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O direito à saúde em juízo

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Agenda 02/02/2006 às 00:00

Síntese: O texto versa sobre questões relativas ao direito à saúde em juízo como contraponto da obrigação estatal que é correlata a este direito subjetivo.

Sumário: 1-A tutela Judicial do Direito à Saúde: Um Problema Atual. 2- Os Direitos e a Constituição. 3- O Desafio da Implantação das Políticas Sociais e a via judicia. 4-Dlscricionariedade Administrativa e Poder Judiciário. 5- Limitações Orçamentárias e Intervenção Jurisdicional. 6- Solução nos Casos Concretos 7- Questões Processuais. 8- Eficácia Concreta das Decisões. 9- Conclusões


1- A TUTELA JUDICIAL DO DIREITO À SAÚDE: UM PROBLEMA ATUAL

Neste exato momento, milhares de ações tramitam em todo o país objetivando o fornecimento, por parte do Estado, de algum medicamento ou tratamento médico. Nestas demandas, encontramos a manifestação de uma série de questões muito mais amplas, que dizem respeito à espécie de Estado que queremos e a sua conformação organizacional.

Dentre essas questões, se sobressai a do equilíbrio de poderes, que se manifesta no dilema de aferir-se até onde é lícito ao Poder Judiciário interferir em ações do Executivo.

Também vários aspectos processuais entram em voga, notadamente no que tange a legitimidade para a propositura das demandas e, especialmente, e a eficácia concreta da tutela jurisdicional por fim prestada.

O certo, porém, é que o tema apresenta invulgar importância na atualidade, qualquer que seja o prisma considerado.

Conscientes dessa crescente importância e da relativa ausência de trabalhos que abordem especificamente esta temática, nos propomos a traçar algumas considerações úteis acerca do assunto, objetivando trazer à lume os aspectos mais relevantes do direito à saúde como objeto da tutela jurisdicional.

O problema é atual e demanda reflexão.


2- OS DIREITOS E A CONSTITUIÇÃO

Premissa fundamental para a compreensão da dimensão do direito à saúde como direito subjetivo é considerarmos a evolução dos direitos frente aos modelos constitucionais. O direito à saúde, em especial quando considerado como contraposto de uma obrigação estatal, tem sua base fundamental na Constituição e é a partir desta estatura jurídica que deve ser considerado.

O constitucionalismo como primado do Estado Moderno, noção esta que não é tão cara, é, em verdade, bastante recente em termos de história da humanidade. As Constituições, nas feições orgânicas pelas quais hoje as concebemos, têm pouco mais de duzentos anos, podendo ser citados por marcos a Constituição Norte-americana e a Constituição Francesa, no último quartel do século XVIII.

Estes diplomas surgem no contexto da doutrina iluminista, cuja faceta político-econômica é o liberalismo. Este é um momento de ruptura com o absolutismo monárquico e com séculos de opressão do Estado. É um momento de revisão do papel e do conteúdo do Estado frente a sociedade, e de auto-afirmação do indivíduo perante o Estado. Não é de causar estranheza, portanto, que os direitos contemplados nas célebres "Declarações de Direitos" tenham, sobretudo, um caráter negativo, ou seja, tenham por escopo fundamental assegurar a liberdade do indivíduo perante o Estado e limitar a atuação deste último.

A principal virtude do Estado nesta visão é abster-se de interferir na vida dos cidadãos, permitindo o livre exercício das atividades econômicas sob as leis do mercado. Naturalmente, o Estado do modelo constitucional liberal é um Estado–mínimo, porque suas obrigações têm preponderante natureza negativa.

Os direitos constitucionais são os direitos do indivíduo.

A sociedade do século XVIII não permitiu que se implantasse um quadro de justiça social. As condições sociais, guardadas as devidas proporções, continuaram tão ruins, ou piores, do que aquelas vistas no ancién regime. Poucos grupos sociais colheram os frutos da ruptura do grilhões do Estado personalista. As pressões sociais manifestaram-se em múltiplos movimentos, inclusive revolucionários.

Isso conduziu ao constitucionalismo social do início do século XX e aos direitos de segunda geração, com especial ênfase para os direitos trabalhistas e sociais, que já podem ser vistos nas Constituições Mexicana e Alemã da segunda década do século XX.

