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Precatórios: acordo com credores não elide o critério cronológico de pagamento

Agenda 14/01/2020 às 17:06

Aborda a possibilidade de a Fazenda Pública realizar acordo com credores e a necessidade de obediência à ordem cronológica no pagamento dos precatórios com descontos

Uma vez vencida a demanda contra a Fazenda Pública, suas autarquias ou fundações públicas, o credor possui o direito de exigir do Estado o objeto do litígio, ou seja, a quantia devida pelo Erário, o que se dará mediante a emissão de um “precatório”, consistente na ordem judicial expedida contra a Fazenda Pública, obrigando-a a incluir no orçamento valor suficiente para quitar a dívida.

Harrison Leite define precatório nos seguintes termos:

Consiste numa requisição forma de pagamento em que o Poder Público é condenado judicialmente a realizar. Dito de outro modo, o precatório é um ato do Judiciário, de cunho mandamental, decorrente de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública, por intermédio do qual o Estado-Poder Judiciário comunica-se com o Estado-Poder Executivo, dando-lhe notícia da condenação, a fim de que, ao elaborar o orçamento para o próximo exercício, aludido valor seja incluído na fixação da despesa.[1]

Na mesma toada, Regis Fernandes de Oliveira preceitua:

Precatório ou ofício precatório é a solicitação que o juiz da execução faz ao presidente do tribunal respectivo para que ele requisite verba necessária ao pagamento de credor pessoa jurídica de direito público, em face de decisão judicial transitada em julgado.[2]

O regime de precatório objetiva moralizar o pagamento de débitos judiciais do Poder Público, garantindo que não haja preferências ou privilégios indevidos entre credores. A Constituição Federal (CRFB), por sua vez, não apenas instituiu o regime de precatórios, mas também estabeleceu suas principais características, dentre as quais, o estrito respeito à ordem cronológica de apresentação:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Da leitura do retrocitado dispositivo, é possível inferir que a regra geral estabelecida pela CRFB é a de que todos os débitos contra a Fazenda Pública oriundos de sentenças transitadas em julgado devem obedecer à ordem cronológica dos precatórios. Assim, pouco importa a fase processual em que se encontra o processo de execução contra a Fazenda Pública, porquanto havendo o título líquido e certo oriundo de sentença judicial o regime a ser observado é o dos precatórios.

Ainda, consta na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF):

Art. 10. A execução orçamentária e financeira identificará os beneficiários de pagamento de sentenças judiciais, por meio de sistema de contabilidade e administração financeira, para fins de observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição. (grifos acrescidos)

Já a Lei n. 4.320/64 prescreve:

Art. 67. Os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, sendo proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim.

A ordem cronológica de pagamento dos precatórios reforça o princípio da impessoalidade, inserto no caput do art. 37 da CRFB. Com efeito, esse princípio traduz a ideia de que a Administração deve tratar todos os administrados sem discriminações, sem favoritismo ou perseguições. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie[3], sobretudo quanto tais influxos personalísticos do gestor colocam-se contra a implementação de direitos e interesses judicialmente reconhecidos.

No que tange à ordem de pagamento dos precatórios, José Afonso da Silva leciona:

Os pagamentos se fazem atendendo à ordem cronológica da apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos. Portanto, a ordem não é outra senão a das datas em que os ofícios requisitórios dão entrada na repartição fazendária competente. Agora, contudo, são duas ordens para os precatórios judiciais: uma ordem cronológica especial, para os pagamentos de créditos de natureza alimentícia, e uma ordem geral e ordinária, referente aos demais pagamentos devidos pela Fazenda Pública respectiva em virtude de sentença judiciária. Foi a Constituição de 1934 que criou esse sistema de pagamento dos débitos da Fazenda Pública segundo a ordem cronológica dos precatórios, dando-lhe um sentido ético, porque afastou a protecionismo. Com a separação dos débitos, pela natureza alimentícia ou não, aperfeiçoou-se o sistema ético, possibilitando o pagamento de pequenos créditos de quem supostamente mais precisa, com preferência aos demais. Desse modo, têm-se duas formas de preferência: a que se manifesta na ordem de apresentação dos precatórios em qualquer das classes de créditos alimentícios e os demais.[4]

