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As medidas transnacionais repressivas anticorrupção e a respectiva adequação do direito brasileiro

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Agenda 11/02/2020 às 13:40

Traça-se um comparativo entre as medidas previstas em convenções transnacionais anticorrupção e a respectiva adequação do ordenamento jurídico brasileiro.

RESUMO: Este artigo apresenta uma análise comparada das medidas previstas em convenções transnacionais anticorrupção com o ordenamento jurídico brasileiro, de modo a analisar se o Brasil internalizou em seu ordenamento jurídico todas as medidas, sobretudo aquelas de natureza penal e processual penal, previstas na Convenção Sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiro em Transações Comerciais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Convenção Interamericana contra a Corrupção da Organização dos Estados Americanos (OEA), Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) e Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção (Convenção de Mérida).

Palavras-chaves: direito penal, direito internacional, medidas transnacionais anticorrupção, convenções internacionais.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe uma análise comparada do Direito Brasileiro com as medidas transnacionais anticorrupção previstas em convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, mormente aquelas previstas nas Convenções da ONU, da OCDE e da OEA, de modo a aferir se estas medidas estão internalizadas na legislação nacional. O enfoque principal é acerca das medidas de natureza penal, com breves menções a normas sancionadoras de viés civil e administrativo.

Como a convenção de Mérida é o mais moderno e amplo diploma internacional incorporado, seus dispositivos servirão de parâmetro para, incialmente, realizar um paralelo com as demais convenções internacionais e, alhures, analisar a internalização no ordenamento jurídico brasileiro.


2. CRIMINALIZAÇÃO ABRANGENTE E HARMÔNICA DOS ATOS DE CORRUPÇÃO

Nos tratados internacionais mencionados no introito do presente artigo há mandamentos para que os países signatários tipifiquem, em seus ordenamentos jurídicos, uma gama de atos de corrupção. Entretanto, apenas algumas dessas formas de corrupção são puramente transnacionais.

Uma considerável parte destas condutas previstas nas convenções internacionais anticorrupção são formas clássicas, ou seja, já previstas no Código Penal ou na legislação extravagante e, a priori, sem repercussão transnacional. Contudo, a importância da previsão destes atos na normativa internacional é inconteste, pois tem por escopo harmonizar as legislações dos diferentes países no que concerne à temática anticorrupção, evitar a existência de paraísos jurídicos-penais e facilitar a cooperação internacional, principalmente na recuperação de ativos.

Cumpre ressaltar também que as formas clássicas de corrupção podem configurar crimes antecedentes de lavagem de dinheiro, atingindo projeção internacional quando ocorre a evasão de divisas com a remessa do proveito do crime para o exterior.

2.1. Formas clássicas de corrupção

Como já pontuado, algumas formas de corrupção e de condutas criminais correlatas integram o regime transnacional anticorrupção com o objetivo de uniformizar as legislações dos países ratificadores dos tratados sobre esta temática, facilitando, sobremaneira, o combate internacional à corrupção.

2.1.1. Corrupção ativa e passiva de funcionários públicos nacionais

O art. 15, alíneas “a” e “b” da Convenção da ONU prevê que os Estados signatários adotem medidas legislativas para criminalizar a conduta de, dolosamente, “subornar funcionários públicos nacionais”, nas formas ativa e passiva.

Neste mesmo diapasão, a Convenção da OEA em seu art. VI, parágrafo 1.a e 1.b, e artigo VII, orientam que tal conduta seja criminalizada no ordenamento jurídico interno de cada Estado parte. Por sua vez, a Convenção de Palermo também trata do tema de forma similar, especificamente no art. 8º, §1º, alíneas “a” e “b”. Por fim a Convenção da OCDE não se debruça acerca da corrupção de funcionários público nacionais.

Analisando a legislação nacional, constata-se que tais condutas foram tipificadas como crimes, sob o nomem juris de corrupção ativa, corrupção passiva e concussão, conforme disposto, respectivamente, nos artigos 333, 317 e 316 do Código Penal. O bem jurídico tutelado por estes crimes são a moralidade e probidade da administração pública.

A concussão é um acréscimo em relação ao previsto nas convenções, uma vez que criminaliza a conduta do funcionário público que, em razão da função, exige vantagem indevida.

Destaca-se que o recebimento de qualquer vantagem indevida pelo agente público para que pratique alguma ação ou omissão para beneficiar terceiro pode também configurar ato de improbidade administrativa que importa em enriquecimento ilícito, nos termos do art. 9º, da Lei nº 8.429/92.

2.1.2. Peculato, apropriação indébita e outras formas de desvio de bens pelos funcionários públicos.

O artigo 17 da Convenção da ONU norteia que os Estados ratificadores incluam como crime em suas respectivas legislações a conduta de peculato, malversação, apropriação indébita ou outras formas de desvio de bens, fundos ou títulos públicos ou privados ou, ainda, qualquer outra coisa economicamente aferível que esteja de posse do funcionário público em razão do seu cargo.