Nesse momento, começa a ocorrer uma mudança de perspectiva no papel do Estado, a quem não cabem somente comportamentos negativos ou uma postura passiva diante da realidade social. Ao Estado, como síntese da busca do bem comum, são carreados comportamentos ativos, de intervenção na realidade em busca concretização dos objetivos que representam os valores constitucionais.

Os direitos constitucionais já são os direitos de um indivíduo no contexto de uma sociedade. Este processo irá se consolidar com as Constituições Italiana e Alemã (Bonn), ambas da década de quarenta.

Na segunda metade do século XX, surgem os direitos de terceira e quarta geração, direitos estes que têm em perspectiva a própria sociedade, de forma indeterminada, e o indivíduo enquanto cidadão. São, portanto, os direitos difusos e coletivos e os direitos da participação democrática, ou seja, os direitos políticos.

O direito à saúde pode ser tomado sob qualquer um destes primas. É um direito individual na medida em que qualquer pessoa tem direito à sua integridade física e psíquica como corolário do seu direito de personalidade. Neste caso, dispõe de ação e pode exercer pretensão objetivando a abstenção de comportamento de terceiros que venham a por em risco sua saúde.

O direito à saúde também é um direito social e como tal é expressamente previsto nos artigos 6º, caput, e 196 da CF/88. Nesta condição, sua invocação pode ser feita como base de pretensões a comportamentos positivos por parte do Poder Público.

Por fim, a saúde também é direito difuso a apresenta uma faceta política. De fato, a comunidade como um todo é titular de direito a comportamentos positivos e negativos em relação a particulares e ao próprio Estado. A gestão da saúde, de seu turno, deve ser democrática, de forma que também condensa direito político de participação democrática.

É sobretudo como direito social que o direito à saúde nos interessa na apresenta abordagem.


3-O DESAFIO DA IMPLANTAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E A VIA JUDICIAL

Que o cidadão tem direito à saúde e o Estado um dever de prestá-la é inegável. Mas o reconhecimento deste fato como premissa válida não significa ipso facto, sua materialização efetiva.

A implantação das políticas sociais que concretizam os direitos desta natureza carecem de recursos que, na nossa realidade, são escassos. A Constituição Federal impõe ao Estado uma enorme gama de obrigações, mas o Brasil não é um país rico.

O Estado obtém receitas principalmente através da atividade tributária, diretamente relacionada à economia da nação. Proporcionalmente ao número de habitantes o Brasil não é uma nação rica.

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Diante de infinitas necessidades e escassos recursos, o administrador, qualquer que seja a época considerada e a agremiação política a que pertence, encontra diante de si o desafio de conciliar o inconciliável. A conseqüência é que inúmeros casos individualizados não encontram solução satisfatória.

Certamente que a incapacidade administrativa e alguns casos de corrupção contribuem para a carência generalizada de cidadania que observamos hoje. Mas não nos iludamos, pois estas não são as causas principais das carências. Recuso-me a crer que a corrupção e a incompetência sejam as regras. Temos de partir da premissa de que o administrador público, qualquer que seja a sua agremiação política, está, em regra, embuído do dever de bem administrar a coisa pública com probidade. Se falhas ocorrem, devem-se mais a problemas estruturais do que a casos individualizados de desvios.

Então, o problema da saúde pública é antes um problema de déficit do que de qualquer outra coisa, embora existam outros fatores ponderáveis.

Diante das necessidades crescentes e dos escassos recursos, surge o problema da escolha. Quais os casos que serão atendidos? Quem tem mais necessidade? Qual situação é mais grave?

Como o cidadão pode levar à apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88), esta problemática acaba por desembocar nas mãos do Juiz, dando ensanchas à infindável e tormentosa questão do papel do Poder Judiciário frente à discricionariedade administrativa, cuja projeção se dá na questão da separação de Poderes.


4- DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E PODER JUDICIÁRIO

Há possibilidade de estabelecimento de critérios objetivos para determinação da prioridade de atendimento de cada caso, mas estes critérios operam dentro de limites. Por outro lado, em certas situações, o não atendimento de uma situação específica implica em periclitação própria vida, não sendo lícito aplicar-se critérios administrativos em detrimento de um direito de tamanha envergadura.