Como se observa das lições do doutrinador paulista, fora os casos previstos na própria CRFB, não há possibilidade de se alterar a ordem de pagamento dos precatórios, e antes disso, sequer existe qualquer possibilidade de pagamento de dívidas de entes públicos que não seja por tal sistema. Pagar um precatório à frente de outro previamente inscrito é ilegal e pode suscitar a responsabilidade pessoal da autoridade envolvida.

Para evitar favorecimento de credores, a sequência temporal é requisito essencial no exame da despesa decorrente de sentenças judiciárias. Nesse sentido, altera o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC):

Prejulgado n. 713

Os pagamentos devidos pela Fazenda Municipal em razão de sentença judiciária sujeitam-se ao previsto no art. 100 da CF, combinado com o art. 67 da Lei Federal n. 4.320/64, e far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios (requisições judiciais) e à conta dos créditos respectivos, vedada a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos extraorçamentários (adicionais) abertos para esse fim. O orçamento deverá incluir obrigatoriamente a verba necessária ao pagamento de débitos constantes dos precatórios apresentados até 1º de julho (CF, art. 100, parágrafo 1º), pagando-se os demais mediante abertura de créditos adicionais.

Registra-se também passagem lavrada em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF):

O pagamento antecipado de credor mais recente, em detrimento daquele que dispõe de precedência cronológica, não se legitima em face da Constituição, pois representa comportamento estatal infringente da ordem de prioridade temporal, assegurada, de maneira objetiva e impessoal, pela Carta Política, em favor de todos os credores do Estado. O legislador constituinte, ao editar a norma inscrita no art. 100 da Carta Federal, teve por objetivo evitar a escolha de credores pelo Poder Público. Eventual vantagem concedida ao erário público, por credor mais recente, não justifica, para efeito de pagamento antecipado de seu crédito, a quebra da ordem constitucional de precedência cronológica. O pagamento antecipado que daí resulte – exatamente por caracterizar escolha ilegítima de credor – transgride o postulado constitucional que tutela a prioridade cronológica na satisfação dos débitos estatais, autorizando, em consequência - sem prejuízo de outros efeitos de natureza jurídica e de caráter político-administrativo -, a efetivação do ato de sequestro (RTJ 159/943-945), não obstante o caráter excepcional de que se reveste essa medida de constrição patrimonial. Legitimidade do ato de que ora se reclama. Inocorrência de desrespeito à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI 1.662/SP.[5]

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O desrespeito à ordem cronológica de pagamento de precatórios sujeita o respectivo ente público ao sequestro de valores, que consiste no instrumento assecuratório de preferência do credor contra a Fazenda Pública. O sequestro é medida extrema, porém disponível nas hipóteses previstas no art. 78, §4º, do ADCT, a saber:

1- Preterição do direito de precedência;

2- Não-inserção, no orçamento, do precatório parcelado pela EC n. 30/2000;

3- Não-pagamento da parcela decenal relativa à EC n. 30/2000.

Contudo, importa destacar que a EC n. 62/2009 alterou substancialmente o regime de precatórios e introduziu dispositivos novos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), dentre os quais, um que prevê expressamente a possibilidade de acordo direto entre a Administração Pública e seus credores. A hipótese consta no art. 97, §8º, III do ADCT, verbis:

Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional.

§8º A aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Executivo, obedecendo à seguinte forma, que poderá ser aplicada isoladamente ou simultaneamente.