Já a Convenção da OEA previu em seu artigo XI, parágrafo 1.D, que os Estados signatários devem criminalizar o desvio de bens móveis ou imóveis, dinheiro ou valores pertencentes ao Estado para fins não relacionados com aqueles aos quais se destinava, a um organismo descentralizado ou a um particular, praticado, em benefício próprio ou de terceiros, por funcionários públicos que os tiverem recebido em razão de seu cargo, para administração, guarda ou por outro motivo. Outrossim, este diploma internacional inclui o peculato de uso no parágrafo 1.b também do art. XI, verbis:

Artigo XI

Desenvolvimento Progressivo

l. A fim de impulsionar o desenvolvimento e a harmonização das legislações nacionais e a consecução dos objetivos desta Convenção, os Estados Partes julgam conveniente considerar a tipificação das seguintes condutas em suas legislações e a tanto se comprometem:

a. o aproveitamento indevido, em benefício próprio ou de terceiros, por parte do funcionário público ou pessoa no exercício de funções públicas de qualquer tipo de informação reservada ou privilegiada da qual tenha tomado conhecimento em razão ou por ocasião do desempenho da função pública;

(...)[1]

No que concerne às Convenções da OCDE e de Palermo, não há previsão nesse sentido, contudo, esta última traz no bojo do art. 8º, segunda parte do parágrafo 2, uma cláusula geral para que cada Estado tipifique criminalmente outras formas de corrupção.

Sob enfoque do direito brasileiro, o artigo 312 do Código Penal prevê o crime de peculato, cuja conduta criminosa descrita é a do funcionário público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, deque tem posse em razão do cargo, ou o desvia em proveito próprio ou alheio – peculato apropriação e peculato desvio. Todavia, no Código Penal não há norma penal genérica que tipifique o peculato de uso.

O §1º do já mencionado artigo 312 pune da conduta que a doutrina denomina como peculato furto ou peculato impróprio, que nada mais é do que o funcionário público valer-se da facilidade que lhe proporciona o seu cargo para subtrair ou concorrer para que seja subtraído dinheiro, valor ou bem. O peculato culposo está previsto no artigo 312, §2º, do Código Penal, que ocorre quando o funcionário público concorre culposamente para o crime de outrem.

No art. 313 da lei substantiva penal temos a criminalização da conduta do funcionário público que, no exercício do cargo, apropria-se de dinheiro ou qualquer outra utilidade que recebeu por erro de outrem, modalidade conhecida como peculato mediante erro de outrem ou peculato estelionato. Em ambos artigos a objetividade jurídica é a tutela da moralidade e do patrimônio da administração pública.

A legislação brasileira também tipificou como crime formas mais modernas desse tipo de crime, o peculato eletrônico previsto nos artigos 313-A e 313-B, que punem, na devida ordem, a inserção de dados falsos em sistemas de informação e a modificação ou alteração não autorizada de tais sistemas ou programas de informática. O artigo 315 do Código Penal incrimina o emprego irregular de verbas ou rendas públicas.

Tratando-se de condutas desta natureza praticadas por prefeito, existe lei específica, de forma que estas condutas passam a se subsumir aos crimes previstos no art. 1º do Decreto Lei nº 201/67. Quanto ao peculato de uso, há crime no uso de bens, rendas ou serviços públicos pelo prefeito, nos termos do art. 1º, II, do Decreto Lei nº 201/67. Este é o teor do mencionado dispositivo legal:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

(...)

II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos;

(...)[2]

Para funcionários públicos em geral, o peculato de uso enseja, a priori, ilícito administrativo previsto no art. 9º, XII, da Lei de Improbidade Administrativa. Segundo a doutrina e a jurisprudência majoritárias, é atípico o “uso momentâneo de coisa infungível, sem a intenção de incorporá-la ao patrimônio pessoal ou de terceiro, seguido da sua integral restituição a quem de direito.”[3].

Por fim, cabe ressaltar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 4.435/2008 que altera o Código Penal e cria a figura típica do peculato de uso.

2.1.3. Tráfico de influência

O artigo 18 da Convenção de Mérida (ONU), cujo título é tráfico de influências, determina que os Estados signatários penalizem a conduta do funcionário público ou de outra pessoa que abuse de sua influência real ou suposta para obter da administração ou de uma autoridade um benefício ao qual não faz jus. O artigo XI, parágrafo 1.c da Convenção da OEA também traz um dispositivo semelhante.

No âmbito do direito nacional, o artigo 332 do Código Penal prevê pena de 02 (dois) a 05 (cinco) anos para aquele que solicita, exige, cobra ou obtém, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função.

O delito de tráfico de influência tutela a Administração Pública, sobretudo seu prestígio, e, indiretamente, o patrimônio do particular enganado pelo agente criminoso.

Na definição de Edgard Magalhães Noronha:

O crime realmente é um estelionato, pois o agente ilude e frauda o pretendente ao ato ou providencia governamental, alegando um prestígio que não possui e assegurando-lhe um êxito que não está a seu alcance.[4]

Se a influência jactanciosa recair sobre juiz, jurado ou órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito, tradutor, intérprete ou testemunha, a conduta será tipificada de acordo com o delito previsto no art. 357 do Código Penal – exploração de prestígio.

Caso o sujeito ativo, em ambas as hipóteses, seja funcionário público, estará em tese sujeito às sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92).

2.1.4. Abuso de funções ou prevaricação

Nos termos do artigo 19 da Convenção de Mérida (ONU), os Estados partes devem tipificar como crime o abuso de funções ou do cargo, por ação ou omissão do funcionário público, em violação à lei, a fim de obter benefícios indevidos para si ou para terceiro. Nesta mesma toada é o artigo VI, parágrafo 1.c., da Convenção Interamericana.