A questão envolve, mais sedo ou mais tarde, a discricionariedade administrativa, cuja problemática é antiga, mas que se agravou ainda mais em vista do modelo constitucional adotado pela Carta de 1988.

No caso de implantação de políticas públicas em vista de casos concretos, os limites da discricionariedade tornam-se imprecisos, dificultando sobremaneira o estabelecimento, com precisão, do campo de atuação do Poder Judiciário.

Isto ocorre porque a discricionariedade implica na atribuição do administrador "de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. [01]"

Em linha de princípio, o campo de liberdade concedido ao administrador seria intangível ao controle meritório (não de legalidade) por parte do Judiciário. Admitir-se possa o Poder Judiciário imiscuir-se no mérito administrativo eqüivaleria a romper com a divisão de poderes, irrogando-se ao juiz a posição de administrador.

O mérito constitui-se exatamente no "campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante situação vertente, tendo em vista o exato entendimento da finalidade legal ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada." [02]

Este um dos graves dilemas enfrentados e que não apresenta uma solução técnica satisfatória que possa conduzir ao deslinde da questão sem comprometer a integridade lógica do sistema.


5- LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS E INTERVENÇÃO JURISDICIONAL

Outra questão de solução não menos tormentosa tem margem quando consideradas as limitações financeiras e orçamentárias. Calha consideração o princípio da quantificação dos créditos, a respeito do qual pondera José Afonso da Silva:

"O princípio da quantificação dos créditos orçamentários, isto é, quantificação daquilo que o Executivo está autorizado a gastar, é de suma importância para a fiscalização e o controle por parte do Poder Legislativo. Ele está traduzido na regra de que veda a concessão ou utilização de créditos ilimitados ( artigo 167, VII), que se complementa com outras duas regras que proíbem: a) a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários; b) a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta’ [03]

Em complemento, salienta Celso Ribeiro Bastos:

"Característica importante da despesa pública é que há de ser sempre antecedida de previsão orçamentária, que fará a fixação da despesa. Aliás, o artigo 167, II, da Constituição da República proíbe a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais. Há portanto, uma disciplina bastante estrita a regular a realização da despesa pública." [04]

Admitida a intervenção judicial a fim de criar obrigações específicas para o Executivo, há necessidade de alocar recursos financeiros para situações localizadas, podendo se chegar a um quadro onde as obrigações superem as possibilidades orçamentárias, com potencial violação de normas constitucionais.


6- A SOLUÇÃO NOS CASOS CONCRETOS

Sendo defeso ao Poder Judiciário proferir o "nom liquet", a questão do seu papel frente do direito à saúde haveria de encontrar uma solução. Analisando-se a jurisprudência, consta-se que os pretórios têm admitido a intervenção jurisdicional a fim de determinar o fornecimento de tratamento médico ou medicação em casos individualizados, não obstante os problemas acima mencionados.

Parte-se da premissa que "uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como circulares, portarias, medidas provisórias, leis ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à saúde, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria que assola o país." [05]

Considera-se que "o Poder Judiciário, no exercício de sua alta e importante missão constitucional, deve e pode impor ao Poder Executivo Estadual o cumprimento da disposição constitucional que garante o direito à saúde, sob pena de compactuar com a dor e sofrimento de milhares de brasileiros, pobres e carentes que, ao buscarem, por falta de opção, tratamento no Sistema Único de Saúde, ficam à mercê de um sistema de saúde precário e ineficiente que muitas vezes conduz à morte." [06]

As limitações orçamentárias são repelidas como justificativa para o indeferimento dos pleitos relativos à saúde pública ao argumento de que prover receitas também representa uma obrigação do Estado. Não há, na hipótese, indevida ingerência de competências, mas sim reposição da legalidade, pois como lembra o Ministro Celso de Mello:

"As situações configuradoras de omissão inconstitucional- ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva, fundada na Carta Política, de que é destinatário- refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário" [07]

Em outra oportunidade, ressaltou que:

"A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos" [08].

A questão da existência de uma direito à saúde, com correlata obrigação do Estado, encontra-se, assim, mais ou menos pacificada nos tribunais de todo o país.

Em algumas situações especiais, há inclusive, previsão infraconstitucional própria a respeito do direito à saúde, citando-se o ECA e o Estatuto do Idoso. Nesta última legislação, por exemplo, o artigo 9º estabelece que "é obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade". Já no caso do ECA, o artigo 7º diz que "a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência."