I - destinados ao pagamento dos precatórios por meio do leilão;

II - destinados a pagamento a vista de precatórios não quitados na forma do § 6° e do inciso I, em ordem única e crescente de valor por precatório;

III - destinados a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever criação e forma de funcionamento de câmara de conciliação. (grifos acrescidos)

Registre-se ainda que, não obstante o STF ter declarado a inconstitucionalidade de parte da EC n. 62/2009, a decisão modulou os efeitos do acórdão para reconhecer como válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos, desde que realizados até 25/03/2015, data a partir da qual não seria mais possível a quitação de precatórios por essas modalidades. Ademais, o Pretório Excelso manteve a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado[6].

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possui resolução específica dispondo sobre a gestão de precatórios no âmbito do Poder Judiciário, na qual reitera a possibilidade de acordos diretos:

Resolução n. 115/2010

Art. 30. A homologação de acordo direto com os credores realizada perante câmara de conciliação instituída pela entidade devedora (inciso III do § 8º do art. 97 do ADCT), deve ser condicionada à existência de lei própria e que respeite, entre outros, os princípios da moralidade e impessoalidade.

Art. 31. Faculta-se aos Tribunais instituir Juízo Auxiliar de Conciliação de Precatórios, com objetivo de buscar a conciliação nos precatórios submetidos ao regime especial de pagamento, utilizando os valores destinados a pagamento por acordo direto com credores, com as competências que forem atribuídas pelo ato de sua instituição.[7]

A possibilidade de descumprimento da ordem cronológica foi inclusive aventada em consulta ao CNJ, oportunidade na qual se destacou:

CONSULTA. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. RESOLUÇÃO 115/CNJ. PRECATÓRIOS. ORDEM CRONOLÓGICA. PAGAMENTO. PRETERIÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL. CONSULTA RESPONDIDA.

I –Consulta formulada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região que pretende manifestação do CNJ sobre a configuração de responsabilização do Presidente do Tribunal no que diz respeito a celebração de acordo nos Juízos Conciliatórios para pagamento de precatórios, eis que tal situação acarreta a inobservância de ordem cronológica de apresentação dos títulos.

II –Pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos recursos oriundos das entidades devedoras devem ser destinados ao pagamento pela ordem cronológica de apresentação, conforme dispõe o § 6º, art. 97 do ADCT, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009. Em relação ao percentual restante, pode a entidade devedora optar pelo pagamento de precatórios por meio de acordo e, nesse caso, sem necessidade de observar a ordem cronológica, conforme previsão contida no §8º do mesmo dispositivo.

III –Desde que observado o limite referenciado, a entidade poderá celebrar acordos de modo discricionário, na esteira dos comandos legais e constitucionais, não configurando qualquer tipo de preterição apta a ocasionar responsabilização do presidente do tribunal.

IV –Consulta respondida.[8]

Quanto ao pagamento de obrigação pecuniária antes mesmo do trânsito em julgado de sentença condenatória, tem-se que a hipótese se insere no debate sobre a capacidade de a Administração Pública transigir sobre o interesse público que, em regra, é indisponível. A jurisprudência tem minimizado o rigor do postulado da indisponibilidade do interesse público, abandonando a ortodoxa interpretação de que a Fazenda Pública deve resistir a qualquer pretensão condenatória. Não obstante, em face do princípio da legalidade, a celebração de negócios jurídicos processuais pela Administração Pública depende sempre de prévia autorização legal, pois a regra permanece sendo a da indisponibilidade dos bens públicos. Nesse sentido:

Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido.[9]

A possibilidade de a Administração Pública transigir foi expressamente admitida pelo vigente Código de Processo Civil (CPC), condicionada à prévia criação de câmaras de mediação e conciliação, conforme se depreende do excerto abaixo:

Art. 174. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, tais como:

I - dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;

II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;

III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

Em reforço, a Lei n. 13.140/2015, que disciplina a mediação e a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, estabelece:

Art. 32. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver, com competência para:

I - dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública;

II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público;

III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

§ 1º O modo de composição e funcionamento das câmaras de que trata o caput será estabelecido em regulamento de cada ente federado.

