterações no processo de isolamento/preservação de local de crime? Para melhor entendermos o tema, urge verificarmos o papel legal, individual e coletivo de cada coadjuvante no local a ser examinado pelos “experts” da polícia judiciária, pois a única finalidade objetivada por todos deve ser a pública, qual seja, a do Estado.
Por imperativo legal (art. 6º do Código de Processo Penal), logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial (delegado de polícia) deverá dirigir-se ao local (isto é, o “local de crime”), providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas (isto é, o “isolamento”), até a chegada dos peritos criminais. E após a liberação destes, deverá apreender os objetos que tiverem relação com o fato, cuja guarda e controle ficará, doravante, com uma central de custódia dos institutos de criminalística. No dia a dia, geralmente os agentes da autoridade, civis ou militares, são os primeiros a chegar ao local. Acionam a polícia judiciária, direta ou indiretamente, e esta, na sequência, os peritos criminais, que aportam no sítio com ele já isolado e minimamente levantado.
Pergunta-se: com o advento da nova lei, o que mudará para os policiais civis, militares e municipais que atuam nessa empreitada? Na prática, salvo as necessárias ações de cadeia de custódia (novidade no sistema), pouca coisa. Vejamos o papel legal de cada um desses servidores nesse importante contexto:
a) Policial Militar, Policial Civil (estadual ou federal), Policial Penal ou Guarda Civil Municipal: Por ser, em regra, o primeiro a chegar ao local do crime, resta claro que o agente mediato ou imediato da autoridade, seja ele civil ou militar, terá obrigatório acesso o sítio, cabendo-lhe, contudo, agir de modo a deflagrar o imediato isolamento e não alterar intencionalmente o cenário, sob pena, aí sim, de esbarrar no tipo penal. É prudente, entretanto, entender que a presença desses agentes deve ser apenas necessária para isolar o local e colher informações prévias, de modo a não contaminá-lo e assim prejudicar o importante trabalho dos peritos criminais[2]. Os guardas municipais, por força legal inclusive (Lei Federal nº 13.022/14, art. 5º, XIV), devem preservar o local de crime quando possível e sempre que necessário, acerca das prisões em flagrante que efetuarem.
b) Delegado de Polícia: O delegado de polícia, no Brasil, cabe conduzir a investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais[3]. Tem ele o dever de, tão logo seja cientificado da prática de infração penal, dirigir-se ao local (de crime), a fim de providenciar que não se alterem o estado e conservação das coisas (isolá-lo), até a chegada dos peritos[4]. Durante a investigação, cabe a ele, geralmente através de meios telemáticos, requisitar perícia ao diretor da repartição[5] (em São Paulo, a Superintendência da Polícia-Técnico Científica), a fim de que um perito criminal seja acionado. Desse modo, se parte do delegado de polícia a requisição (ordem) para exame de local de crime, é óbvio que ele, não apenas pela teoria dos poderes implícitos (meios necessários para o exercício da persecução penal), mas pela própria lei, tem irrestrito acesso ao local, mesmo que isolado, pois é ele, delegado, que efetuará os quesitos que deverão ser respondidos pelo perito criminal.
c) Perito Criminal: No Estado de São Paulo, o perito criminal é integrante de carreira policial civil[6], estando ele classificado na Superintendência da Polícia-Técnico Científica, órgão previsto na Seção II – “Da Polícia Civil” – da Constituição do Estado. Legalmente, no exercício da atividade de pericia oficial de natureza criminal, o perito criminal tem autonomia técnica, científica e funcional[7] no que tange a análise de vestígios, o que não lhe subtrai a condição de agente mediato da autoridade de polícia judiciária, na medida em que está adstrito a uma requisição e aos quesitos por ela formulados, aos quais, com a expertise que profissionalmente lhe cabe, deverá responder nos termos do art. 160 do Código de Processo Penal. Cabe ao perito criminal liberar o local de crime (ou seja, “levantar” o isolamento), impendendo a ele, preferencialmente, o múnus de colher os vestígios e encaminhá-los para a central de custódia.
d) Pessoas estranhas ao trabalho policial imediato: nesse particular, quer nos parecer que o primeiro núcleo do tipo se refere apenas às pessoas estranhas ao trabalho policial, quais sejam, populares, profissionais outros e policiais avessos à atividade de isolamento ou que não tenham ligação direta com a apuração dos fatos. É óbvio que, ainda que alguém seja surpreendido no interior do sítio isolado, é necessária a comprovação de que o ingresso se deu para fins de fraude (insistimos, foi essa a nossa primeira impressão), sob pena de incongruência da nomeclatura do tipo, que alude a uma “fraude”. A mera entrada, por culpa ou sem finalidade específica, nos parece, em princípio, atípica. Liberado o sítio, não vemos impedimento para o ingresso de outros profissionais, salvo nos casos de restrição legal alusiva a inviolabilidade de domicílio. Entretanto, optando-se as autoridades pela necessidade da realização de outros exames, o ambiente continuará isolado.
Diante disso, embora o tipo ainda não tenha entrado em vigor, é certo que eventuais dúvidas quanto a sua aplicabilidade só serão dirimidas com a pacificação do tema através da jurisprudência, cuja tendência pode pender para este ou para aquele lado. Importante frisarmos que o que a nova lei parece vedar é o ingresso imoderado nos locais de crime preservados, mirando com isso acautelar a prova e otimizar a ação persecutória do Estado.
Em resumo, podemos chegar aos seguintes postulados:
a) O isolamento do local de crime cabe ao primeiro agente mediato ou imediato da autoridade policial que nele aportar, devendo ele zelar pelo respectivo controle de acesso;
b) O perito ciminal é acionado por requisição do delegado de polícia, cabendo àquele, concluídos os trabalhos periciais, liberar o sítio;
c) O delegado de polícia (e respectiva equipe de persecução imediata), responsável pela requisição de perícia e pela elaboração dos quesitos que serão enfrentados, tem livre acesso ao local de crime, assim entendido como o ambiente controlado (isolado) por ordem sua, haja vista ser ele o titular da condução da investigação criminal;
d) Numa primeira análise, o tipo de fraude processual em local isolado ou de crime requer especial fim de agir para ser configurado;
É mister que, independente do importante trabalho técnico-pericial dos peritos criminais, a autoridade policial, no local de crime, também realiza a chamada “recognição visuográfica” do mesmo, de modo a carrear ao inquérito todas as observações efetuadas no sítio que tenham interesse policial, conjugando-se a lógica com as impressões carreadas “in loco”.
Destarte, cada órgão público, irmanado e em conjunto, deve agir de maneira a fazer cumprir os postulados vigentes, de modo a fortalecer o processo investigativo e a busca da verdade atingível.
Notas
[1] “Art. 18. Local de crime é todo o sítio onde tenha ocorrido um evento que necessite de providência da polícia, devendo ser preservado pelo policial que comparecer até sua liberação pela autoridade” (Resolução SSP-382/99).
[2] Observar, no que for aplicável, o disposto na Resolução SSP-382/99.
[3] Lei Federal nº 12.830/13.
[4] Arts. 6º, I e 169 do Código de Processo Penal.
[5] Art. 6º, VII e 178, ambos do Código de Processo Penal e art. 2º, parágrafo 2º da Lei Federal nº 12.830/13.
[6] Lei Complementar nº 1.151/11, alterada pela Lei Complementar nº 1.249/14.
[7] Art. 2º da Lei Federal nº 12.030/09.