Urge, pois, analisar quais os instrumentos processuais adequados e quais as questões processuais relevantes que se colocam na busca da tutela jurisdicional deste direito subjetivo.


7- QUESTÕES PROCESSUAIS

Qualquer cidadão pode mover demanda judicial buscando tutela condenatória ou mandamental a fim de obter prestação positiva do Estado relativa ao direito à saúde. Já a legitimidade do Ministério Público ainda é objeto de divergência.

No caso do ECA e do Estatuto do Idoso, por exemplo, a questão é de solução mais fácil, uma vez que a legitimidade do Ministério Público verte do texto da lei. No caso do ECA, invoca-se o artigo 201, incisos V e VII. No caso do Estatuto do Idoso, temos o artigo 74, incisos I e II.

Mas no caso de pessoas maiores e capazes, ainda há divergência jurisprudencial significativa. De um lado, diz-se que fenece legitimidade ao Ministério Público ante ausência de previsão e pelo fato de que "tratando-se de interesse individual, cujo titular perfeitamente identificado não pode ser enquadrado na definição de consumidor, nem sua relação com o Estado considerada de consumo, resta inviável sua defesa por intermédio da ação civil pública, tanto quanto para tal não se legitima o Ministério Público" [09]

Argumenta-se que "a ação civil pública não se presta à proteção de direitos individuais disponíveis, salvo quando homogêneos e oriundos de relação de consumo" [10]

Outro argumento que também é utilizado é o de que a existência das Defensorias Públicas também desautorizaria o ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público quando em voga direito individual.

Mas neste caso uma ponderação é irrefutável e diz respeito ao fato de que os serviços de defensoria pública ainda estão, de um modo geral, bem aquém das necessidades da sociedade. No caso específico do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, o número de defensores ainda é muito pequeno, havendo casos em que um único defensor atende a várias comarcas. Esta constatação legitima a invocação da solução adotada no caso da legitimidade do Ministério Público para a actio civilis ex delicto, quando se adotou a inconstitucionalidade progressiva, segundo a qual, no caso, "o Ministério Público somente tem legitimidade para propor ação civil ex delicto, em favor de pessoas pobres, se não houver ou for insuficiente o serviço da Defensoria Pública." [11]

A situação no caso da ação civil pública para defesa de direito individual à saúde, desconsiderados outros fatores, é a mesma, pois nem sempre estão disponíveis defensores dativos, apesar da simplificação na sistemática de remuneração operada por ação da Corregedoria-Geral de Justiça do TJRS.

Neste diapasão, forçoso concluir que, ao menos até que implantado um serviço eficiente de defensoria pública, o Ministério Público detém, independentemente de qualquer outro óbice, legitimidade para pleitear direitos individuais dessa natureza.

Por outro lado, em contraponto, tem se reconhecido a natureza indisponível do direito à saúde, o que tem por corolário a legitimação de sua defesa via ação civil pública.

Parte-se da premissa de que "é o Ministério Público parte legítima para intentar ação na qual pretende resguardar direito fundamental e coibir violação aos direitos inerentes à dignidade e existência humana" [12] para concluir-se que "o Ministério Público, por força de mandamento constitucional, possui legitimidade para defesa de interesse individuais homogêneos indisponíveis (art. 127, da CF), máxime tratando-se do direito à vida do cidadão. A legitimidade conferida pelo art. 21 da Lei nº 7.347/85 é estendida aos casos de defesa de direitos individuais homogêneos que digam com interesse social relevante." [13]

Ressoa ilógico e dessarazoado negar-se legitimidade ao Ministério Público em vista da condição do beneficiário. Ordinariamente, a legitimação relaciona-se à titularidade do direito subjetivo. Legitimado à demanda judicial é o titular do direito ou seus sucessor. Este princípio, porém, tem origens na visão privatista do processo.

