1. Introdução:
A atual conformação constitucional do Ministério Público trouxe profunda modificação em suas atribuições, passando a fornecer diversas possibilidades de estudos de novos temas relacionados com a Instituição, atraindo a atenção inclusive de pesquisadores de outras áreas de conhecimento que não a jurídica. [01]
Será objeto deste trabalho exatamente um desses diversos temas que decorrem da ampliação da presença do Ministério Público no processo: a possibilidade de a Instituição ser admitida como terceiro interveniente, na condição de assistente simples [02], em processo em que se discuta questão institucional ou em que se veicule pretensão contra membro do Ministério Público [03], em razão de sua atuação funcional.
Analisaremos, pois, a possibilidade de o Ministério Público intervir no processo não na condição de fiscal da lei, movido pela existência de interesse público (ou social) ou direito indisponível, mas, sim, como terceiro interveniente em razão de interesse institucional, o que, em última análise, não deixa de ser uma decorrência do interesse público, pela natureza própria da Instituição. É necessário frisar que estamos diante de uma nova possibilidade de atuação do Ministério Público no processo civil, afastando-se da análise do problema, desde já, qualquer raciocínio voltado para a clássica figura da intervenção como custos legis. [04]
Enfim, trataremos de um modo novo de atuação do Ministério Público no processo civil, em que a própria Instituição é a tutelada. Isso porque, com a ampliação de sua presença no processo e também por sua atividade extrajudicial, o Ministério Público despertou reações de variada ordem e, dentre elas, vê-se a proliferação de ações ajuizadas diretamente contra a pessoa de membro da Instituição, em que a causa de pedir e/ou o pedido contêm aspectos ligados à atuação funcional. Diante desse quadro, surge a necessidade de o Ministério Público cuidar da defesa de sua posição jurídica e a intervenção como assistente simples é a expressão de uma das possibilidades de se preservar o interesse institucional. [05]
O interesse pelo tema surgiu em razão de, recentemente, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Procurador-Geral de Justiça, haver requerido seu ingresso como assistente em processos instaurados em face de Promotores de Justiça, que passaram a ocupar a posição de réus em razão da atuação funcional [06]. Posteriormente, o Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul aprovou parecer de sua assessoria que, com base nos fatos ocorridos no Rio de Janeiro, admitiu, em tese, a possibilidade de a Instituição ingressar como assistente simples em processo instaurado contra Promotor de Justiça [07]. Por fim, a nova lei orgânica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo 81, §2o, prevê expressamente essa possibilidade, dispondo que "o Ministério Público, representado pelo Procurador-Geral de Justiça, poderá habilitar-se como assistente em ação civil ajuizada em face de membro do Ministério Público em virtude de ato praticado no exercício das suas funções". [08]
Verificaremos, no decorrer do trabalho, se o Ministério Público, afinal, possui interesse jurídico que lhe autorize ingressar em um processo em que figure um de seus membros como parte, por ato decorrente do exercício de sua função. Procuraremos, portanto, responder à seguinte indagação: ajuizada uma ação em face de um membro do Ministério Público, em razão de seu exercício funcional, há interesse jurídico que autorize a intervenção da Instituição como assistente simples? Também trataremos da hipótese em que o Ministério Público intervém em processo em que esteja sendo debatida questão institucional, como ações diretas de inconstitucionalidade e mandados de segurança.
Percebe-se, portanto, que o assunto a ser tratado neste trabalho decorre diretamente da maior visibilidade que a Instituição adquiriu em razão do exercício das atribuições que lhe foram outorgadas pela Constituição, ampliando sua atuação processual e extraprocessual, como destacamos no primeiro parágrafo deste texto. Exatamente para preservar sua destinação constitucional, seja para se defender de quaisquer tentativas de amesquinhamento da Instituição, seja para identificar e punir eventual membro que se valha de seu cargo para fins anormais, é que nos parece que os processos instaurados contra Promotores ou Procuradores merecem maior atenção institucional, surgindo o instituto da intervenção de terceiros como um importante instrumento para que o Ministério Público participe ativamente de questões que, transcendendo a figura pessoal de seu membro, potencialmente atingem toda a Instituição.
O tema de que cuidaremos não é imune a polêmicas [09] e isso é até um incentivo para nossa pesquisa, que pretende, dentro de suas naturais limitações, fomentar um debate sobre o assunto que, se não é exatamente inédito, é um novo enfoque sobre a própria figura da assistência e sobre a atuação do Ministério Público no processo.