O Direito Penal brasileiro se adequa às convenções internacionais quando pune, com fulcro no artigo 319 do Código Penal, os funcionários públicos desidiosos por prevaricação. Outros crimes do Código Penal podem ser inseridos no cenário do abuso de função pública, tal qual a condescendência criminosa (artigo 320 do Código Penal), a advocacia administrativa (artigo 321 do Código Penal) e a violência arbitrária (artigo 322 do Código Penal).

No campo da legislação extravagante temos a recente Lei nº 13.869/2019 que trata do abuso de autoridade, cometido por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

2.1.5. Receptação e favorecimento real

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção orienta, em seu artigo 24, os Estados partes a penalizar o ato de encobrir ou reter de forma dolosa bens que se tenha conhecimento serem produtos de qualquer outro crime previsto neste estatuto transnacional. A Convenção Interamericana, de modo similar, traz em seu artigo VI, parágrafo 1.d., a relevância de criminalizar o aproveitamento doloso ou a ocultação dos bens obtidos por meio de atos de corrupção.

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O artigo 180 do Código Penal tipifica como crime a receptação de produto de crime, trazendo em seu parágrafo 6º uma causa de aumento para os casos em que o bem ou as instalações sejam patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviço público ou sociedade de economia mista. Cumpre ainda ressaltar que o Supremo Tribunal Federal considera aplicável esta causa de aumento se a receptação ocorrer sobre bens de empresa pública:

No delito de receptação, os bens de empresa pública recebem o mesmo tratamento que os da União e, por isso, cabível a majoração da pena ao crime contra ela praticado.[5]

Caso o sujeito não tenha por escopo vantagem pessoal, mas tão somente fornecer auxílio para tornar seguro o proveito do crime antecedente, incorrerá em favorecimento real, crime insculpido no artigo 349 do Código Penal.

2.1.6. Obstrução da justiça e violação do sigilo da investigação

O artigo 25 da Convenção de Mérida compele aos Estado signatários a criminalizar a obstrução da justiça, que se conceitua como atos – uso da força física, ameaças, intimidação ou a promessa, o oferecimento ou a concessão de vantagem indevida – que tem como objetivo o falso testemunho ou apartação de provas, bem como os que visem obstaculizar as funções dos funcionários da justiça ou de servidores públicos, para evitar a aplicação dos atos de corrupção previstos neste tratado internacional. A Convenção de Palermo trata esta matéria em seu artigo 23.

É inquestionável a relevância dessa regra no tocante à instrução criminal judicial e extrajudicial voltadas ao combate da corrupção, sobremaneira quando os investigados são pessoas com grande poder econômico ou ocupantes de cargos estratégicos no alto escalão dos governos.

Condutas como estas são puníveis pelo direito brasileiro. O art. 342 do Código Penal pune o falso testemunho ou a falsa perícia praticada em autos de inquérito policial, processo judicial ou administrativo. Já o art. 344 tipifica o crime de coação no curso de processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral.

Sobre o tema, ensina Rogério Sanches Cunha:

Pune-se aquele que usar (empregar) violência (coação física em sentido amplo) ou grave ameaça (séria intimidação, justa ou injusta, revestida de potencialidade intimidatória) contra autoridade (delegado, juiz, promotor etc.), parte (vítima, réu ou corréu) ou qualquer pessoa que funcione ou é chamada a intervir (escrivão, perito, tradutor, intérprete, testemunha, jurado etc.) em processo judicial (cível ou penal), policial (inquérito) ou administrativo (inquérito civil, sindicância etc.), ou juízo arbitral, com o fim de satisfazer interesse próprio ou alheio.[6]

Cabe ainda destacar os ensinamentos de Noronha acerca do assunto:

O fim visado é a intenção que guia o agente; é o objetivo oculto, que não se acha nos atos de execução. Pode consistir em o sujeito ativo querer que o juiz decida a seu favor, o promotor não o denuncie, o delegado não instaure inquérito, o perito dê um laudo favorável, a testemunha falte com a verdade etc.[7]

As penas do crime de falso testemunho foram aumentadas pela Lei nº 12.850/2013, que define organização criminosa e dispões sobre investigação policial, meios de obtenção de provas, infrações penais correlatas e procedimento criminal.

Esta lei também estabeleceu alguns crimes cujo enfoque é garantir a ampla eficácia da investigação criminal de organizações criminosas, evitando prejuízos aos trabalhos da autoridade responsável pela investigação (Ministério Público, Polícia Civil ou Polícia Federal) durante a coleta dos elementos de informação e de provas. O art. 2º, §1º, da Lei de Organizações Criminosas prevê a pena de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa para aquele que impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Outros tipos penais desta lei (artigo 18 a 21) também tem como mote garantir o resultado útil das investigações das organizações criminosas, como exemplo é possível citar o crime de recusa de dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo delegado de polícia, promotor ou juiz, no curso de investigação ou processo.

Faz-se mister destacar, nesse contexto, o artigo XI, da Convenção da OEA, que trata do aproveitamento indevido de informações reservadas ou privilegiadas por funcionário público.

Vale lembrar, ainda, que há na legislação extravagante, especificamente no artigo 10 da Lei nº 9.296/16, dispositivo que pune com penas de 02 (dois) a 04 (quatro) anos e multa aquele que devassa, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei, o sigilo das comunicações telefônicas. Neste mesmo diapasão, o artigo 325 do Código Penal tipifica como crime a conduta do funcionário público que revela fato de que tem ciência em razão do cargo ou facilita a revelação.