A jurisprudência, há muito, reconhece a possibilidade de a Administração Pública transigir, porém, impõe a condição de que exista lei especificamente autorizando o acordo. É o que se infere da leitura do julgado do tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG):

APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO DE COBRANÇA - GUARDA E CONSERVAÇÃO DE BEM PÚBLICO MUNICIPAL - ACORDO EXTRAJUDICIAL CELEBRADO ENTRE AS PARTES - INEXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA AUTORIZADORA - IMPOSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL - PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO E DA LEGALIDADE ESTRITA - RECURSO NÃO PROVIDO. 1. É permitido, à Fazenda Pública, celebrar transações nos autos em que seja parte, mas, para tanto, há necessidade de lei autorizativa, conferindo poderes ao representante judicial da pessoa jurídica de direito público, o qual, por sua vez, deverá delegá-los ao procurador que atua no processo específico para firmar a transação. 2. Pelo princípio da legalidade, o administrador deve se ater ao comando legal, sob pena de se gerar situações de favorecimento ou perseguição, violando, por conseguinte, o princípio da supremacia do interesse público. 3. Inexistente, no pacto, menção à norma legal que tenha autorizado a sua celebração, bem como à expressa conferência de poderes ao Procurador Municipal que o subscreveu, correta a decisão judicial que não o homologa. 4. Recurso a que se nega provimento.[10]

O TCE/SC possui prejulgado em que estabelece algumas condições para a realização válida de acordo judicial:

Prejulgado 1672

A formalização de acordo judicial deve ser precedida de autorização, genérica ou específica, do Poder Legislativo da mesma esfera federativa, bem como, decisão judicial imputando a responsabilidade ao ente público, verificação da ocorrência de dolo ou culpa por parte do servidor para propositura de ação regressiva ao causador do dano, vantajosidade da transação para a Administração Pública e homologação judicial do acordo, cujo adimplemento parcelado, se ultrapassar o mandato eletivo do Chefe do Poder Executivo, somente ficará subsumido ao art. 42 da LC nº 101/2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal, se o instrumento for firmado nos dois últimos quadrimestres do seu mandato.

Ademais, no âmbito das transações judiciais que envolvam o pagamento de valores por parte da Administração Pública, ainda que a dívida tenha sido reduzida por acordo entabulado com os credores, não é lícito ao Administrador burlar a ordem cronológica. Nesse sentido, cumpre destacar excerto da decisão proferida na Ação Penal 503/PR e relatada pelo Ministro Celso de Melo:

O comportamento da pessoa jurídica de direito público, que desrespeita a ordem de precedência cronológica de apresentação dos precatórios, deve expor-se às graves sanções definidas pelo ordenamento positivo, inclusive ao próprio sequestro de quantias necessárias à satisfação do credor injustamente preterido. – Nem mesmo a celebração de transação com o Poder Público, ainda que em bases vantajosas para o erário, teria, na época em que ocorridos os fatos expostos na denúncia, o condão de autorizar a inobservância da ordem de precedência cronológica dos precatórios, pois semelhante comportamento – por envolver efetivação de despesa não autorizada por lei e por implicar frustração do direito de credores mais antigos, com evidente prejuízo para eles - enquadra-se no preceito incriminador constante do inciso V do art. 1º do Decreto-lei n. 201/67. [11]

Ainda:

O pagamento antecipado de credor mais recente, em detrimento daquele que dispõe de precedência cronológica, não se legitima em face da Constituição, pois representa comportamento estatal infringente da ordem de prioridade temporal, assegurada, de maneira objetiva e impessoal, pela Carta Política, em favor de todos os credores do Estado. O legislador constituinte, ao editar a norma inscrita no art. 100 da Carta Federal, teve por objetivo evitar a escolha de credores pelo Poder Público.