2. Assistência simples: generalidades
Considerada como a mais típica figura de intervenção de terceiros, em que pese a opção topográfica do Código de Processo Civil, a assistência simples pode ser conceituada como a "espécie de intervenção voluntária no processo, em que o terceiro até então fora da causa pendente, mas não completamente estranho à relação processual instaurada, intervém no processo, tendo em vista seu interesse jurídico em que a sentença seja prolatada favorecendo à parte a quem assiste, isto é, com a finalidade de auxiliar que o assistido obtenha na demanda um resultado satisfatório, vitorioso" [10].
A assistência simples, portanto, é a forma de intervenção facultativa e voluntária de terceiro em processo pendente, para auxiliar uma das partes, em razão de o assistente poder, atual ou potencialmente, ter sua situação jurídica atingida desfavoravelmente.
Na síntese de José Alberto dos Reis [11], a intervenção do assistente é espontânea e seu propósito é o de auxiliar uma das partes em causa pendente, devendo ter interesse jurídico em que a decisão do processo seja favorável à parte que se propõe ajudar.
Além de requisitos genéricos para o ingresso de terceiro em um processo, a legislação processual condiciona o exercício da assistência ao preenchimento dos seguintes requisitos específicos: causa pendente e interesse jurídico (art. 50, CPC).
Para os fins deste trabalho, interessa o conceito de interesse jurídico, já que sempre haverá uma causa pendente. Como não é tarefa livre de turbulências a verificação concreta da existência de interesse jurídico apto a habilitar o ingresso de um assistente, é de todo recomendável que se examinem os conceitos oferecidos pela doutrina brasileira, esperando que as citações doutrinárias que traremos no tópico seguinte não sejam excessivas a ponto de tornarem pesado o trabalho ou até deformarem-no, para lembrarmos a advertência de Carnelutti [12].
3. Conceito de interesse jurídico: breve esboço doutrinário
O conceito de interesse jurídico é o ponto mais tormentoso e controvertido no estudo da assistência [13], limitando-se o Código de Processo Civil, em seu artigo 50, a dispor que poderá intervir como assistente o terceiro que tiver interesse jurídico em que a sentença seja favorável a uma delas [14].
Iniciaremos este esboço doutrinário pelos conceitos que se nos afiguram mais completos, que são os fornecidos por Thereza Alvim e Arruda Alvim.
Segundo Thereza Alvim, o interesse será jurídico "se a esfera jurídica do terceiro puder ser atingida de fato, isto é, pelos fundamentos de fato e de direito da sentença ou pela própria decisão, de forma indireta, tenha ele entrado ou não no processo" [15]. Em trabalho mais recente [16], Thereza Alvim afirma que "só será jurídico o interesse do terceiro, se a decisão judicial da lide, ou seja, do pedido que não foi, nem por ele, nem contra ele, feito, puder vir a afetar relação jurídica sua com o assistido, puder ser atingido por atos executórios afetando sua esfera jurídica, ou, ainda, puder ser alcançada sua esfera jurídica, atual ou potencialmente", acrescentando que o terceiro será atingido apenas pela eficácia natural da sentença.
Arruda Alvim afirma que a esfera jurídica do assistente simples poderá ser afetada de duas formas: 1) se a própria decisão do processo alcançar relação jurídica sua com quem deseja assistir, como uma prejudicial; 2) se a justiça da decisão operar efeitos de fato na esfera jurídica do assistente simples. Esclarece esse autor que, para o interesse do terceiro ser considerado jurídico, "deve, do processo entre outras pessoas, poder resultar influência benéfica ou contrária, prejudicial ou indireta, no conflito de interesses, atual ou potencial, que tem ele com a parte a quem deseja assistir". [17]Em outra obra [18], Arruda Alvim destaca que o interesse jurídico justificador do ingresso do assistente simples deve ser aferido em função de a sentença poder afetar ou não esse terceiro.