2.1.7. Definição de funcionário público

A Convenção de Mérida[8] (artigo 2, alínea “a”) e a Convenção da OEA[9] (artigo I) definem o conceito de funcionário público para fins de aplicação dos atos internacionais. A Convenção de Palermo se limita adotar em seu artigo 8, parágrafo 4, a mesma definição constante no direito interno do Estado no qual o agente público exerce suas funções.

O artigo 327 do Código Penal define funcionário público para efeitos penais como aquele que, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Insta destacar que o §1º do mencionado dispositivo penal equipara ao funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para execução de atividade típica da Administração Pública.

Considera-se relevante esta equiparação, de forma que permite a responsabilização criminal similar dos particulares que se associam com funcionários públicos para desviar dinheiro dos cofres públicos ou se utilizam de organizações não governamentais ou organizações da sociedade civil de interesse público em benefício próprio, locupletando-se indevidamente de bens ou valores que deveriam ser usados na atividade fim dessas organizações paraestatais.

2.2. Formas puramente transnacionais de corrupção

A globalização das relações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas, principalmente, a partir dos anos 90, refletiu também na prática de corrupção. Nesse contexto, fez-se necessário o surgimento de um movimento internacional anticorrupção e a criação de mecanismos para cooperação internacional na persecução dos delitos de corrupção e para recuperação de ativos provenientes de desvio de recursos público.

A seguir serão estudas as formas transnacionais anticorrupção e sua respectiva criminalização pelos tratados internacionais.

2.2.1. Corrupção ativa e tráfico de influência nas transações comerciais internacionais

Em 1988, o Congresso Americano, atendendo as exigências da comunidade empresarial, passou a exigir que o governo dos Estados Unidos persuadisse outras nações a adotarem legislação similar ao Foreign Corrupt Practice Act de 1977.

A título de contextualização, cabe ressaltar que o Foreign Corrupt Practice Act é um marco importante na globalização do combate à corrupção, conforme destacam Marina Amaral Egydyo de Carvalho e Luciana Dutra de Oliveira Silveira:

Em 1977 [...] os EUA promulgaram o Foreign Corrupt Practice Act (FCPA)com propósito específico de criminalizar a prática por companhia norte-americanas, ou por seus representantes, de suborno de oficiais públicos estrangeiros a fim de obter vantagens comerciais. Essa lei foi uma novidade promissora na época, não só porque a maioria das TNCs (empresas transnacionais) originavam-se nos EUA, mas acima de tudo porque ela representou um passo relevante em direção à promoção da anticorrupção em todo mundo.[10]

O fruto dessa demanda é a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (OCDE) de 1997, o primeiro diploma internacional sobre este ponto específico. Portanto, a Convenção da OCDE será utilizada como referência principal na abordagem deste tema.

O artigo 1º da Convenção da OCDE, cujo título é “o delito de corrupção de funcionários públicos estrangeiros”, orienta que cada Estado signatário considere delito criminal qualquer pessoa intencionalmente oferecer, prometer ou dar qualquer vantagem pecuniária indevida ou de outra natureza, seja diretamente ou por intermediários, a um funcionário público estrangeiro, para esse funcionário ou para terceiros, causando a ação ou a omissão do funcionário no desempenho de suas funções oficiais, com a finalidade de realizar ou dificultar transações ou obter outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais.

A Convenção da OEA traz o conceito de “suborno transnacional”, em seu artigo VIII, e a Convenção de Palermo, por sua vez, apenas deixa margem para cada Estado tipifique a corrupção sob a perspectiva transnacional, nos termos do artigo 8º, parágrafo 2, sem maiores considerações.

Já a Convenção de Mérida vai um pouco além e versa, além da corrupção ativa, sobre a corrupção passiva praticada por um funcionário público estrangeiro ou um funcionário de organização internacional pública. Este é o teor do seu artigo 16:

1. Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, a promessa, oferecimento ou a concessão, de forma direta ou indireta, a um funcionário público estrangeiro ou a um funcionário de organização internacional pública, de um benefício indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa ou entidade com o fim de que tal funcionário atue ou se abstenha de atuar no exercício de suas funções oficiais para obter ou manter alguma transação comercial ou outro benefício indevido em relação com a realização de atividades comerciais internacionais.

2. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, a solicitação ou aceitação por um funcionário público estrangeiro ou funcionário de organização internacional pública, de forma direta ou indireta, de um benefício indevido que redunde em proveito próprio ou no de outra pessoa ou entidade, com o fim de que tal funcionário atue ou se abstenha de atuar no exercício de suas funções oficiais. (sem grifo no original)

Com escopo de efetivar a Convenção da OCDE no direito penal brasileiro, a Lei nº 10.467/02 introduziu o capítulo II-A no Título IX, do Código Penal, definindo os delitos de corrupção ativa de funcionário público estrangeiro em transação internacional (artigo 337-B do Código Penal) e de tráfico de influência nas transações comerciais internacionais (artigo 337-C do Código Penal).

Como se vê, não há previsão no direito nacional da corrupção passiva transnacional, como consta na Convenção da ONU. A lei que alterou o Código Penal é de 2002 e atendeu os anseios da OCDE, que teve sua Convenção ratificada em 2000. A Convenção de Mérida foi ratificada apenas em 2006.

