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ADMINISTRAÇÃO TEMERÁRIA E DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

Agenda 18/01/2020 às 10:13

O ARTIGO DISCUTE SOBRE FATO CONCRETO ENVOLVENDO POSSÍVEL DELITO DE ADMINISTRAÇÃO TEMERÁRIA.

ADMINISTRAÇÃO TEMERÁRIA E DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

Rogério Tadeu Romano

 

I – DOS FATOS

Segundo o Estadão, o juiz federal Vallisney de Souza Oliveira, da 10.ª Vara Federal de Brasília, abriu ação penal contra os 29 ex-executivos dos fundos de pensões PetrosFuncefPrevi e Valia denunciados pela força-tarefa Greenfield por gestão temerária na aprovação de investimento no Fundo de Investimentos e Participações (FIP) Sondas, veículo de investimentos da Sete Brasil Participações. Esteves Pedro Colnago Júnior, chefe da Assessoria Especial de Relações Institucionais do Ministério da Economia, está na lista de denunciados.

Observa-se o que se segue:

A denúncia de 126 páginas apresentada pela Greenfield em 29 de dezembro dizia que os crimes teriam ocorrido de 2011 a 2016.

As investigações apontaram que os então gestores dos fundos de pensão ignoraram os riscos dos investimentos na Sete Brasil, as diretrizes do mercado financeiro, do Conselho Nacional Monetário, dos próprios regimentos internos, bem como não foram realizados estudos de viabilidade sobre os aportes.

Petros, Funcef e Valia continuaram a investir no FIP Sondas apesar de o cronograma ter apresentado atrasos já na primeira etapa e do incremento de mais riscos.

A empresa Sete Brasil surgiu após a descoberta do pré-sal, em 2006, quando a Petrobrás verificou que não existiam unidades de perfuração em quantidade suficiente para a demanda de exploração.

Nesse cenário, seria preciso que algum grupo de empresas se dispusesse a construir tais sondas e, assim, assumisse os riscos. A própria estatal não poderia fazê-lo pois apresentava situação financeira delicada e não seria conveniente aportar recursos próprios.

Foi a Petrobrás que procurou os fundos de pensão para que investissem no FIP Sondas, sob aprovação do governo federal.

A denúncia dizia que as investigações revelaram que a escolha dos fundos de pensão como investidores propiciou aplicação de recursos bilionários em curto espaço de tempo, ‘sem maiores cuidados e diligência, sem muita cautela e sem a preocupação real com o cumprimento dos deveres fiduciários esperados dos ex-gestores de capitais de terceiros’.

Inicialmente, a Sete Brasil seria responsável pela construção de sete sondas, do total de 28. No entanto, acabou sendo contratada para a construção das 28, divididas em duas etapas.

A força-tarefa explica. “No começo de 2012, já havia atraso no cronograma da construção das primeiras sondas, o que foi ainda mais agravado quando o sócio que detinha a expertise, a Samsung, abandonou o projeto e vendeu sua participação no Estaleiro.”

Segundo os procuradores da força-tarefa Greenfield, ‘quando da contratação do segundo lote de 21 sondas, já havia dúvidas objetivas sobre a capacidade de construir, tempestivamente, as sete primeiras sondas, que deveriam ser construídas no Estaleiro Atlântico Sul com a ajuda do sócio estratégico Samsung’.

Os fundos de pensão deveriam fazer aportes na empresa entre 2011 e 2019. Porém, os investimentos foram antecipados e foram totalmente aplicados em 2016.

O projeto não foi concluído, e o prejuízo estimado é de R$ 5,5 bilhões aos participantes das entidades de previdência. A força-tarefa pediu a reparação econômica em R$ 16 bilhões.

II – GESTÃO TEMERÁRIA

Haveria aí um crime de gestão temerária?