Em interessantíssimo parecer [19], Arruda Alvim sustenta que o "mero reflexo prático na posição do assistente é o bastante para justificar o seu ingresso; a isto se reduz o interesse jurídico do assistente", esclarecendo mais adiante que "recebe, pela lei processual vigente, a qualificação de jurídico o interesse do terceiro se vislumbrado estiver, atual ou potencial, atingimento de fato na sua esfera jurídica" e concluindo que "a tradição do nosso Direito é a mais liberal possível, tangentemente à configuração do interesse do assistente". Citando Rosenberg, bem demonstra que o conceito de interesse jurídico não pode ser delimitado de maneira formal, estando presente essa classe de interesse, segundo o processualista alemão, "sempre que o interveniente aderente esteja em relação jurídica tal com as partes ou o objeto do processo principal, que uma sentença desfavorável influiria de algum modo, juridicamente e em seu detrimento, em sua situação de Direito Privado ou Público". [20]
Moacyr Amaral Santos não fornece uma noção tão completa, mas é correto em sua abordagem, ao afirmar que "o assistente intervém fundado no interesse jurídico, que tem, de que a sentença não seja proferida contra o assistido, porque proferida contra este poderia influir desfavoravelmente na sua situação jurídica". [21]
Nessa mesma linha, encontramos as seguintes abordagens: a) Cândido Rangel Dinamarco, que observa que "o interesse que legitima a assistência é sempre representado pelos reflexos jurídicos que os resultados do processo possam projetar sobre a esfera de direitos do terceiro. Esses possíveis reflexos ocorrem quando o terceiro se mostra titular de algum direito ou obrigação cuja existência ou inexistência depende do julgamento da causa pendente, ou vice-versa.(...) É de prejudicialidade a relação entre a situação jurídica do terceiro e os direitos e obrigações versados na causa pendente. Ao afirmar ou negar o direito do autor, de algum modo o juiz estará colocando premissas para a afirmação ou negação do direito ou obrigação de terceiro – e daí o interesse deste em ingressar" [22]; b) Celso Agrícola Barbi, que escreve que "o interesse é jurídico quando, entre o direito em litígio e o direito que o credor quer proteger com a vitória daquele, houver uma relação de conexão ou de dependência, de modo que a solução do litígio pode influir, favorável ou desfavoravelmente, sobre a posição jurídica de terceiro" [23]; c) Ovídio Baptista da Silva, para quem "dá-se intervenção adesiva simples quando terceiro ingressa no processo com a finalidade de auxiliar uma das partes em cuja vitória tenha interesse, uma vez que a sentença contrária à parte coadjuvada prejudicaria um direito seu, de alguma forma ligada ao direito do assistido" [24]; d) Marcelo Abelha Rodrigues, que entende que o interesse jurídico exigido para a assistência liga-se ao direito substancial, aferível pela situação de atingimento reflexo e jurídico na esfera do potencial assistente [25];e) Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini, que consideram que o interesse jurídico "nasce da perspectiva de [o assistente] sofrer efeitos reflexos da decisão desfavorável ao assistido, de forma que sua esfera seja afetada" [26]; f) Vicente Greco Filho, anotando que "a qualidade de jurídico do interesse que legitima a assistência simples decorre da potencialidade de a sentença a ser proferida repercutir, positiva ou negativamente, na esfera jurídica do terceiro" [27]; g) Cássio Scarpinella Bueno, que, em recente trabalho, afirma que o interesse jurídico do assistente simples "deve ser dedutível da probabilidade atual ou iminente de que possa a decisão a ser proferida no processo em que pretende intervir vir a afetar sua esfera jurídica enquanto fato eficaz" [28]; h) Genacéia da Silva Alberton, que entende que "o assistente não reclama direito próprio, mas tem interesse pessoal na sorte da pretensão de uma das partes, ficando sua situação processual dependente da parte coadjuvada" [29]; i) Daniel Ustárroz afirma que o "interesse reside na circunstância de que, caso seu assistido saia vitorioso, o assistente afastará parcela ou a totalidade de efeitos reflexos que sentença favorável ao adversário do assistido poderia ter sobre seu patrimônio jurídico" [30].
Todos esses posicionamentos, embora não sejam plenamente coincidentes, seguem uma linha em comum, já que, basicamente, limitam-se a expressar que o interesse jurídico consiste na possibilidade de o assistente ser atingido desfavoravelmente em sua situação jurídica.
Entretanto, José Frederico Marques [31] acatou a definição de Moacyr Lobo da Costa, que entendia que "sempre que o terceiro seja titular de uma relação jurídica, cuja consistência prática ou econômica dependa da pretensão de uma das partes do processo, ele deve ser admitido a intervir na causa, para atuar no sentido de que a seja favorável à pretensão da parte a que aderiu. Não se trata, evidentemente, de interesse prático ou econômico, que não legitima a intervenção. Deve existir uma relação jurídica, entre o terceiro e a parte, cuja consistência prática ou econômica dependa da pretensão dessa parte na lide, e possa ser afetada pela decisão da causa". Vê-se, aqui, um conceito restritivo que vamos encontrar em outros doutrinadores e na jurisprudência, que passa a vincular o interesse jurídico a uma necessária relação jurídica entre o terceiro e a parte, o que nos parece equivocado.