Carlos A. Manfroni traz uma interessante observação sobre o tema, ao afirmar que compromisso de penalizar a corrupção transnacional não pode contemplar o sujeito passivo, porque se trata de um funcionário público de um país diferente do qual se exercerá a jurisdição.[11]

Portanto, parece acertada a opção do legislador brasileiro em não seguir a orientação da Convenção de Mérida de criminalizar a corrupção passiva de funcionários públicos estrangeiros, uma vez que o Brasil não pode tutelar a administração pública de outro país.

Cabe ressaltar que tal omissão não cria um vácuo legislativo quanto à responsabilização de funcionários públicos brasileiros que recebam vantagens indevidas para favorecer empresas estrangeiras em contratos com a administração pública direta ou indireta, nesse caso será aplicado o art. 317 do Código Penal.

Embora inserido no título dos crimes contra a Administração Pública brasileira, os delitos previstos nos artigos 337-B e 337-C do Código Penal não tutelam sua incolumidade. Também não protegem o regular andamento da administração estrangeira, incumbência do legislador respectivo. Na verdade, tutela-se aqui o regular desenvolvimento das transações comerciais entre o Brasil e os demais países. Nesse sentido explica Bitencourt:

O bem jurídico tutelado, a despeito de o tipo penal encontrar-se topograficamente situado no Título que disciplina os crimes contra a Administração Pública, é a boa-fé, a regularidade, lealdade, moralidade transparência, equidade do comércio internacional. A infração penal não atinge a Administração Pública brasileira, considerando-se que o funcionário corrupto ou corrompido é estrangeiro, estranho, portanto, a nossa administração. Por outro lado, o Brasil não tem legitimidade para pretender proteger penal ou civilmente a integridade, moralidade, dignidade da Administração Pública de outros países. Nenhum país pode avocar o direito de proteger juridicamente a Administração Pública de outro.[12]

     Em arremate, cabe ressaltar que a incriminação do tráfico de influência em transação comercial internacional (artigo 337-C do Código Penal) também visa tutelar o comércio exterior e pune o sujeito que engana a vítima com pretexto de que irá influir no comportamento funcional de um agente público estrangeiro.

2.2.2. Definição de funcionário público estrangeiro

O artigo 1º, parágrafo 4, alínea “b”, da Convenção da OCDE define funcionário público estrangeiro como qualquer pessoa responsável por cargo legislativo, administrativo ou jurídico de um país estrangeiro, seja ela nomeada ou eleita; qualquer pessoa que exerça função pública para um país estrangeiro, inclusive para representação ou empresa pública; e qualquer funcionário ou representante de organização pública internacional.

A Convenção de Mérida define funcionário público estrangeiro, em seu artigo 2º, alínea “b”, como toda pessoa que ocupe um cargo legislativo, executivo, administrativo ou judicial de um país estrangeiro, já designado ou empossado; e toda pessoa que exerça uma função pública para um país estrangeiro, inclusive em um organismo público ou uma empresa pública. Por outro lado, nos termos do artigo 2º, alínea “c” do mesmo diploma internacional, distingue o funcionário público estrangeiro do funcionário de uma organização internacional pública, que nada mais é do que um funcionário público internacional ou toda pessoa que tal organização tenha autorizado a atuar em seu nome.

O direito brasileiro definiu o funcionário público estrangeiro no artigo 337-D do Código Penal como quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais (ex: membro do Poder Judiciário Canadense) ou em representações diplomáticas de país estrangeiro (ex: funcionário da embaixada francesa).

Conforme o parágrafo único deste artigo, equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.

2.3. Formas de corrupção pendentes de criminalização no Brasil

Alhures serão demonstradas as formas de corrupção ainda não criminalizadas no Brasil à luz do regime transnacional anticorrupção e as respectivas propostas de alteração legislativa para adequação com a legislação internacional.

2.3.1. Enriquecimento ilícito de funcionários públicos

A Convenção de Mérida determina, em seu artigo 20, que, respeitando a sua Constituição e os seus princípios fundamentais, os Estados partes considerem adotar medidas legislativas e de outra índole para criminalizar as condutas dolosas que ocasionem o enriquecimento ilícito de funcionários públicos, ou seja, o incremento significativo do patrimônio de um funcionário público sem que ele possua justificativa plausível para tanto.

De modo similar, o artigo IX da Convenção Interamericana dispõe que, observadas as garantias constitucionais, os Estados signatários devem tipificar como delito o aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente.

Este tema é bastante controverso entre países signatários, segundo pesquisa de Patrícia Carraro Rosseto[13], não só o Brasil, mas países como Chile e Uruguai não criminalizaram o enriquecimento ilícito de funcionários públicos. Por sua vez, Estados Unidos e Canadá, países que trabalham o Direito de uma forma mais consuetudinária (common law), consideram que este tipo penal viola o princípio da presunção de inocência, pois inverte o ônus da prova em desfavor da defesa, e, deste modo, consideram que, nesta parte, o tratado internacional diverge da norma constitucional. Em comunicado oficial à OEA, ambos os países informaram que estavam desobrigados de criminalizar a conduta.

Em âmbito nacional, a criminalização do enriquecimento ilícito está entre as “10 Medidas de Combate à Corrupção”[14] propostas pelo Ministério Público Federal, cuja pena prevista no preceito secundário é de 3 a 8 anos de prisão.