A tutela dos direitos sob a ótica de um constitucionalismo de matiz democrático-social demanda uma nova visão do processo. A questão da legitimação de instituições como o Ministério Público é antes de tudo uma questão de política legislativa. Sua restrição compromete a efetiva realização dos direitos fundamentais ao passo que uma interpretação ampla prejuízo algum causa. Em síntese, não parece razoável comprometer o direito material de fundo, tanto mais quando fundamental, em vista de uma questão cuja solução está ligada mais a mera questão de opção legislativa do que a qualquer outra coisa, pois os novos direitos ou a nova visão dos direitos antes já reconhecidos demanda uma nova interpretação dos instrumentos processuais destinados a sua realização. Não se olvide, ademais, a situação deficitária das defensorias públicas, como já frisado, o que é um motivo a mais para reconhecer-se ampla legitimação para o Ministério Público em caso de beneficiários hipossuficientes.

Se a legitimidade ativa ainda demanda alguma celeuma, no que diz respeito à legitimidade passiva há quase unanimidade em se considerar solidariamente obrigadas as três esferas administrativas. Por outras palavras, a legislação de atribuição de competências administrativas, como a de organização do SUS, somente vincula as relações dos entes administrativos entre si, não podendo ser impostas aos administrados. Isso significa que qualquer uma das esferas administrativas pode ser acionada livremente.

Evidentemente que o bom senso recomenda que seja observada, como orientação não vinculativa, a distribuição de atribuições, pois medicamentos ou tratamentos de alta complexidade ou custo pleiteados em vista de um pequeno município poderiam consumir significativa parcela do orçamento da saúde. Melhor será acionar o Estado Federado ou a União neste caso.

Havendo solidariedade, surge a questão da possibilidade de o ente acionado judicialmente promover a intervenção forçada de outra esfera. Dois mecanismos processuais são usualmente utilizados, quais seja, a denunciação à lide (artigo 70, inciso III< do cpc) e a nomeação à autoria (artigo 62 do cpc). ao invocar as regras administrativas de atribuição de "competências" para afirmar que não está obrigado à prestação postulada, o ente administrativo busca a nomeação à autoria de outro ente, colocando como alternativa a denunciação à lide para dividir a responsabilidade, se reconhecida a solidariedade.

Estas formas de intervenção forçada têm sido, contudo, embora em tese cabíveis, rechaçadas pela jurisprudência, ao argumento de que pode implicar em prolongamento do feito, não se podendo considerar que em regra as situações objetos desses processos marcam-se pela urgência. A rigor, esse argumento não é válido se considerada a antecipação dos efeitos da tutela. A denunciação à lide também permite uma melhor distribuição das obrigações. Mas resta outra ponderação pertinente à denunciação da União. É que neste caso, a intervenção da União tem por conseqüência o deslocamento da competência para a Justiça Federal o que realmente pode caracterizar uma situação que venha a dificultar o acesso à justiça.

Seja como for, os incidentes não têm sido admitidos nos processos onde se buscam, prestações relativas à saúde, de modo que "a responsabilidade solidária dos entes públicos não obriga ao chamamento ao processo ou a denunciação à lide de outros entes não demandados pelo requerente." [14]

O prévio exaurimento da instância administrativa é outro ponto normalmente controvertido nessas demandas. Já tratei do tema em trabalho intitulado "O exaurimento da instância administrativa como condição para o interesse processual" [15], onde sustento que a prévia invocação da instância administrativa poderia ser uma medida para reduzir significativamente o número de demandas em tramitação.

Parto, para tanto concluir, da constatação de que cada demanda nova que poderia ter sido evitada representa um entrave à rápida solução dos conflitos que efetivamente têm no Poder Judiciário sua única solução. Além disso, cada nova demanda que poderia ser evitada através de um pedido administrativo representa mais honorários a serem pagos pelo Estado, inclusive com defensores nomeados, e tempo com defensores de carreira a quem incumbe, ordinariamente propor estas ações.

Resumidamente, o conflito é que traz a necessidade do processo, e só existe quando a prestação é negada. Reconheço, porém, que a tese é de pouquíssima aceitação.

Apesar disso, insta acentuar que somente naqueles casos nos quais a instância administrativa pudesse eficazmente solucionar o problema é que se poderia exigir que a parte antes dela se valesse. Para aferir-se esta eficácia, certamente temos de levar em linha de conta o fator tempo. Se a via administrativa embora possa fornecer o bem da vida pretendido, não o faz com a necessária urgência, é certo que se torna despicienda qualquer discussão acerca do amplo direito de invocação da via judicial.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. O direito à saúde em juízo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 946, 2 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7894. Acesso em: 18 dez. 2024.

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