Humberto Theodoro Júnior, por exemplo, expressamente arrola a existência de uma relação jurídica como pressuposto da assistência, ao defender que o interesse do assistente consiste "na preservação ou na obtenção de uma situação jurídica de outrem (a parte) que possa influir positivamente na relação jurídica não-litigiosa existente entre ele, assistente, e a parte assistida", de modo que são seus pressupostos: "a) existência de relação jurídica entre uma das partes e o terceiro (assistente) e b) possibilidade de vir a sentença a influir na referida relação". [32]
Merece registro, também, pela influência que seu pensamento exerce ainda hoje no Brasil, o posicionamento de Alberto dos Reis, que entendia ser necessário o seguinte, para que restasse configurado o interesse jurídico: a) que derive de relação jurídica em que figure como parte o candidato à assistência; b) que esta relação seja conexa com a relação jurídica litigiosa, devendo tal conexão consistir num laço de prejudicialidade ou dependência. [33]
Parece-nos que, neste particular, assiste razão a Helio Tornaghi [34], quando corretamente afirma que não se exige qualquer relação jurídica entre o assistente e as partes principais do processo, bastando que os efeitos reflexos da sentença tragam prejuízo ou vantagem para o interesse jurídico do assistente.
Nelson Nery Junior, do mesmo modo, é preciso ao afirmar que "há interesse jurídico do terceiro quando a relação jurídica da qual seja titular possa ser reflexamente atingida pela sentença que vier a ser proferida entre assistido e parte contrária. Não há necessidade de que o terceiro tenha, efetivamente, relação jurídica com o assistido, ainda que isso ocorra na maioria dos casos". [35]
Luiz Guilherme Marinoni também afirma que a existência de relação jurídica entre o terceiro e a parte não integra o conceito de interesse jurídico e, para confirmar seu raciocínio, invoca o clássico exemplo do tabelião que ingressa em processo em que se discute a existência de vício em escritura pública, em que se admite a assistência sem que haja relação jurídica. [36]
Nos dois recentes estudos específicos sobre assistência simples, encontramos uma preferência pela casuística, evitando os autores a elaborar um conceito prévio de interesse jurídico.
Em seu trabalho, Ubiratan de Couto Maurício afirma, inicialmente, que não se pode aplicar ao direito brasileiro o mesmo conceito de interesse jurídico fornecido pelo direito português, que acabou por consagrar fórmula de admissibilidade mais ampla, possibilitando a assistência em caso de haver apenas interesse de fato. Segundo este autor, "a circunstância do terceiro que pretende intervir como assistente simples ser titular da relação jurídica com a parte a qual deseja assistir, não quer dizer que, por si só, já esteja configurado interesse jurídico. O que é relevante para caracterizá-lo são os efeitos reflexos emergentes da sentença que, faticamente, poderão repercutir na esfera jurídica do terceiro, mesmo que não haja relação jurídica entre ele e a parte que pretende assistir, pois esta poderá existir e juridicamente não ser atingida pelos efeitos indiretos emanados da sentença proferida entre as partes". [37]
Em sua recente dissertação, João Luís Macedo dos Santos considera um importante parâmetro para a verificação da existência do interesse jurídico o entendimento retirado de julgamento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual deve partir-se da hipótese de vitória da parte contrária para indagar se dela adviria prejuízo juridicamente relevante. [38]
Esse breve e exemplificativo panorama doutrinário é suficiente para demonstrarmos a fluidez conceitual de interesse jurídico. De todo modo, as posições doutrinárias fornecem relevantes subsídios para a identificação concreta do interesse jurídico. A definição apriorística cabal do que seja interesse jurídico é extremamente difícil, como concluíram estes dois autores por último citados, de modo que em cada caso concreto é que será melhor verificado o conceito [39].
Essa dificuldade doutrinária se transfere para a jurisprudência, como fica evidente no seguinte excerto de um acórdão do Supremo Tribunal Federal, em que se procurava diferenciar o interesse jurídico do meramente econômico: "Não há como pôr em linha delimitada, estanque, um e outro: o interesse econômico penetra na vida jurídica assumindo sua legitimidade quando encontra na lei a expressão formal. E o interesse jurídico não é simples fórmula vazia, sem conteúdo, exprimindo muitas vezes, na maioria, um interesse econômico. Dizer até onde se estende um ou onde outro principia é tarefa que os doutos ainda não cumpriram; distinguir o domínio de um ou de outro não conseguiram ainda os estudiosos, oscilando em sentidos diversos, conforme a linha de pensamento, que sustentam, e a própria ideologia, a que servem". [40]
É diante desse quadro que tentaremos demonstrar que o interesse institucional pode ser uma forma de expressão do interesse jurídico.