Cabe ressaltar, também, que no contexto dos protestos de março de 2015 no Brasil e da Operação “Lava Jato”, o Governo Federal, encampando a proposta do MPF, apresentou projeto de lei que ficou conhecido como “Pacote Anticorrupção”, no qual está previsto a tipificação do enriquecimento ilícito de funcionários públicos.

O mencionado projeto prevê a inserção do art. 317 – A no Código Penal, que passaria a considerar crime a conduta de “possuir, manter ou adquirir, para si ou para outrem, injustificadamente, bens ou valores de qualquer natureza, incompatíveis com sua renda ou com a evolução do seu patrimônio. De igual modo, figuraria como sujeito passivo do crime o funcionário público que, embora não figurando como proprietário ou possuidor dos bens ou valores nos registros próprios, deles faça uso, injustificadamente, de modo tal que permita atribuir-lhe sua efetiva posse ou propriedade.

Esta alteração atende à ação número 10 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA de 2013. O escopo é internalizar no ordenamento jurídico nacional as Convenções Internacionais da OEA e da ONU, nos termos da exposição de motivos a seguir transcrita:

Enriquecimento ilícito. Objeto de tratados internacionais firmados pelo Brasil, a criminalização do enriquecimento ilícito mostra-se como instrumento adequado para a proteção da lisura da administração pública e o patrimônio social. Não cabe ignorar que o amealhamento de patrimônio incompatível com as rendas lícitas obtidas por servidor público, é indício de que houve a prática de antecedente crime contra a administração pública. Notadamente a corrupção e o peculato mostram-se caminhos prováveis para este enriquecimento sem causa. A riqueza sem causa aparente mostra-se, portanto, indício que permitirá a instauração de procedimentos formais de investigação, destinados à verificar se não houve aquisição patrimonial lícita. Não há inversão do ônus da prova, incumbindo à acusação a demonstração processual da incompatibilidade dos bens com os vencimentos, haveres, recebimentos ou negociações lícitas do servidor público. Não se pode olvidar que o servidor público transita num ambiente no qual a transparência deve reinar, distinto do que ocorre no mundo dos privados, que não percebem recursos da sociedade. Daí obrigações como a entrega da declaração de bens a exame pelo controle interno institucional e pelo Tribunal de Contas. O crime de enriquecimento ilícito, especificamente diante da corrupção administrativa, na qual corruptor e corrupto guardam interesse recíproco no sigilo dos fatos, sinaliza política criminal hábil, buscando consequências e não primórdios (a exemplo da receptação e da lavagem de dinheiro). É criminalização secundária, perfeitamente admitida em nosso direito. Vocaciona-se para dificultar a imensa e nefasta tradição de corrupção administrativa que, de acordo com índices de percepção social, nunca se deteve.[15]

No entanto, há juristas, como Luís Greco, que entendem que a proposta de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada, pois se baseia em considerações policialescas de facilitação de prova, não se coadunando aos princípios da não culpabilidade e da presunção de inocência. O autor destaca também que deve ser analisada a compatibilidade do tipo penal com o princípio da não auto incriminação (nemo tenetur se detegere), a ideia de ultima ratio do direito penal e, por fim, a sua concreta necessidade diante da existência de um direito penal material já bastante abrangente.[16]

2.3.2. Corrupção privada

No tocante a este tópico, a Convenção de Mérida inova ao não limitar o combate à corrupção somente na esfera pública, mostrando também a importância deste tema abarcar as relações horizontais entre particulares. Os artigos 21 e 22 desta Convenção preveem que os Estados devem adotar medidas legislativas para tornar crime o suborno do setor privado e a malversação ou peculato de bens de particulares.

Segundo Daniel Laufer, a criminalização da corrupção entre particulares não se encaixa bem aos ordenamentos jurídicos do Brasil, Espanha e Portugal. Na Espanha e em Portugal porque se trata de penalização recente, sem uma doutrina aprofundada sobre o tema.  No Brasil, a Lei nº 9.279/96, que em seu artigo art. 195 trata do crime de concorrência desleal, contudo, a despeito do considerável período de vigência, a medida goza de pouca ou nenhuma eficácia social.[17]

Dentre os diversos incisos do art. 195 da Lei nº 9279/66, cabe um destaque especial aos incisos IX e X, que tipificam as condutar de dar ou prometer dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando o dever de emprego, proporcione-lhe vantagem (corrupção privada ativa); e de receber dinheiro ou outra utilidade, ou aceitar promessa de paga ou de recompensa, para , faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador (corrupção privada passiva).

Não obstante a vigência dos tipos penais acima mencionados, Laufer consigna que “a escolha legislativa de 1996 deixou muito a desejar ante a precária técnica legislativa adotada e pela mitigação do alcance da norma[18].  Sobre o tema arremata este autor:

Olhos postos na redação do art. 195, incs. IX e X, da Lei 9.279/96, é evidente que as condutas do empregado/colaborador (passiva) e do terceiro/extraneus (ativa) ali criminalizadas tomam por norte apenas uma empresa determinada. Em outras palavras, a lei brasileira preocupou-se em criminalizar o desvio de conduta de determina empregado/colaborador em detrimento da própria empresa à qual está vinculado, mas evitando a criminalização pura e simples do desvio de conduta do funcionário.[19]           

Cabe ressaltar que o Anteprojeto de reforma do Código Penal se debruça sobre a corrupção no setor privado com a seguinte proposta:

Corrupção entre particulares

Art. 167. Exigir, solicitar, aceita, ou receber vantagem indevida, como representante de empresa ou instituição privada, para favorecer a si ou a terceiro, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições:

Pena – prisão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem oferece, promete, entrega ou paga, direta ou indiretamente, ao representante da empresa ou instituição privada, vantagem indevida.