Eventual vantagem concedida ao erário público, por credor mais recente, não justifica, para efeito de pagamento antecipado de seu crédito, a quebra da ordem constitucional de precedência cronológica. O pagamento antecipado que daí resulte – exatamente por caracterizar escolha ilegítima de credor – transgride o postulado constitucional que tutela a prioridade cronológica na satisfação dos débitos estatais, autorizando, em consequência – sem prejuízo de outros efeitos de natureza jurídica e de caráter político-administrativo -, a efetivação do ato de sequestro (RTJ 159/943-945), não obstante o caráter excepcional de que se reveste essa medida de constrição excepcional. (grifos acrescidos)[12]

Diante do exposto, quanto à possibilidade de a Administração Pública realizar acordo direto com credores para o pagamento de precatório, tem-se:

1) Em regra, a ordem cronológica de pagamento dos precatórios deve ser rigorosamente obedecida, sob pena de o ente público infrator se sujeitar, inclusive, ao sequestro dos valores devidos;

2) A própria CRFB pode estabelecer exceções, como no caso de pagamento por acordo direto com os credores, o qual deve ocorrer sempre na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora;

3) Não obstante o STF ter declarado a inconstitucionalidade de parte da EC n. 62/2009, manteve-se a possibilidade de realização de acordos diretos, com desconto máximo de 40% do valor do crédito atualizado;

4) Deve-se reservar pelo menos 50% dos recursos para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação. Quanto ao restante, sua utilização para o pagamento de acordos diretos deve ser feita em estrita obediência à legislação que disciplina a matéria no âmbito do respectivo ente, observando-se ordem cronológica própria.

5) É lícito à Administração Pública transigir no âmbito de processos judiciais e extrajudiciais, conduta que encontra amparo tanto no CPC quanto na Lei de Mediação;

6) Os acordos judiciais celebrados pela Administração Pública devem ser previamente autorizados por lei geral ou específica do respectivo ente;

7) Quando o acordo implicar o desembolso de numerário por parte do ente público, há que se respeitar a ordem cronológica de pagamento do sistema de precatórios, sob pena de burla inadmitida pela CRFB.

 


[1] LEITE, Harrison. Manual de direito financeiro. 5 ed. Salvador: JusPodium, 2016, p. 291.

[2] OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de direito financeiro. 3 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 579.

[3]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 110.

[4] SILVA, José Afonso da. Comentários contextual à constituição. 4. ed. de acordo com a Emenda Constitucional 53, de 19.12.2006. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 523.

[5] STF, Rcl 2143 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 12/03/2003, DJ 06-06-2003 PP-00037 EMENT VOL-02113-02 PP-00224.

[6] STF, ADI 4.425, rel. min. Luiz Fux, j. 25-3-2015, P, DJE de 4-8-2015.

[7] Resolução 115/CNJ disponível em: http://cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2594

[8] CNJ, Procedimento de Controle Administrativo n. 0001138- 12.2012.2.00.0000, disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/consulta-cnj-precatorios.pdf, acesso em: 29/08/2019.

[9] STF, 1ª Turma, RE n. 253.885/MG, rela. Mina. Ellen Gracie, j. 4-6-2002, in DJU 21-6-2002, p. 00118.

[10] TJMG. Processo n. 1.0352.10.005942-2/001 – Rel. Desª Áurea Brasil – j. 20.11.2012 – p. 04.12.2012.

[11] STF, Ação Penal n. 503, Rel. Min. Celso de Mello, j. 20/05/2010.

[12] STF, Rcl-AgR 2143/SP, relator: Celso de Mello, data do julgamento: 12/03/2003, Tribunal Pleno, Data de publicação: DJ 06-06-2003 PP-00030 EMENT VOL-02113-02 PP-00224.

Sobre o autor
Roberto Di Sena Júnior

Mestre em Direito (UFSC); Especialista em Direito Público (Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus); Especialista em Direito Processual Civil (UCAM); Analista do MPSC

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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