A gestão temerária é observada pela impetuosidade com que são conduzidos os negócios, o que leva ao aumento do risco de que todas as atividades empresariais terminem por causar prejuízos a terceiros, ou por malversar o dinheiro empregado na sociedade infratora. Tal é o que assevera Paschoal Mantecca, em Crimes contra a economia popular e sua repressão, 1985, pág. 41. O crime de gestão temerária, por sua vez, exigindo uma conduta dolosa, tem pena in abstrato prevista de 2(dois) anos a 8(oito) anos de reclusão e multa. Tal crime é de mera conduta.

No crime de gestão temerária há, sem dúvida, desrespeito às Resoluções do Conselho Monetário Nacional e ainda a Circulares do Banco Central do Brasil que estabelecem limites ao empenho de pecúnia, como a seletividade de investimentos, a diversificação de riscos, a multiplicidade de clientes e a obrigatoriedade de respeito a garantias e requisitos básicos para concessão de operações financeiras. Pressupõe o delito a ação do agente em dolo eventual, ou seja: o agente assume o risco de produzir o evento, praticando atos que expõem o bem jurídico a perigo. É certo que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 960051217 – 5/RJ, Relator Ministro Fernando Gonçalves, DJU de 3 de fevereiro de 1997, afirmou que a autorização para empréstimo à empresa reconhecidamente inadimplente, in thesi, tipifica o delito de gestão temerária.

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III– A DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

Mas, sem dúvida, deve ser descartado o dolo nesses delitos contra o sistema financeiro nacional se os agentes agem na mais absoluta discricionariedade pura.  

Criação doutrinária e jurisprudencial de alguns países, tendo seu principal defensor o Estado Italiano, mas vale consignar os Estados da Espanha e de Portugal como integrantes dessa construção. Trata-se não de outra forma ou classificação dentro dos poderes da Administração, mas da utilização de critérios técnicos decorrentes na maior parte dos casos de pessoas ou entidades especializadas, para preenchimento de normas muito genéricas que ensejam o exercício de discricionariedade pelo Poder Público.

Os ditos critérios técnicos de um modo geral são decorrentes da ciência e das técnicas-profissionais amplamente aceitas pela sociedade, contudo essas não implicam em uma aceitação irrestrita, pois como em qualquer área do conhecimento existem divergências. Não se pode angelicamente pensar que quando a Administração utiliza o parecer “X” favorável ao caso hipotético, não rejeitou o “Y” por ser contrário.

Justamente neste ponto que permanece a margem discricionária dentro dos limites técnico-científicos. Todavia não ocorrendo situações divergentes ou mesmo díspares em grau inferior, a atividade administrativa permanecerá vinculada, não à lei, mas aos critérios técnicos os quais estabeleceram ditames claros e de aceitação unânime pela comunidade científica.

Na doutrina italiana, Massimo S. Giannini entende que a discricionariedade técnica é um caso especial da teoria dos conceitos indeterminados, que requerem a aplicação de critérios técnicos para a sua execução. No entanto, entende que discricionariedade pura e discricionariedade técnica são termos nitidamente diferenciados, consistindo a primeira numa ponderação de interesses e numa eleição entre alternativas com a finalidade de satisfazer o interesse público. Já a segunda é mera atribuição da Administração para apreciar uma hipótese de fato delimitada por um conceito jurídico indeterminado mediante critérios técnicos

A posição aproxima-se da inicialmente defendida por Frederico Cammeo. Contudo, em seu Corso di Diritto Amministrativo reconhecerá que a discricionariedade técnica se afirmará não apenas pelo recurso à técnica para a compreensão de conceitos imprecisos contidos nas normas, mas evidenciará a necessidade de recurso também a critérios de oportunidade para uma decisão conforme o interesse público. Logo, a discricionariedade técnica não seria substancialmente diferente da discricionariedade “pura”, seria apenas mais limitada.