Como se vê, a redação do Anteprojeto do Código Penal atende a legislação internacional quanto à tipificação do suborno privado, porém quanto à malversação ou ao peculato no setor privado se mostra omisso, pois não há qualquer proposta de alteração legislativa nesse sentido.

Na opinião de Laufer, a citada proposta de alteração legislativa merece ser criticada quando não inclui a ausência de lealdade de concorrência como elementar do tipo penal, bem como porque pune o funcionário tão somente pela quebra de deveres funcionais junto ao empregador, mesmo que estejam dissociados de interesses patrimoniais do empresário/empregador.[20]

Para ilustrar a lacuna causada pela ausência de criminalização da corrupção privada, cabe lembrar o escândalo causado pelo Caso “Fifa” de idos de 2015, no qual vários dirigentes, um deles o ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, estavam envolvidos em um esquema de corrupção por receberem suborno de empresas esportivas em troca de direitos comerciais de competições de futebol. Dentre os envolvidos haviam ainda dois empresários de nacionalidade brasileira.

A investigação foi realizada por autoridades norte americanas (Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América – DOJ, Federal Bureau of Investigation – FBI e Internal Revenue Service – IRS) e culminou na prisão de vários investigados na Suíça

A despeito da grande quantidade de ativos desviados – em média US$ 150 milhões de dólares – e da repercussão internacional do caso, é possível afirmar que os nacionais brasileiros envolvidos nesta organização criminosa internacional, em tese, não poderiam ser punidos no Brasil pela corrupção privada em face da atipicidade da conduta.

Conrado Gontijo observa que os pagamentos de propinas a dirigentes de instituições privadas que regulamentam o futebol não figuram como crime no ordenamento pátrio. Esclarece o autor que o fundamento da investigação norte americana foi a celebração de acordos ilícitos – pactos sceleris – entre dirigentes da FIFA e proprietário de empresas de marketing esportivo, por meio dos quais estes pagavam àqueles propinas para obter contratos e, em seguida, o proveito criminoso era sonegado e lavado a partir de complexas operações financeiras.[21]

Ademais, não é possível sequer atribuir responsabilidade penal aos dirigentes brasileiros pela prática do crime de lavagem de dinheiro, uma vez que o a conduta antecedente – corrupção privada – é atípica no ordenamento jurídico brasileiro. Consequentemente as operações financeiras efetivadas com objetivo de dissimular ou ocultar a origem dos valores recebidos seriam um irrelevante penal.

2.3.3. Financiamento irregular de campanhas eleitoral ou o “caixa-dois” eleitoral

A Convenção de Mérida, ao tratar das medidas transnacionais preventivas anticorrupção, prevê no artigo 7, incisos 2 e 3, que cada Estado parte considerará a possibilidade de adotar medidas legais e administrativas para, consoante os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno: (i) estabelecer critérios para a candidatura e a eleição a cargos públicos; e (ii) aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas e a cargos públicos eletivos e o financiamento de partidos políticos.

O abuso de poder econômico no processo eleitoral é um tema que está em evidência devido aos recentes escândalos – “anões do orçamento”, “mensalão”, “lava-jato”, etc – que afetaram a democracia brasileira nas duas últimas décadas. Contudo, esta relação viciosa entre eleições e poder econômico é uma problemática comum das democracias contemporâneas, na medida em que o êxito nas eleições depende, em boa parte, de campanhas com alto custo econômico.

A presença excessiva de poder econômico, além de beneficiar os detentores do capital e prejudicar candidatos menos abastados de participar em pé de igualdade das eleições, gera um ciclo vicioso entre os financiadores das campanhas e os políticos, ocasionando, após o pleito eleitora, favorecimentos ilícitos e corrupção.

O mencionado ciclo vicioso entre o financiamento privado de campanha e o desvio de verba públicas é evidenciado por André Marrenco:

A arrecadação de fundos financeiros para custear campanhas eleitorais adquiriu um lugar central na competição eleitoral das democracias contemporâneas, com consequências para o equilíbrio da competição e geração de oportunidades responsáveis pela alimentação de redes de compromissos entre partidos, candidatos e financiadores privados, interessados no retorno de seu investimento, sob a forma de acesso a recursos públicos ou tratamento privilegiado em contratos ou regulamentação pública. Dessa forma, a conexão, - incremento nos custos da campanha eleitoral → arrecadação financeira → tratamento privilegiado aos investidores eleitorais nas decisões sobre fundos e políticas públicas, passou a constituir fonte potencial para a geração de corrupção nas instituições públicas. De um lado, partido e candidatos buscando fontes para sustentar caras campanhas eleitorais, e de outro, empresários de setores dependente de decisões governamentais, como bancos e construção civil.[22]

O cientista político americano David Samuels observou que nas eleições brasileiras o financiamento privado não decorre de pequenas doações pulverizadas por todo eleitorado, mas sim de um diminuto número de doadores que realizam massivas contribuições, conseguindo, desta forma, manter uma relação estreita com os candidatos que apoiam:

O mercado de financiamento de campanha está dominado por relativamente poucos atores, quer pessoas físicas ou jurídicas. Em média, poucos contribuem, mas quando o fazem, tendem a dar muito dinheiro. Doações maiores de poucos indivíduos são claramente mais importantes para os candidatos do que doações menores de um grande número de pessoas. A natureza “fechada” do financiamento de campanha no Brasil implica que os candidatos provavelmente estão mais próximos de seus financiadores, ao contrário dos Estados Unidos, onde os candidatos estão familiarizados com alguns mas não com todos os contribuintes. Isso sugere que o financiamento de campanha no Brasil é, em grande medida, “voltada para serviços”, mais do que voltado para a “política”: os contribuintes esperam um “serviço” específico, que apenas um cargo público pode oferecer em retorno pelo seu investimento.[23]

De plano, cabe rechaçar a atipicidade da conduta praticada pelo indivíduo que pratica o caixa dois eleitoral, ao passo que configura um tipo de falsidade ideológica. No campo eleitoral, a falsidade ideológica está prevista no art. 350 do Código Eleitoral, cuja pena é de até 5 anos de prisão, caso seja um documento público.

Conforme salienta Luiz Flávio Gomes, o que não se tem é um tipo penal específico para o crime de caixa dois eleitoral, podendo a conduta se amoldar a delitos previstos na legislação penal extravagante:

No âmbito dos delitos cometidos contra a ordem financeira, ele está previsto no art. 11 da Lei 7.492/86: “manter ou movimentar recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida pela legislação”. A pena é de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa. Mas se trata inequivocamente de crime próprio, ou seja, o sujeito ativo tem que ser uma das pessoas mencionadas no artigo 25 da Lei de Crimes do Colarinho Branco. Nos crimes tributários, o “caixa 2” está previsto no art. 1º da Lei 8.137/90. O que não existe no direito penal brasileiro é um crime específico para o chamado “caixa 2 eleitoral”. Se no Brasil houvesse a certeza do castigo, a quase totalidade dos crimes de caixa 2 seriam devidamente punidos pelo art. 350 do Código Eleitoral (castigando-se o candidato com a perda do mandato parlamentar).[24]

A ausência de crime específico para a prática do caixa dois eleitoral serviu como mote para a apresentação do Projeto de Lei nº 855/2015, uma das medidas previstas no já mencionado “Pacote Anticorrupção”, que estabelece sanções a atividades ilícitas relacionadas à prestação de contas de partido político e de campanha eleitoral.

O referido Projeto de Lei altera dispositivos das Leis nº 4.735/65 (Código Eleitoral), 9.504/97 (Lei das Eleições) e 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos). O Código Eleitoral passaria a tipificar o “caixa dois eleitoral” em seu artigo 354-A, com pena de reclusão de 3 a seis anos, e multa, para aquele que fraudar a fiscalização eleitoral, inserindo elementos falsos ou omitindo informações com o fim de ocultar a origem, o destino ou a aplicação de bens, direitos e valores ou serviços de prestação de contas de partido político ou de campanha eleitoral.

Nos termos do §1º deste artigo, incorreria nas mesmas penas o doador ou o representante da pessoa jurídica responsável pela doação que a realizasse em desacordo com as regras da legislação a fim de ocultar a origem, o destino, ou a aplicação de bens, direitos, valores ou serviços de prestação de contas de partido político de campanha eleitoral.

Ainda no Código Eleitoral, está prevista a inserção do crime de “lavagem eleitoral” com a criação do art. 354 – B. Esta alteração legislativa passaria a prever a conduta consistente em ocultar ou dissimular, para fim eleitoral, a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de fontes de recursos vedadas pela legislação eleitoral, fixando pena de reclusão de 3 a 10 anos, e multa.

Também incorreria nas mesmas penas, aquele que, sabendo da ocultação ou dissimulação, utilizasse para fins eleitorais bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de fontes de recursos vedadas pela legislação eleitoral.

A Lei das Eleições passaria a prever nos artigos 23, § 8º e 81, § 5º, sanção de multa às pessoas física ou jurídicas em cinco a dez vezes os valores de bens, direitos, serviços ou valores doados ou prestados em favor de candidato, partidos ou coligações, para campanha eleitoral, que não forem declarados na forma da lei.

Ao fim, seria acrescido o inciso IV ao artigo 36 da Lei dos Partidos Políticos, pelo qual um partido político poderia sofrer multa caso se beneficiasse das condutas de “caixa dois eleitoral” e “lavagem eleitoral”. Neste caso, a sanção seria multa de cinco a dez vezes sobre os valores ilícitos obtidos.

A despeito de existir corrente doutrinária que vê na criminalização do “caixa dois eleitoral” uma verdadeira demagogia legislativa, considera-se que tal medida é importante para alinhar a legislação nacional com o regime transnacional anticorrupção, tanto quanto para evitar a ocultação e a dissimulação da origem e do destino de recursos provenientes de condutas ilícitas para financiar campanhas eleitorais.

Sobre o autor
Yan Rêgo Brayner

Delegado de Polícia Civil do Estado do Piauí, entusiasta de temas correlatos ao Direito Penal e à Investigação Criminal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAYNER, Yan Rêgo. As medidas transnacionais repressivas anticorrupção e a respectiva adequação do direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6068, 11 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79342. Acesso em: 24 dez. 2024.

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