Considera-se que o ordenamento jurídico em determinadas hipóteses concede de maneira reservada à Administração poderes de valoração técnica. Embora o autor italiano assegure que não se trata de discricionariedade, essas hipóteses escapariam ao controle jurisdicional. No entanto, não basta o caráter opinativo da técnica para excluir na hipótese o controle judicial; cumpre averiguar se a lei não pretendeu atribuir ao Judiciário a opinião final. A reserva de Administração, por sua vez, pode se revelar pela especialização da Administração sobre a matéria, pela participação popular na definição do conteúdo do ato administrativo ou ainda pelo maior número de opiniões colhidas no seio da Administração. Em cada caso é preciso avaliar qual é a intenção da lei, para apurar se ela deseja realmente que a decisão final fique a cargo da Administração. É preciso, enfim, captar qual é o sentido mais conforme à democracia e ao pluralismo. Esses seriam cuidados a serem observados para que a chamada discricionariedade técnica não se transforme em imposição.

A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.

A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras. 

A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas. 

Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (A discricionariedade administrativa, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307): 

"A natureza e dimensão desta "discricionariedade técnica" varia, porém, de pais para o país, é mesmo dentro de cada país que a adota que ela permanece obscura. Para uns, trata-se de um poder livre, para outros, de um poder vinculado, mas que não é suscetível de ser controlado pelos tribunais administrativos, para outros, de um poder vinculado que deve ser, ainda que não integralmente controlado judicialmente, para outros ainda, a sua natureza varia de caso para caso".

Afirmou Odete Medauar (Poder discricionário da administração, RT, n. 610): "A distinção entre discricionariedade pura e discricionariedade técnica teria, segundo Piras, um sentido de apontar limites dados pela lei nesse ou naquele caso de discricionariedade. Mas, como Mortati, Piras, FIorini e Giannini, afirmamos o caráter unitário da discricionariedade na sua essência: podem variar os assuntos ou matérias sobre os quais se exerce.

O recurso a conhecimentos técnicos pode ser necessário em vários momentos da atividade administrativa; mas, esses conhecimentos e dados representam somente um aspecto vinculado do poder discricionário em determinada decisão, ou a Administração fica ainda, com a possibilidade de cotejar vários critérios técnicos para determinar qual o mais eficaz e conveniente.

A avaliação de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, por sua vez, aponta em outro sentido. Afirmam o seguinte: em respeito à presunção de legitimidade dos atos administrativos, não se mostra possível que o juiz (ou outro órgão de controle), no exame fático, desconsidere fundamentos técnicos apresentados pela Administração em favor de argumentos contrários, também de índole técnica, levantados por particulares ou por auxiliares, como os peritos. Os autores consideram que se o juiz pode, sim, avaliar questões técnicas, não pode, contudo, tomar a si opções técnico-políticas. Assim, se há mais de uma técnica possível a seguir, a escolha entre elas cabe à discricionariedade da Administração. Essa é uma questão de mérito administrativo, acerca da decisão mais conveniente e adequada. O que não autoriza falar em ausência de controle, mas de limites ao controle. É uma tentativa de assegurar que o interesse público não sucumba diante da mera desconfiança a respeito da procedência do ato administrativo que o alberga. Perante o impasse, a única solução juridicamente plausível, por respeitar o sistema de aplicação e de controle dos atos administrativos, é manter a eficácia do ato impugnado perante o órgão de controle. 

IV – CONCLUSÕES NECESSÁRIAS

Em sendo assim necessário cautela com relação a essas condutas, mister quando se analisa se  os acusados adotam certa ou determinada decisão que se colocam como as mais aceitáveis para o interesse da sociedade.

O que extrapola essa discricionariedade técnica e alcança o temerário, dentro de um elemento subjetivo doloso para o crime, aí, sim, é censurável, de forma a alcançar a apenação.

Será a tortuosa fronteira entre a conduta do administrador, de fundo eminentemente técnica, e do dolo, em sua gestão temerária.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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